A rainha da correria do Capão

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A rainha da correria do Capão

Neide encontrou na corrida um meio para superar os assassinatos do filho e do marido. Hoje centenas de pessoas acompanham suas passadas pelo Capão Redondo, em São Paulo.

Neide, 56, encontrou na corrida um meio para superar os assassinatos do filho e do marido. Hoje centenas de adultos e crianças do Capão Redondo acompanham suas passadas. Foto: Guilherme Santana/ VICE.

Quando você troca o trem da CPTM da Marginal Pinheiros pelo metrô suspenso na estação Santo Amaro, em São Paulo, logo percebe a mudança de escala. A quantidade de pessoas apressadas no contrafluxo te obriga a se esgueirar por uma fileira estreita na hora de tomar o metrô na direção do Terminal Capão Redondo. A viagem é curta, apenas quatro estações, mas é como se a cidade que se divisa dos vagões mudasse de forma. Vê-se muitos barracos em encostas, conjuntos habitacionais, ruas desconjuntadas. O verde não é commodity. Dados da secretaria municipal do Verde e do Meio Ambiente confirmam que essa região, domínio da subprefeitura de Campo Limpo, é uma das mais desfavorecidas da cidade: cada habitante tem direito a 0,90 metro quadrado de área verde.

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Meu encontro é, portanto, num lugar atípico, o único oásis do Capão Redondo, o parque Santo Dias, de 134 mil metros quadrados – ou 1/12 do Ibirapuera –, a área remanescente de Mata Atlântica do bairro. A entrada do local, ao lado da COHAB Adventista, não lembra muito o cenário de Fim de semana no parque, de Mano Brown, do Racionais MCs, ilustre morador da vizinhança. Mas a história da baiana de Porto Seguro Marineide dos Santos Silva, 56 anos, ativista da região, cabe na lírica do grupo.

A vida de Neide, como é conhecida por ali, não foi um mar de rosas, não. Aos 20 anos, ela perdeu o marido; aos 41, um de seus filhos. O primeiro morto pela polícia, o segundo por ladrão – um menor da região, um daqueles que não contrariaram a estatística. Abandonada pelos pais, ela cresceu em orfanato e depois foi criada por parentes distantes em São Paulo – criada é modo de dizer, já que a principal atividade de sua infância era trabalhar na oficina de costura de seus tutores. Aos 16, louca para rever sua mãe que havia também se mudado para São Paulo, nova decepção: ela a levou para morar num cortiço do Capão Redondo com outras oito famílias e a obrigou a cuidar de sua prole.

Tais cicatrizes fizeram com que Neide buscasse meios poderosos para se fortalecer e ajudar a comunidade: a corrida e o ensino. Há quase duas décadas ela é o vetor que inocula bem-estar e conhecimento a 250 crianças e 200 adultos com seu projeto Vida Corrida. De segunda à sexta, no parque Santo Dias, ela coordena treinos de corrida. No sábado, dá aulas de inglês.

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Os adultos do Vida Corrida por uma das poucas áreas verdes do Capão. Foto: Guilherme Santana/ VICE

O encontro de Neide com a corrida foi casual. Aos 14 anos, foi chamada pelo professor de educação física na última hora para fechar o time de revezamento. Uma das titulares havia faltado. Nunca tinha "segurado o bastão", mas foi o melhor tempo de todas as garotas da corrida.

Ela continuou correndo. Tornou-se maratonista (42,2 quilômetros) e obteve a marca de 3 horas e 10 minutos, tempo que muito marmanjo bem treinado jamais vai conseguir na vida. Neide chegou a receber convite do São Paulo Futebol Clube para se tornar atleta profissional, mas sua vida corrida a impediu.

Ainda assim, a corredora do Capão seguiu com a demanda reprimida. Sua militância na Associação de Moradores da COHAB Adventista veio preencher a lacuna. Ela ajudou a pressionar a entidade para conservar a área como parque e, depois, virou multiplicadora do esporte. O Vida Corrida nasceu em 1998, ainda não com esse nome, quando Neide treinou uma vizinha septuagenária; a seguir, fez o mesmo com um grupo de 30 mulheres da comunidade. Foi Marcos, o filho que perderia a vida em 2000, que sugeriu à mãe que também incluísse as crianças entre seus alunos de corrida.

Sua ação no Capão Redondo comecou a ganhar visibilidade – em outras palavras: passou a ser conhecido pelos jornalistas bem-nascidos – em 2009, quando Neide foi convidada a falar do que fazia no Capão no evento Nike Gamechangers, que premia projetos de inclusão social. Depois da palestra, pressionada a inscrever seu projeto, ganhou R$ 5 mil e o patrocínio da Nike, hoje o principal investidor do Vida Corrida.

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E a molecada. Foto: Guilherme Santana/ VICE

Há pelo menos dois atletas de alto rendimento revelados por Neide. Um deles é Jonathan Santos Rocha, que correu no Vida Corrida desde criança e sonhava conhecer o maratonista brasileiro Marilson Gomes dos Santos. Hoje ele é treinado pelo mesmo treinador do Marilson. Neide aposta que o ex-pupilo estará na delegação brasileira da Olimpíada de Tóquio, em 2020.

E há também o para-atleta Julio César da Cunha, que sofre de glaucoma degenerativo e que deverá participar da Paraolimpíada do Rio nas provas de atletismo dos 3.000, 5.000 e 10.000 metros.

Mas garimpar atletas de alto rendimento não é a finalidade da Vida Corrida. Prover inclusão social e lazer para a população carente, sim. Gente como Maria Cristina dos Santos, de 42 anos, que sempre viveu no Capão Redondo e ajuda a sogra fritando coxinhas. Ela diz que perdeu 8 quilos correndo e, melhor, conseguiu controlar as farras e o pé-na-jaca comuns em fins de semana na periferia. Hoje bebe menos e come melhor, além de se dizer mais bem disposta.

O cabeleireiro Manoel Severino da Silva, 50 anos, que toca sozinho seu salão perto do Terminal Capão Redondo e treina pela manhã no Santo Dias com suas duas filhas, Maria Julia, de 9 anos, e Manuelli, de 7, é outro admirador de Neide e do esporte. Ele corre para controlar o colesterol alto e também para ter disposição no salão, que abre logo às 9h, assim que deixa o Santo Dias. Seu objetivo é participar em fevereiro de sua primeira meia-maratona (prova de 21 quilômetros) e quer fechá-la com tempo inferior a 1 hora e 40 minutos, um tempaço.

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Manoel é também, como tantos outros colegas, a personificação do desejo atendido do pretinho do Capão retratado em Fim de semana no parque:

"E fim de ano foi melhor pra muita gente/

Eles também gostariam de ter bicicleta/

De ver seu pai fazendo cooper tipo atleta"

E isso – a mente e a alma não podem esquecer – por causa de Neide.