De 'A Última Noite' a 'BlacKkKlansman': O homem por trás da música de Spike Lee
Imagens via Terence Blanchard / Wikipedia Commons | Arte por Noel Ransome.

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Música

De 'A Última Noite' a 'BlacKkKlansman': O homem por trás da música de Spike Lee

O música de New Orleans Terence Blanchard fala sobre racismo, NFL e violência policial.

Passei por uma fase no começo da adolescência onde um filme exigia uma linguagem particular para chamar minha atenção: uma imagem da minha negritude, um som da minha vida urbana, um senso da minha pobreza. E considerando a obra de Spike Lee, Irmãos de Sangue parecia atender todas essas exigências. A história é simples; um pequeno traficante (Mekhi Phifer) vai de acusado de homicídio a possível vítima de assassinato.

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Então, naturalmente, eu tinha expectativas; um conto estilo Os Donos da Rua ao som de hip hop. O que recebi foi um trompete climático com fundo de orquestra. Não era o que eu esperava, e isso mudou minha maneira de ver os filmes. Daquele dia em diante, me apaixonei pelas escolhas musicais ousadas de Spike Lee, mas sem saber que era o músico de New Orleans Terence Blanchard que estava por trás de boa parte daquele toque soul.

Além de estar envolvido nos meus filmes favoritos ( Malcolm X, Além dos Limites, Mais e Melhores Blues, A Última Noite) enquanto ganhava cinco Grammys, Blanchard continua trabalhando. Ele toca com sua nova banda (o E-Collective), compôs a música para o último filme do Spike, BlacKkKlansman, e ainda achou tempo para falar comigo como um tio falaria de boa com um sobrinho.

De violência policial a Irmãos de Sangue, conversamos sobre tudo.

Spike Lee e Terence Blanchard na estreia de 'Esquadrão Red Tails', via Getty.

VICE: Muito do nosso público conhece Spike Lee, mas não você, o que é praticamente um crime. Fale um pouco sobre sua jornada na indústria da música para o cinema.
Terence Blanchard: Foi uma jornada em que eu nem sabia que estava, cara [ Risos]. Estudei composição desde os 16 anos em New Orleans com um homem chamado Roger Dickerson, que era professor de piado e composição. Meu encontro com o Spike Lee aconteceu quando ele ouviu um trecho de uma música minha num disco em que eu tinha trabalhado e adorou. Ele me disse “Olha, cara, posso usar isso?” E eu disse “Claro, cara”. Logo depois ele me pediu para compor um arranjo. Ele ouviu e disse “Cara, você tem futuro nesse negócio”. Nem pensei muito nisso. Mas aí Febre da Selva saiu, e estamos trabalhando juntos desde então.

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Foi uma grande curva de aprendizado, claro. Não só em compor para filmes, mas em compor para o próprio Spike Lee. Ele não curtia música de fundo tocando durante o diálogo e tudo mais. Ele é muito voltado para a melodia. Se você reparar nisso nos filmes deles, nas cenas deles, todas tem um conteúdo melódico forte. É o estilo dele.

Fale sobre o processo de colaboração para encontrar esse som certo. Você e o Spike Lee vêm de meios diferentes, sujeitos a serem perfeccionistas. Como é essa troca?
A parte dele foi tipo “Não quero ouvir a música mudar quando uma porta bate, não gosto disso”. Ele gosta mais de orquestras. Essas foram as conversas iniciais. A gente se encontrava, eu levava as melodias, algumas coisas ele gostava, outras não. Caramba, vou te contar uma história que ninguém sabe.

Quando fizemos O Plano Perfeito, eu queria muito usar esse tema que lidava com o tópico do amor. Era para tocar no final do filme, quando o Denzel volta para casa e a esposa. Então coloquei uma flauta só pro Spike ouvir. Assim que isso passou pelos ouvidos dele, ele me disse que queria que fosse o tema principal. Então tive que dar um jeito desse tema de amor soar ameaçador e tenso. O primeiro tema que você ouve originalmente era uma trilha de romance.

Irmãos de Sangue (1995).

Sempre vi sua música como um personagem separado de uma história, como a trilha “Striker Packs Up” de Irmãos de Sangue . Queria saber como você vê sua música de um aspecto cinematográfico.
Isso volta para os meus dias de Art Blakey, que era um baterista de jazz. Ele dizia que a música lava a poeira do cotidiano. Para mim, a música tem que ser essa coisa que quebra barreiras. Tem que ser essa chave mestra que destranca a porta da alma. É isso que tento criar. Tem que ser algo universal que lida com um aspecto da humanidade.

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Não importa quem você é ou onde está, a música precisa te ajudar a se identificar com o filme, se identificar com a história e os personagens envolvidos.

Mas você não está falando de sentimentos com palavras tradicionais. Então quando você faz uma coleção de canções, digamos, para seu álbum Breathless, o que te ajuda a expressar o sentimento apropriado?
Pensar em indignação, na dor e luto que muitos de nós sentimos. Estou pensando nas pessoas não brancas que continuam argumentando com o público geral sobre o que está acontecendo, as pessoas que são menos ouvidas. Quando você olha o que está acontecendo na NFL, com os donos [dos times] tentando aprovar uma regra sobre ficar de pé para a bandeira. Eles não fazem nenhum esforço para lidar com a questão inicial, isso fala diretamente sobre a intolerância que a maioria das pessoas não brancas sentem. Eles ainda não reconheceram o problema dentro das forças da lei, as pessoas não brancas sendo baleadas na rua ou o controle de armas. Minha música fala com qualquer pessoa que tenha consciência sobre o que está acontecendo.

Para nós, ter que estar constantemente gritando para sermos ouvidos, só para nos dizerem que estamos desrespeitando nosso país, é uma farsa e uma sensação de frustração que ouço constantemente nas minhas viagens. Isso me alimenta, alimenta minha música porque algo precisa ser feito.

Isso às vezes é demais? Pensando na natureza da música, ela pode trazer memórias com uma única nota. Posso imaginar que às vezes você acaba em lugares sombrios.
Olha. Todos ficamos cansados, mas cresci na igreja e uma coisa que me disseram é que o Bom Deus nunca coloca nada sobre você com que você não possa lidar. Não temos tempo para ficarmos sobrecarregados. Há muita coisa pra fazer porque o mal é implacável e precisamos dar a mesma energia. E não importa quão mal eu me sinta, não lidei com nada comparado com o que os ombros sobre quais estamos em termos da história suportaram. Para mim, não, não fico cansado, frustrado, obviamente, mas isso não é razão para desistir.

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Mos Def, Terence Blanchard e Spike Lee | Imagem via Wikipedia Commons.

Dá pra entender por que você e Spike Lee têm um grande relacionamento. Você não ignora o mundo já que ele se liga a sua arte.
Isso volta para o que estávamos falando. Sinto que, toda vez que você liga a TV… Nunca vi tanta cobertura assim sobre um presidente e é loucura. Certas pessoas vão tentar manter seu poder e fazer dinheiro com isso. Não posso simplesmente passar para o tema de Breathless e me afastar do assunto enquanto jovens são mortos. Em Sacramento, Stephon Clark foi baleado 20 vezes sem motivo, enquanto um cara branco realmente matava pessoas no Canadá, um cara que estava tentando ser baleado e não conseguiu a mesma coisa. Uma das coisas que senti foi que eu nunca teria a chance que esse cara canadense teve. Essa é a realidade do meu país. Minha música visa curar e absorver essas frustrações.

Então você e sua banda sempre têm um comentário social em mente?
Vamos até esses lugares, cara. Fomos para Dalas, onde aqueles policiais foram baleados, assim como Minneapolis e Cleveland. Quando você experimenta esses lugares e as pessoas afetadas por esses eventos, isso se torna extremamente real e doloroso. Ver a escola onde Philando Castile trabalhava, e fazer uma apresentação para aquelas crianças do ensino fundamental… foi incrível porque olhar para aquelas crianças era como olhar para um quadro de Jackson Pollock. As cores de todos os tipos e religiões diferentes. Um dos funcionários lá virou para nós e disse “cara, sabia que o Phil era um garoto muito doce”. O jeito como ele disse isso foi embaraçoso, mas foi uma declaração pessoal muito clara sobre o que perdemos. Um ser humano que fazia a coisa certa.

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Tudo isso se torna real pra você, e você sente o nível de intolerância de pessoas que ignoram a dor dos outros. Musicalmente, não posso ignorar isso. Não posso acrescentar à intolerância. Quero ajudar as pessoas a se curarem disso.

Pensando no seu trabalho para os filmes do Spike Lee, você pode dar uma ideia do processo de pensamento por trás da criação das trilhas?

Crooklyn – Uma Família de Pernas Pro Ar

Começando com Crooklyn, tinha algumas coisas acontecendo. Zelda Harris, que faz a Troy, teve um papel-chave aqui. Muita da história é contada através dos olhos de uma garotinha, então para mim tinha que ter uma certa diversão na trilha de Crooklyn que de certa maneira é diferente dos outros filmes.

A Última Noite

Cara, o desafio aqui para A Última Noite, como eu e Spike Lee conversamos, era nunca deixar o público esquecer que essa era a Nova York pós-11 de Setembro. Por isso você tem um som meio árabe, as gaitas de fole e instrumentos irlandeses na trilha. Certas áreas tinham certos sons que pintavam um fundo dessa cidade pós-11 de Setembro. Spike, claro, fez isso cinematograficamente, incluindo caminhões de bombeiro com pessoas ainda limpando os escombros ao redor das Torres Gêmeas. Uma grande porção da música serve para pintar o filme naquele tempo.

Irmãos de Sangue

Irmãos de Sangue é outra história de Nova York. O que lembro distintamente é que o Spike tinha um monte de material de hip hop para aquele filme. Foi uma das coisas sobre a qual falamos, uma história urbana que lidava com temas urbanos, mas feita de uma maneira profunda. Minha ideia era elevar tudo isso através da trilha, ver isso dos olhos de como seria ter uma orquestra colorindo cenas muito urbanizadas, em vez de uma trilha de hip hop ser o fundo musical.

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BlacKkKlansman

Essa é única. Tínhamos uma orquestra, claro, porque essa sempre foi a ideia. É sobre a elevação do personagem, mas também tentei usar minha banda E-Collective para criar um fundo R&B daquele período. No começo e chegando no final do filme, você ouve essas frases desses grooves, que na verdade ajudam a impulsionar certos temas, mas feitos na tradição dos filmes dos anos 70. Pelo menos foi o que tentei imitar.

Sempre gostei disso em Irmãos de Sangue de 95. N uma era de filmes como Perigo Para a Sociedade e Os Donos da Rua , você não esperava uma orquestra na trilha.
Exatamente. Falamos sobre isso. Muitas vezes as pessoas acham que “ah, é um personagem negro, não precisamos de orquestra, é só colocar hip hop”. As pessoas ainda associam orquestra com uma tradição europeia, e entendo isso, mas não é só europeia. Essa pode ser a origem, mas muitas outras pessoas incríveis influenciariam essa arena de criatividade musical por gerações.

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