O dialeto particular do rugby feminino from Brazil
Treino da seleção brasileira de rugby feminino em São Paulo. Foto: Felipe Larozza/VICE

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O dialeto particular do rugby feminino from Brazil

As mulheres da seleção de rugby falam português, um pouco de inglês, urram, gesticulam e gritam mais um pouco. É o idioma de quem quer uma medalha nas Olimpíadas Rio 2016.

"You get the ball and then you run", explicava o técnico neozelandês da seleção brasileira de rugby feminino, Chris Neill, para suas jogadoras reunidas no centro do campo. "Você pega a bola e corre para lá", traduzia uma das atletas enquanto imitava o gesto do treinador, apontando para o outro lado do campo. "Entenderam?". Em formação, a maior partes delas se encarava de frente para tentar roubar a bola, como pediu o técnico. Na outra metade do campo, as outras corriam de encontro a um colchão azul para treinar a resistência. Dava para ouvir os impactos de longe.

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Todo o conforto de um colchão azul. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Há dois anos, Neill tenta fazer o Brasil falar a língua do rugby. No comando da seleção feminina desde 2013, ele busca, com o little help da equipe técnica e das jogadoras, passar alguns macetes e ensinamentos que aprendeu em seu país, um dos mais tradicionais da modalidade. Nem todas falam inglês, mas todas se entendem. Na mistura de gestos e gritos, todas sabem o que fazer com a bola oval. É quase um dialeto particular.

Não é violência, é jogo de contato, ok? Foto: Felipe Larozza/ VICE

Os treinos com Neill são diários. Começam às 10h da manhã e vão até 16h. O objetivo da equipe nem precisa ser traduzido em gestos: todos querem estar no pódio nas Olimpíadas do Rio em junho, assim como rolou nos últimos Jogos Panamericanos de Toronto, em 2015, quando conquistaram o bronze.

Se a falta de tradição do Brasil no esporte conta algo nos torneios mundo afora, nas Olimpíadas, dizem as atletas, nada disso valerá: essa é a primeira vez em 92 anos que o esporte aparece na competição, com equipes masculina e feminina. (Existem duas modalidades de rugby, a que será jogada no Rio de Janeiro esse ano é a Sevens, com sete jogadoras em campo.) Todos os times passarão pelo nervosismo de estrear nos Jogos Olímpicos.

"Coach" Neill explica o movimento que as jogadoras devem fazer durante o treino. Foto: Felipe Larozza/VICE .

Para conquistar a tão sonhada medalha, as meninas fazem, além do treino, boas sessões de academia. Querem chegar fortes na competição. Mas não naquele esquema fitness ou maromba, como muitos pensam. Apesar de soar como um cenário de gente forte e atlética para aguentar os trancos, o rugby é um esporte que acolhe diferentes biotipos da geração saúde. "Tem que ter o magrelo corredor, o altão sem jeito, o baixinho sagaz, é um esporte muito democrático", me conta Beatriz Muhlabuer, conhecida como Baby, à beira do campo. "Se for no futebol, o gordinho fica ali sentado no banco. No rugby ele tem lugar também."

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Atlética, Baby é a jogadora mais velha da seleção, com 29 anos e 17 de prática no esporte — "tô ficando velha", ri. Tirando uma onda, ela disse que até eu, zero tipo atlética, poderia me encaixar numa equipe de rugby. "Você é magrinha e pode jogar, talvez você tenha que ganhar uma carcacinha", brincou. "Mas tem lugar para todo mundo. Esse é um dos valores do rugby, ter as diferenças biológicas mesmo."

Baby começou a jogar por causa da irmã, Cristiana Futuro, que hoje é árbitra e inclusive apitou jogos no Campeonato Mundial em Dubai. As duas começaram a jogar em Niterói, no Niterói Rugby Football Club, mas Cris começou primeiro. "Fui ver minha irmã jogar e fiquei amarradona. No começo tive um pouco de medo, porque é um esporte diferente de tudo que a gente já jogou e tem que ter coragem" conta. Passado o susto, foi só amor. "Me apaixonei muito pela cultura do rugby. É muito diferente de qualquer outro esporte que eu já tinha visto na vida. Fiquei encantada com isso, como isso é assim no mundo inteiro", diz.

Beatriz Baby, 29 anos, a mais experiente da seleção. Foto: Felipe Larozza/VICE

É esse clima de aceitação das diferenças o que faz as atletas se apaixonarem pelo esporte e tentarem abrasileirá-lo. Letícia Olivares, de 22 anos, jogadora desde 2011, é um baita exemplo: ela jogava futebol de areia nas praias do Rio de Janeiro e, cansada da marra do pessoal da categoria, resolveu mudar de ares. "O rugby tem valores de respeito, disciplina, humildade. Isso acaba movendo as pessoas. Eu vim do futebol, onde tinha muito estrelismo, gente marrenta, por isso que eu escolhi o rugby. Aqui as pessoas te acolhem", me contou.

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Letícia chegou ao rugby por indicação. Um dia, na academia, sugeriram que ela tentasse a modalidade desconhecida. De primeira, não quis encarar. Achou o que todo mundo acha: que era um esporte violento. Na segunda vez, ela percebeu que o violento não era… violento. "Era só o impacto, mas não é feito para agredir a pessoa, você faz com segurança o movimento", afirma. Fora da seleção, ela continua jogando em Niterói, onde tudo começou, no mesmo clube de Baby.

Letícia Olivares, 22, veio do futebol de areia. Foto: Felipe Larozza/VICE

Confesso que, ao ver alguns jogos de rugby, achei que um dos requisitos para ser jogadora era ter sangue nos olhos. Vi puxão, agarrões, gente no chão, aqueles cravos da chuteira, músculos, rostos de quem não curte amizades. Mas a real é que, ao vivo e a cores, me pareceu um jogo bem disputado e leal. Mais do que o futebol até. "Tem contato, mas não é violento", me disse a jogadora mais jovem da seleção, Bianca Santos, de 17 anos.

Suave. Foto: Felipe Larozza/VICE

Precoce, Bianca começou a jogar aos 10 anos no Instituto Rugby Para Todos, presente na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo. Foi descoberta pelo técnico da seleção aos 15 e já marcou pontos no Campeonato Mundial em Dubai ano passado, competição que o Brasil pegou o décimo lugar. "Meu coração foi a mil. Foi o meu primeiro jogo com as meninas mais experientes, contra a França. Eu tinha que mostrar trabalho, ter responsabilidade aos 15 anos não é fácil, mas quando eu peguei a bola e varei a linha, foi demais. A gente não ganhou, mas foi incrível", conta, sorrindo até com os olhos.

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Bianca Santos, 17 anos, a mais novinha. Foto: Felipe Larozza/VICE

O discurso de paz prevalece entre todas as jogadoras. Ninguém parece ter medo de se quebrar. A Karina Godoy joga há seis anos dos seus 23 e explica que os movimentos de contato são todos ensaiados durante o treino. "É tudo técnico. Algumas lesões corporais acontecem, mas não é violento", diz. "É anti-jogo dar soco, pescoçada, tem que se preparar para não se machucar."

Karina chegou no rugby por acaso. Em São José dos Campos, ela estudava e trabalhava na área de segurança do trabalho. O esporte era só um hobby. Chegou em um treino achando que era de handebol, mas deu de cara com uma bola que não era redonda. Acabou se entregando mesmo assim e largou o trampo para treinar. Hoje se dedica somente ao esporte e integra o São José Rugby Clube.

Karen Godoy, 23 anos, achou que ia a um treino de handebol. Foto: Felipe Larozza/VICE

Para as Olimpíadas deste ano, as equipes receberam investimento do Ministério do Esporte e da Confederação Brasileira de Rugby (CBRu). Fora do meio olímpico, o rugby está bastante presente nos jogos universitários e em projetos sociais, como o Rugby Para Todos, de onde veio a Bianca. Entre equipes de Rugby XV e Sevens, são mais de 300 agremiações esportivas que competem no Brasil por uma vaga nos campeonatos nacionais, o Super 8 (da modalidade XV) e o Super Sevens.

Caso as jogadoras cumpram o objetivo, a medalha deve trazer mais visibilidade ao esporte e mais reconhecimento dos atletas. Quem sabe aí possamos falar do rugby com tanta naturalidade que nem pareça mais coisa de gringo.

Foto: Felipe Larozza/VICE

Foto: Felipe Larozza/VICE

Foto: Felipe Larozza/VICE