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Identidade

Mulheres trans explicam a parte favorita de suas transições

Do nome social a forma como usam o cabelo, algumas mudanças podem servir como refúgio da disforia de gênero.

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

Quase toda pessoa transgênero experimenta disforia de gênero (a falta de conexão entre o gênero com que a pessoa se identifica e o gênero do seu corpo), mas para mulheres trans essa disforia é compartimentada pelo sexismo inerente da sociedade e o jeito como ela trata o corpo das mulheres. Não podemos usar banheiros públicos sem receber reações negativas, e muitas mulheres trans são humilhadas pela sociedade por divergir das expectativas já altas para os corpos das mulheres, do peso à voz até o que tem dentro da sua calça.

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Como mulher trans, já tive que lidar com cissexismo (sexismo contra pessoas trans) amplificado por transmisoginia, a opressão de mulheres trans negras, que estão sujeitas a algumas das formas mais pesadas de discriminação e violência. E para mulheres trans de todos os tipos, a natureza do próprio sexismo e discriminação contra trans na sociedade tornou a transição difícil, para dizer o mínimo.

Mas se a narrativa cercando nossa comunidade for de constante negatividade e desespero, nunca poderemos prosperar. Muitas mulheres trans encontram refúgio contra a disforia de corpo e gênero durante a transição; coisas como mudar o jeito como você usa o cabelo ou mudanças específicas no seu corpo podem se tornar um farol de esperança. Entrevistei cinco mulheres trans norte-americanas sobre as partes da transição que elas mais gostaram, aquelas que as ajudaram a se sentir como as mulheres que elas realmente eram.

Eva Thomas, Missouri

Quando me sinto realmente disfórica, coloco um espelho na frente do meu rosto. Procuro feminilidade. Olho meu rosto e vejo as mulheres da minha família, o que me faz relembrar o legado de mulheres negras fortes do qual faço parte. Olho meus lábios e vejo minha mãe. Olho meus olhos e vejo minha avó. Olho meu nariz e vejo minha bisavó. Encontrar feminilidade nas minhas características naturais diminui minha disforia e me faz sentir um orgulho profundo.

Quando era criança, sempre me disseram que eu parecia com diferentes homens da minha família. Eu lutava contra isso me ligando a parentes mulheres — e fazia isso sem nem perceber quanto isso conectava minhas experiências com a feminilidade. Uma vez, quando eu tinha nove anos, lembro que minha mãe achou uma foto antiga dela com a mesma idade que eu; meus primos viram a foto e disseram “Uau, parece você usando peruca”. É uma memória que guardo com carinho, e quando a puberdade chegou, eu tirava prazer disso. Assisti meu queixo se tornar mais quadrado e definido; meus pés e mãos começaram a crescer, mas o resto do meu corpo não acompanhou. Muita gente me disse que eles são desproporcionais para o resto do meu corpo. Isso foi algo com que lutei.

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Alguns anos atrás, comecei a malhar e desafiar os limites do meu corpo. Fiz isso para fugir da transição e talvez finalmente deixar meu corpo proporcional. Desde então venho trabalhando para perder aquela massa muscular, mas agora vejo aquela criança que fui um dia — com mãos e pés muito grandes e um corpo pequeno e magrelo. Mas meu rosto não me traiu tanto nesses anos. É uma coisa que sinto que não preciso mudar.

Definitivamente me comparo demais com mulheres cis, o que só me leva a apontar características faciais que não combinam com os padrões “tradicionais” de beleza. Mas quando penso nas mulheres da minha família que vieram antes de mim, reclamo minha própria narrativa, e a minha posição na narrativa da feminilidade que tantas vezes é negada a mulheres trans. Temos que reclamar nosso tempo.

Ada Powers, Califórnia

Por mais clichê que seja (para uma garota trans), nada me faz sentir mais feliz com o meu corpo que meus seios: como eles parecem quando estou em pé, ou como se apoiam no meu braço quando vou dormir; como eles ficam num sutiã, num vestido, ou nas mãos de alguém; ter um peito para apoiar o rosto de pessoas com quem me importo, para levantar as sobrancelhas dos meus amantes, para exigir atenção. Eles me fazem sentir poderosa, confiante e, principalmente, eu mesma, uma parte do meu corpo que nunca tive mas com que felizmente pude me reunir.

O desenvolvimento dos meus seios foi uma constante durante minha transição médica, e sempre foram uma fonte de emoções fortes. Quando meu peito começou a doer com um começo de seios, a sensação que isso mandou pelo meu corpo confirmou que esse era, de fato, um caminho que eu queria seguir. Aí eles emergiram lentamente, pequenos e macios, precisando ser escondidos sob cachecóis e suéteres. Eu olhava para eles dez vezes por dia, do mesmo jeito que uma criança fica olhando toda hora a caixa de correio mesmo sabendo que seu presente de Natal não está nem perto de chegar.

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Conforme eles cresceram, mudando a forma do meu corpo de maneiras pequenas mas notáveis com os meses, eles se tornaram um encorajamento constante para evoluir meu senso de moda, encontrar novas maneiras de mostrá-los, experimentando novas roupas que me deixavam nervosa ou disfórica demais antes.

Dois anos depois de começar a tomar estrogênio, com minha transição social completa, ainda olho para eles toda manhã no chuveiro, seguro meus modestos peitos tamanho 40, uso meus dedos para detectar se houve mais crescimento, sabendo que ainda tenho mais alguns anos dessa segunda puberdade estranha pela frente. E mesmo que meus dias sejam mais calmos agora, com minha transição uma parte estabelecida da minha vida, sempre me lembro que poder olhar no espelho vendo a mim mesma sem cair numa espiral de desejos e esperanças, é um presente que só recentemente aprendi a dar a mim mesma.

Nicole Lynn Perry, Washington

Como servi no exército (algo que fiz parcialmente por causa da minha disforia), poder deixar meu cabelo crescer é algo que me causa menos disforia. Agora posso fazer o que quiser com meu cabelo. E isso trouxe comparações com Angela Davis — comparações que acho incríveis porque também sou uma ativista.

Minha parte favorita da minha transição é meu ativismo. Apesar dos momentos em que sinto que não deveríamos ter que trabalhar tanto por isso, prefiro ter que me levantar e representar minha comunidade do que me sentar e não fazer nada. Todas as conexões que fiz local e nacionalmente não me deram só uma comunidade com quem falar, mas também uma família sempre ao meu lado.

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Jady Morelli, Michigan

Meu cabelo nunca foi uma fonte de disforia para mim. Sempre foi escuro, grosso e com ondas naturais. Posso fazer o penteado que quiser. Isso é legal. E meus pés, estranhamente. Eles eram tamanho 40 quando comecei; mas agora são 39, um tamanho feminino.

Uma coisa que os hormônios consertaram e que me deu esperança foram meus olhos. Eles eram afundados, sonolentos, meio fechados, e com a mágica de tomar alguns comprimidos azuis e brancos todo dia, eles ficaram maiores e mais femininos. Eles também mudaram de cor, de um castanho muito escuro para um tom um pouco mais claro e esverdeado. E isso me faz sentir mais feminina que nunca quando olho no retrovisor do meu carro. Também tenho treinado minha voz, e consegui erradicar o gatilho do meu tom mais grosso.

Jenna Porter, Indiana

Jenna. O meu nome. O destino final de uma longa lista de nomes por que passei na minha vida. Eu sempre soube que o nome que me deram no meu nascimento não era certo para mim, então usei minhas iniciais, apelidos, escolhi outros nomes em várias ocasiões, uma vez até mudei ele legalmente. Mas nenhum nome nunca pegou, até eu perceber por quê: eu era transgênero. Isso colocou os 25 anos anteriores em perspectiva. A vida que vivi — incluindo os incontáveis nomes que usei — nunca pareceu certa porque não tinha a feminilidade que eu desejava lá no fundo. Aceitar esse fato me deu a liberdade para encontrar o que eu precisava, e achar um nome que me descrevesse da maneira certa, que retrate o que preciso retratar, e isso é de longe a melhor parte da minha transição. Nunca vou deixar de me surpreender com a alegria que meu nome me traz.

A terapia hormonal de substituição (THS) também teve um papel tremendo em me trazer alegria. A THS trouxe incontáveis mudanças, mas para mim, a melhor até agora foi o desenvolvimento dos meus seios. Sempre estive acima do peso, então meu peito nunca foi achatado, mas ter um peito gordo não é nada parecido com ter seios. Meu peito antes de começar a THS me trazia muita dismorfia. Agora? Amo meus seios. O crescimento, a redistribuição de gordura, o formato, são coisas que não estavam aqui antes. Meus seios são incríveis — e alguém já me disse isso. Eles são bonitos, sensuais, tudo que eu sempre quis. A feminilidade que eu desejava tão desesperadamente finalmente apareceu, e uma parte do meu corpo que antes me causava tanta disforia agora se tornou minha parte favorita. Eu não poderia pedir mais que isso.

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