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A Copa do Mundo É Tipo a Fashion Week da Indústria de Segurança do Brasil

Num momento em que gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral são usados para reprimir centenas de brasileiros fora dos estádios da Copa do Mundo, achei que era uma boa hora conversar com a professora Anna Feigenbaum sobre o uso de armas não letais.
Leonardo Bianchi
Rome, IT

Um policial dispara gás lacrimogêneo na altura da cabeça dos manifestantes em Istambul. Foto por Mystyslav Chernov/Wikimedia. 

Nos últimos anos, o gás lacrimogêneo se tornou um elemento essencial de todo protesto; de São Paulo a Istambul, de Caracas a Atenas, é quase uma certeza matemática que cedo ou tarde cartuchos de gás vão inundar ruas e praças, sufocando manifestantes e, em casos extremos, acertando pessoas na cabeça.

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A mídia adora imagens de praças cercadas por uma nuvem de gás lacrimogêneo, mas raramente fala das empresas que produzem e vendem essas ferramentas aos governos, que lucram muito no processo.

Anna Feigenbaum, professora da Bournemouth University, está escrevendo um livro sobre como o gás lacrimogêneo e outras armas “não letais” mudaram o controle da ordem pública. Num momento em que gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral são usados para reprimir centenas de brasileiros fora dos estádios da Copa do Mundo, achei que era uma boa hora conversar com a Anna.

Policiais brasileiros com equipamento de choque. Foto por Raphael Tognini.

VICE: Oi, Anna. Vamos começar pelos protestos da Copa do Mundo no Brasil. Com as forças policiais que reprimem brutalmente as manifestações, você escreveu recentemente que “a Copa do Mundo é como a semana de moda” para a indústria de segurança do país. Por quê?
Anna Feigenbaum: Os estilistas fazem desfiles o ano todo, mas a Semana da Moda é o período que mais se destaca. Os maiores talentos do mundo se reúnem e a mídia vai atrás deles. Essa é a hora de mostrar o melhor das marcas.

Para a indústria de segurança de eventos, além de exposições como a Feira Internacional de Defesa e Segurança LAAD, no Brasil, a Copa e as Olimpíadas oferecem uma ótima oportunidade de mostrar as novas coleções de equipamentos de controle de tumulto sob condições “reais”. Os produtos vão das vitrines para as ruas e os compradores do mundo todo podem vê-los em ação.

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Hoje, quase toda manifestação acaba com a polícia usando grandes quantidades de gás lacrimogêneo, balas de borracha, bombas de efeito moral e outras armas “não letais”. Sempre foi assim?
Acho que o problema vem de uma combinação de tolerância à violência policial por parte dos governos e a grande variedade do arsenal menos letal a que a polícia tem acesso hoje. Pesquisadores descobriram que quanto mais armas a polícia tem, maiores são as chances de ela optar pela escalada do uso da força. Combine isso a uma situação em que a condenação de policiais por abuso de força é baixíssima e vamos continuar vendo o uso excessivo dessas armas.

Em termos de história, o abuso de armas menos letais tende a acontecer em tempos de revolta e turbulência global. Países diferentes enfrentaram o uso excessivo de força em ocasiões distintas: os EUA nos anos 1950, a África do Sul nos 1970, a Coreia do Sul nos 1980 e ativistas antiglobalização no final dos 1990 e começo dos 2000, como visto em Gênova em 2001. No entanto, com a Primavera Árabe e os protestos contra a austeridade acontecendo pelo mundo todo agora, houve um grande boom na indústria.

Egito. Um manifestante mostra cartuchos usados pela polícia contra a multidão. Foto por Trevor Snapp

A mídia sempre cobre revoltas e protestos violentos, mas parece estar menos interessada em informar quem são os fornecedores de gás lacrimogêneo e outras armas “não letais”. Como a indústria da segurança se desenvolveu pelo planeta nos anos recentes?
Esse é um ponto muito importante. Quando se descobre que um país está estocando mísseis ou remédios, a mídia quer saber de onde eles vieram. Mas com as armas menos letais, trata-se unicamente de uma nuvem de fumaça nas ruas para complementar a história; é como se o gás lacrimogêneo tivesse se tornado um fundo indispensável, algo que faz as pessoas realmente acreditarem que estão vendo um tumulto.

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Em termos de desenvolvimento da indústria, há um mercado de armas menos letais desde 1900. Mas foi seu amplo desenvolvimento e promoção nos anos 1990 que realmente levou ao crescimento do mercado. Fabricantes de nações menores se juntaram e vemos muita integração horizontal e vertical na indústria. Exposições internacionais se espalharam pelo mundo, mostrando os produtos para compradores do exército e do governo.

Como as armas menos letais ainda não são muito bem regulamentadas pela lei internacional e políticas de comércio, é relativamente fácil adquirir grandes quantidades delas sem escrutínio público ou supervisão dos direitos humanos. Para quem é fabricante ou fornecedor, um bom mercado é aquele em que você consegue mover seu produto com facilidade. Em termos de negócio, as armas menos letais criaram e depois preencheram um nicho: a exigência de controle político sem números de mortes catastróficos.

Atualmente, muitos países africanos e do Oriente Médio estão abraçando produtos similares ao gás lacrimogêneo. Como essas armas são toleradas no momento, e até promovidas por democracias ocidentais, os países podem usá-las para reprimir protestos sem acabar sob investigação internacional.

Qual é a relação entre os governos e as corporações de segurança? Quer dizer, quem realmente está no controle? Quem toma as grandes decisões: os governos ou as corporações de segurança?
Depende do contrato. Às vezes, o governo é o comprador, outras vezes, isso pode ser uma compra direto de uma corporação, como aconteceu com a firma de mineração africana que adquiriu recentemente o primeiro drone de controle de tumulto. Felizmente, há casos em que ativistas conseguiram que um governo proibisse suas empresas de fornecer para países em particular. Por exemplo, Brasil, EUA e Coreia do Sul proíbem que suas corporações forneçam gás lacrimogêneo para Bahrein, devido ao desrespeito contínuo aos direitos humanos no país. No entanto, companhias chinesas continuam fornecendo esses produtos.

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Bahrein, foto por Ahmed Al Fardan

Falando sobre Bahrein, protestos vêm sacudindo o país nos últimos três anos. Ativistas locais dizem que o uso indevido de gás lacrimogêneo pelas forças de segurança “equivale a uma guerra química” e alguém escreveu que o governo está “viciado em gás lacrimogêneo”. Você considera Bahrein como um “estudo de caso” em manutenção da ordem pública?
O que torna o abuso de gás lacrimogêneo e armas “menos letais” em Bahrein tão visível é seu uso excessivo. Lá, isso é usado de maneiras que podem aumentar o sofrimento e causar mortes. O que inclui atirar cartuchos a curta distância na cabeça e na parte superior do corpo, usar gás lacrimogêneo em espaços pequenos como carros, escadarias e casas, e o uso agressivo de chumbinho, fornecido por empresas do Reino Unido e Itália. Bahrein deve servir para destacar os perigos dessas armas, mas também para nos lembrar que esses abusos acontecem no mundo todo.

Você vê uma tendência de militarização da polícia e/ou um controle de choque mais “sofisticado”? E como isso se relaciona ao negócio em expansão das armas não letais?
Eu diria que tanto o exército quanto a polícia estão se tornando mais militarizados. A polícia e o exército têm uma longa história de troca de táticas e equipamentos, algo que data dos primórdios da formação das forças policiais. Por exemplo, o gás lacrimogêneo passou dos militares para os policiais nos anos 1920. Nos anos 1960, ex-oficiais militares escreveram os primeiros manuais amplamente usados de controle de tumulto. E, mais recentemente, armas acústicas, armaduras corporais e táticas como o swarming [em que várias unidades atacam de várias direções] e o snatching [em que policiais entram na multidão para agarrar um ou mais indivíduos] passaram do exército para as forças policiais.

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A indústria de treinamento e táticas é tão grande quanto a própria indústria de armas. Desde os anos 1990, quando faltavam restrições de comércio e comunicação digital, a indústria vem se tornando cada vez mais transnacional. Essa troca transnacional de “conhecimento” – ainda dominada pelos EUA – leva a um controle de tumulto mais “sofisticado”.

Turquia. Protestos depois da morte de Berkin Elvan, 15 anos, atingido por um cartucho de gás lacrimogêneo. Foto por Barbaros Kayan

Por que os governos e, até certo ponto, a opinião pública veem o gás lacrimogêneo e outras armas “não letais” ou “menos letais” como métodos inócuos e até “humanitários”, de controle de multidão?
Ao falar em armas menos letais, ouço muitas vezes que “pelo menos não são balas de verdade”. Mas esse não é o problema. Claro, se eu tivesse que escolher entre gás lacrimogêneo e tiros de metralhadora, eu ficaria com o gás. O verdadeiro problema é que o uso dessas armas menos letais se baseia na noção de que elas são drogas inofensivas quando usadas na dose correta. Mas, na realidade, há muitas mortes e ferimentos sérios devido ao uso de armas menos letais todo ano. Os efeitos a longo prazo ainda são pouco estudados e o impacto psicológico é desconhecido.

As armas não letais só são vistas como armas quando há uma vítima direta. E mesmo assim, para que isso possa influenciar a opinião pública, a vítima precisa ser alguém importante (como um jornalista) ou inocente (como uma criança) que sangra.

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Essa “invisibilidade” faz com que armas como o gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral, que danificam ouvidos e órgãos internos, pareçam inócuas. Em parte, essas qualidades típicas são o que permite que elas sejam vendidas como uma forma humanitária de controle de multidões há quase 100 anos.

A história também é muito importante. Nos anos 1920 e 1930, campanhas agressivas de relações públicas foram veiculadas para criar um mercado comercial para os gases de guerra. Anúncios e editoriais foram publicados em revistas, demonstrações ao vivo foram realizadas e o governo fez lobby para ocultar descobertas científicas negativas a esse respeito. Mesmo o nome “gás lacrimogêneo” foi escolhido por parecer inócuo. “Equipamento de tortura psicológica que induz vômito e sufocamento” não teria soado tão bem.

A empresa Condor defende um “uso controlado da escalada de força, sem qualquer dano aos direitos humanos”, e a retórica da corporação insiste no caráter “não letal” das armas de controle de multidão. Mas como é possível proteger os direitos humanos utilizando armas químicas, proibidas de serem usadas em guerras pelas convenções internacionais?
As armas químicas foram proibidas em guerras para impedir que fossem usadas ofensivamente para causar danos intencionais. Pela lei internacional, “agentes de controle de tumulto” estão isentos da proibição, com base em que essas armas podem ser usadas efetivamente, de formas menos tóxicas, para propósitos de manutenção da lei. Mas, na verdade, não é assim que os agentes químicos são usados contra civis na maioria das vezes.

Agentes de controle de tumulto são usados com muito mais frequência para reprimir direitos de comunicação do que para impedir tumultos reais. Na verdade, o uso de armas de controle de multidão por forças de segurança já provou causar tumultos mais violentos.

Além disso, agentes de controle de tumulto são geralmente usados de modo ofensivo pelas forças de segurança, não como forma de defesa. Vemos isso de modo recorrente nos protestos de rua e em prisões ao redor do mundo, onde o gás lacrimogêneo é usado em espaços fechados e disparado a curta distância contra pessoas desarmadas. E mais, balas de borracha e munição real são usadas com frequência junto com fumaça, gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral, criando condições similares às de um combate.

É por isso que armas menos letais devem ser avaliadas sob condições reais, e não somente em laboratórios ou campos de treinamento militar.

Tradução: Marina Schnoor