O que sente um médico ao abrir uma cabeça para uma cirurgia cerebral
Ilustração por Corey Brickley

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Saúde

O que sente um médico ao abrir uma cabeça para uma cirurgia cerebral

Um neurocirurgião relata o que sentiu e o que fez durante a sua primeira operação para retirar um tumor cerebral a uma paciente.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.

O sistema para a imobilizar parecia quase medieval. Não podia realizar esta manobra aplicando uma pressão gradual, como quem aperta um torno. É preciso exercer força de forma rápida e decidida. Utilizei um imobilizador de cabeça com varetas, para fixar o crânio à mesa de operações, para o caso de a paciente se mexer enquanto a operava.

As três varetas de metal frio, em forma de lança, haveriam de se "agarrar" ao crânio, depois de perfurado o couro cabeludo - uma à frente e duas na nuca -, sendo que todas estão ligadas a uma braçadeira em forma de C. Como a braçadeira se fecha através de um mecanismo de torção, tive que começar a manobra aplicando a minha própria força. Enquanto a minha assistente segurava a cabeça da paciente a partir do pescoço, fechei a braçadeira rapidamente para imobilizar o crânio. O ruído das engrenagens de metal fez com que os estudantes, as enfermeiras e os outros médicos presentes na sala de cirurgias sustivessem a respiração e prestassem atenção.

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Este é o primeiro de centenas de passos que têm que ser feitos na perfeição e de forma rápida e eficiente. Era a primeira vez que retirava o couro cabeludo e abria o crânio de um ser humano vivo. Antes de começar a aplicar sofisticadas e delicadas técnicas de microcirurgia, tinha que atravessar o magnífico crânio. Depois de rapar a cabeça da paciente, o chão ficou coberto pelo seu cabelo comprido e castanho. As varetas frias na sua pele quente, eram um lembrete do quão invasivo é o procedimento. Depois da anestesia, a mulher não iria sentir, nem tão pouco recordar, o que quer que fosse.

"As pessoas ficam surpreendidas quando digo que algumas partes do cérebro não são tão importantes como outras".

Eu, pelo contrário, estava totalmente consciente e imerso no momento, emocionado e assustado, um misto de sensações únicas, a que agora já me acostumei, mas que fazem com que, até hoje, cada operação ao cérebro seja um desafio emocionante.

Antes de chegar à sala de cirurgias, a mulher não conseguia mexer o braço esquerdo e, numa tomografia cerebral, os médicos encontraram uma "massa". Mandei-a fazer uma ressonância magnética funcional, que revelou que se tratava de uma pequena bola de tecido cerebral anormal, que já não seguia qualquer tipo de regras e crescia sem respeitar a arquitectura natural e elegante do cérebro. Era um tumor. Por sorte, não cancerígeno. No entanto, estava alojado numa parte muito importante do cérebro.

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As pessoas ficam surpreendidas quando digo que algumas partes do cérebro não são tão importantes como outras. Podemos retirar determinadas partes depois de um coágulo e o paciente continua a vida como se nada fosse. Por outro lado, algumas zonas do cérebro são tão delicadas que, se lhes tocas com um instrumento cirúrgico, podes causar danos permanentes.

Este tumor estava na franja motora do lóbulo parietal direito (uma área de tecido cerebral de 1,27 cm de largura e 17 cm de comprimento, que envia sinais para que o braço esquerdo se mexa). Era uma zona muito perigosa para a extracção de umtumor: tens que retirar o tecido do tumor, sem alterar o tecido normal que controla a mobilidade do corpo. Como a paciente era canhota, o epicentro do meu trabalho era, também, o epicentro da função da sua mão dominante.

Desenhei a incisão com uma caneta roxa. Tracei uma curva por detrás da linha capilar, para que não se notasse a cicatriz quando o cabelo voltasse a crescer. Utilizei um bisturi número 10 para cortar o couro cabeludo com apenas uma incisão. Como o couro cabeludo está cheio de vasos sanguíneos, com a mão direita cauterizei-os, usando umas pinças grandes e com a mão esquerda aspirei o sangue, através de um dispositivo de sucção apoiado - a primeira ferramenta fecha os vasos sanguíneos e a outra permite-me ver por onde tenho de me mover. Faz as coisas sem pressas, mas sem parares, pensei. Depois deste passo, o couro cabeludo estava pronto para ser retirado.

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Ante mim, surgiu o crânio, brilhante e de cor bege. O seu aspecto era exactamente aquele que se espera quando pensas num crânio. Enquanto planeava onde iria perfurar o osso, lembrei-me dos crânios antigos que tinha visto em museus, com perfurações dos lados. Os orifícios nunca se faziam junto à linha média, uma linha imaginária, onde se situaria uma crista, por exemplo. As sociedades antigas seguramente que também sabiam que essa linha média é uma zona muito perigosa do crânio humano, porque, mesmo por baixo, há uma veia gigante que drena o sangue do cérebro e que, se sofrer algum dano, pode causar uma hemorragia mortal. Tem, inclusivamente, um nome ameaçador: Seio Sagital Superior (SSS). Não obstante, foi exactamente aí que tive que abrir o crânio com a minha broca pneumática, para chegar ao local onde estava o tumor.

A broca fazia um ruído ensurdecedor à medida que transformava o osso num pó que, depois, começou a carbonizar e a obscurecer. Pedi à minha assistente para irrigar com água a zona onde estava a perfurar, não só para arrefecer, mas também para melhorar a minha visibilidade. Tive de fazer um orifício circular, deixando um pouco de "casca" de osso intacta sobre o SSS, que se pudesse descolar com um instrumento delicado. Se perfurasse demasiado, poderia romper a veia e teria de aplicar manobras de segurança. Manobras essas que seria capaz de levar a cabo, mas que preferia evitar. Não pelo tempo da operação, mas porque poderiam causar lesões à paciente.

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Fiz três orifícios e logo de seguida separei o crânio da cobertura do cérebro, a dura-máter. Agora chegava o momento de cortar o osso entre os quatro furos com uma serra, para levantar um pedaço com cerca de 7,5 cm do osso do crânio. Nessa altura tinha as mãos ligeiramente tensas, devido ao trabalho já feito, mas estava muito concentrado, porque estava quase na hora de de deslizar pelas estreitas rachas no cérebro.

Fiz uma incisão na dura-máter com um número 11, um bisturi de cabo comprido, ponta triangular e com a lamina mais afiada do mercado. Se o usas com suavidade e treinas suficientemente, a ponta deste bisturi transforma-se numa extensão do teu dedo, mesmo com as luvas calçadas. A dura-máter é como uma tela muito fina, portanto levantei-a para cortar a superfície do cérebro que está por baixo, a flutuar numa leve camada de fluído cerebral. Surpreendentemente, os nossos cérebros nunca tocam noutra coisa que não neste líquido. Flutuam dentro da nossa cabeça, como se estivessem num aquário anatómico.

Depois de trabalhar com carne e ossos durante 30 minutos, chegou o momento da verdade: operar o cérebro humano, o orgão mais delicado, complexo e fascinante do Universo. O tumor era facilmente visível, rodeado pelo resto do tecido cerebral normal. Estava apertado contra o cérebro, ou seja, não tinha afectado o orgão.

Os meningiomas crescem no revestimento do cérebro e, como o crânio não se pode esticar, vão, gradualmente, comprimindo o cérebro até causarem alterações nos sinais eléctricos, o que provoca debilidade, ou convulsões. A minha obrigação era eliminar a ameaça, sem causar dano ao seu hóspede. Ou seja, os meus próximos movimentos iriam determinar se o seu braço ficaria bom, ou danificado de forma permanente.

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"Passados 10 anos e mais de mil operações, cada cirurgia continua a provocar-me emoções únicas".

Para afectar o cérebro o menos possível, entrei desde logo no centro do tumor. Tirei-lhe o núcleo e deixei-o oco. Assim podia separar a casca do cérebro e fazer com que colapsasse dentro de si mesma. O que separa o tumor do cérebro são uns fios muito frágeis de tecido transparente, a que chamamos de aracnídeos. São muito parecidos com as teias de aranha. Cortei-os suavemente com umas micro tesouras compridas e curvas e o tumor caiu no espaço que tinha aberto dentro.

Depois de duas horas de trabalho debaixo de luzes intensas e uma lupa, consegui retirar o tumor. Molhei a superfície do cérebro com água esterilizada para verificar se havia algum sangramento dos vasos sanguíneos. Estava na hora de fechar, actuando de forma inversa. Fixei a cobertura óssea ao crânio com placas e pequenos parafusos. Dei os pontos por dentro do couro cabeludo. Pontos feitos com fio de nylon na pele. Já podia tirar as varetas.

Passados 10 anos e mais de mil operações, cada cirurgia continua a provocar-me emoções únicas. Não pelos aspectos técnicos, mas sim pela satisfação de dominar uma capacidade que ajuda os outros. Hoje em dia não rapo a cabeça completa e prefiro os pontos que são absorvidos pela pele. Quando acordam depois da cirurgia, ninguém poderia adivinhar que o seu crânio acabra de ser aberto. Ninguém, excepto os próprios pacientes e eu.

Rahul Jandial é neurocirurgião e investigador científico. Segue-o no Twitter e no Instagram, e visita a sua página oficial.

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