Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.Quando era criança preocupei os meus pais com a minha ansiedade a roçar a obsessão. Se eles saíssem à noite, eu ficava sentada na cama à espera de ouvir o carro a chegar, a porta da garagem a abrir, o chocalhar das chaves na fechadura. Sentia que, a qualquer momento, a babysitter ia entrar pelo quarto adentro com notícias terríveis de um acidente. Para me distrair do estado de preocupação, lia Harry Potter até os meus livros se desfazerem. Era a única coisa que me acalmava.
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Naquelas páginas, Harry era um exemplo vivo dos meus piores medos. Um órfão, um sobrevivente. Ensinou-me a ser corajosa face a um futuro incerto. Através de Harry Potter consegui enfrentar aquelas noites de ansiedade, o meu primeiro desgosto amoroso na adolescência, a morte dos meus dois avôs, o desaparecimento repentino de um amigo próximo na universidade.À medida que fui crescendo, apercebi-me que o conforto e paz que encontrei nos livros, demarcam a linha entre o secular e o divino e não sou a única a pensar assim. Desde a primeira edição, em 1997, estima-se que tenham sido vendidas 500 milhões de cópias da série, tornando-a a quinta mais popular da história, numa lista onde figura a pouca distância de obras efectivamente religiosas, como o Corão (em primeiro lugar) e a Bíblia (em segundo).
E, ainda que um estudo levado a cabo pelo Pew Research center, em 2012, tenha descoberto que um em cada três millennials não tem qualquer filiação religiosa, isso não significa que sejamos uma geração desprovida de fé. O mesmo estudo concluiu que, de facto, somos profundamente espirituais, mas que temos dificuldade em encontrar uma ligação a esquemas e textos religiosos tradicionais, que podem ser utilizados para invalidar a nossa sexualidade, autonomia e liberdade. É aí que entra o apelo de uma série como Harry Potter, considera Casper ter Kuile, licenciado pela Harvard Divinity School e co-apresentador de Harry Potter and the Sacred Text, um podcast que analisa Harry Potter como se de uma escritura religiosa se tratasse."Apercebi-me de que os mesmos temas que discutíamos na escola num contexto bíblico, apareciam nos livros".
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Quando Kuile estudava na Divinity School, releu Potter pela primeira vez desde a adolescência e ficou chocado com o quão religiosa era a obra. "Apercebi-me de que os mesmos temas que discutíamos na escola num contexto bíblico, apareciam nos livros", diz. E acrescenta: "Já conhecia os personagens, mas acreditava naquilo de uma forma diferente".A outra apresentadora do podcast de Kuile é Vanessa Zoltan, capelã humanista na Universsidade de Harvard e no "Humanist Hub", em Cambridge, cuja dissertação sobre ler Jane Eyre, como se fosse um texto sagrado serviu de impulso para o projecto. Semanalmente, no podcast, ambos passam algumas horas a interpretar Harry Potter através de um prisma religioso. Cada episódio está ligado a um determinado capítulo e cada capítulo a um tema, como o ciúme, o medo, ou a inocência.
Zoltan e ter Kuile recorrem a práticas espirituais antigas, como a tradição cristã da Lectio Divina e a prática judaica de Havruta para encontrarem significados mais profundos no texto. Harry Potter and the Sacred Text tocou num ponto sensível para os fãs de Potter, que, de repente, viram a sua obsessão religiosa com estes livros validada por verdadeiros catedráticos religiosos. O podcast é presença constante no TOP 40 da Tabela de Religião e Espiritualidade do iTunes e já chegou mesmo a atingir o primeiro e segundo lugares várias vezes, ombro a ombro com gente como Joel Osteen, ou Bishop T.D. Jakes.
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Os ouvintes são o mais heterogéneos que se possa imaginar e têm as mais diversas origens religiosas. Entre eles há católicos ocasionais, baptistas renascidos, rabis ordenados, pastores, ateus seculares e professores que vêem no podcast um exemplo de uma "leitura mais aprofundada". Quaisquer que sejam as suas origens, Kuile diz que a maioria recorre aos livros para encontrar algum conforto em alturas mais dolorosas."É notável a quantidade de ouvintes que temos que perderam um progenitor quando eram mais novos, ou que passaram por algum tipo de grande dificuldade", revela o autor. E acrescenta: "Depois, acabaram por se virar para Harry Potter e é por isso que os livros são tão importantes para eles. Foram uma salvação divina em tempos turbulentos. Harry Potter é sobre ser corajoso, sobre como erguer a voz para ajudar aqueles que são mais fracos, sobre como amar a família, mesmo que seja complicado e aprender a perdoar. Isto são temáticas comuns a muitas tradições religiosas".Um dos princípios com que começaram o podcast, lembra ter Kuile, é a questão relativa ao que faz com que um livro seja sagrado. O apresentador acredita que a Bíblia, por exemplo, é um livro sagrado, não porque tenha sido originado por uma entidade divina, mas porque, ao longo dos séculos, uma comunidade o adoptou e interpretou. Procurou nele, profundamente, uma verdade, tentou compreendê-lo por várias perspectivas e vê-lo à luz da realidade actual de cada época.
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Harry Potter está a tornar-se sagrado pelas mesmas razões. Há quase 20 anos que uma comunidade global de devotos tem disseminado meticulosamente o seu texto. "Tem acontecido a uma tal escala, com uma tal intensidade, que é perfeitamente normal que as pessoas se sintam muito mais conectadas a estes livros que a quaisquer outros. É a criação de uma identidade. De repente, há um significado quando dizes que alguém é um Slytherin, da mesma forma que há quando se diz que alguém é um judeu reformista. Temos uma linguagem comum construída à sua volta", explica ter Kuile.As mudanças no panorama religioso fazem desta época na história o momento certo para a criação de novas formas de devoção. Uma filiação primária em apenas uma identidade religiosa (Metodista, Católica, ou Judaica, por exemplo) está a tornar-se cada vez menos relevante, de acordo com ter Kuile: "No entanto, as pessoas ainda estão ávidas de significados, de procurarem coisas que lhes dêem a sensação de pertença. O universo de Harry Potter está já a preencher essas demandas na vida de muita gente e o que aprendemos com o podcast é que o potencial de expansão é gigantesco".E, mesmo que ter Kuile não acredite que possam surgir igrejas físicas dedicadas a Harry Potter nos tempos mais próximos, há já inúmeros eventos de massas dedicados a Potter, que providenciam consolo a muitos seguidores. Na verdade, ter Kuile acredita que a ida a locais como os parques temáticos da Universal, ou a eventos como a ComicCon, são uma espécie de devoção. Estes espaços podem ainda não ser, exactamente, locais de peregrinações dos tempos modernos para uma nova forma de prática espiritual, no entanto, é preciso não esquecermos que as religiões não se desenvolvem à velocidade de um Snitch.Segue Caroline Thompson no Twitter.
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