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As tuas citações favoritas podem não ser exactamente de quem estavas a pensar

Um investigador partilha as suas dicas para descobrires quem realmente inventou aquelas frases inspiradoras que incendeiam o Facebook e o Instagram.
Abraham Lincoln

Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.

A Internet é muitas coisas, mas às vezes não parece ser mais que uma forma de espalhar rumores, partidas e mentiras, tipo peste negra. Os incidentes recentes de maior absurdo viral envolvem o presidente Donal Trump a fazer afirmações sem provas de um ataque terrorista imaginário na Suécia, ou a queixar-se de que a administração Obama lhe teria colocado o telefone sob escuta. Todavia, de cada vez que abres o Facebook, ou outra qualquer rede social, o que não falta são exemplos de ausência de verdade. Ainda mais se espreitares, por exemplo, o Twitter do Partido Republicano e reparares na quantidade absurda de citações supostamente de Abraham Lincoln, totalmente inventadas.

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O investigador que dá pelo pseudónimo de Garson O'Toole está bastante familiarizado com esta última forma de falsidade. Enquanto "Quote Investigator", gere um charmoso site de aparência 1.0, dedicado a traçar as origens das citações que por aí proliferam. A tarefa pode ser complicada. É comum as pessoas atribuírem piadolas a figuras famosas, a alterarem ditados e provérbios populares e a retirá-los dos seus contextos originais e, com isto, o registo de quem é o autor real pode muitas vezes tornar-se confuso.

Um exemplo prático. Recentemente, no St. Patrick's Day, Trump citou aquilo a que se referiu como um "provérbio irlandês" e disse: "Always remember to forget the friends that proved untrue. But never forget to remember those that have stuck by you". Jornalistas sagazes com acesso ao Google, rapidamente descobriram que, na realidade, o provérbio tinha sido escrito por um homem nigeriano… só que essa conclusão, afinal, também não era correcta. Como O'Toole acabou por descobrir ao investigar mais profundamente, as palavras vêm, muito provavelmente, de um poema escrito em 1936, por um tipo chamado Levi Furbush.


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A 1 de Abril, Dia das Mentiras, O'Toole lançou uma versão em livro dos seus esforços, Hemingway Didn't Say That, que mergulha a uma profundidade assustadora na tentativa de descobrir a origem de algumas das mais famosas citações de todos os tempos. De alguma forma pode até parecer um esforço que interessa apenas a um nicho - a maioria das pessoas preocupa-se mais com o sentimento transmitido pelas suas citações favoritas, do que com a sua origem -, mas, por outro lado, parece-nos uma tarefa intemporal e até urgente.

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Quando a maior parte do país [e do Mundo] - incluindo aqueles que o governam - parece ter dificuldade em distinguir os factos da ficção, é refrescante saber que há alguém que está, exaustivamente, à procura da verdade, a olhar par as fontes com olhos de ver e a acrescentar notas de rodapé preciosas à realidade.

No mês passado, falei com O'Toole ao telefone, em antecipação do lançamento do seu livro. Apesar de não ter querido falar muito sobre si mesmo - garante que o que pretende é que o seu trabalho fale por si próprio -, tivemos uma conversa muito interessante sobre "fake news", sobre estar errado na Internet e sobre o que deves fazer se apanhares um amigo a publicar uma citação falsa de Winston Churchill no Facebook.

"Imagina um orador numa destas cerimónias a lançar esta pérola de sabedoria e depois a dizer 'e isto foi dito por Henry Stanley Haskins, o corretor caído em desgraça'".

VICE: És investigador de citações a tempo inteiro. O que é que te atraiu para este tipo de trabalho?
Garson O'Toole: Bem, gosto de descobrir a história escondida por detrás de algumas citações. Um bom exemplo do que me atraiu em primeiro lugar é uma citação que muitas vezes é usada em discursos de finais de curso, para tentar inspirar os alunos: "What lies behind us and what lies before us are tiny matters compared to what lies within us" ["O que deixamos para trás e que temos pela frente, são assuntos menores, quando comparados com o que temos dentro de nós"].

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Estas palavras são atribuídas a algumas grandes figuras, como Ralph Waldo Emerson, Henry David Thoreau e Oliver Wendell Holmes. Só que, nenhuma dessas pessoas famosas é a responsável pela sua criação. A frase apareceu pela primeira vez em 1940, num livro chamado Meditations in Wall Street. Inicialmente era uma obra anónima. A introdução era escrita por Albert J. Nock e o editor era William Morrow, pelo que a citação foi-lhes atribuída.

Em 1947, porém, descobriu-se - e isto foi publicado pelo New York Times - que o autor era um corretor chamado Henry Stansley Haskins. No entanto, como ele geria uma empresa de venda de acções que faliu - acabou mesmo por ser acusado de má conduta e foi expulso do mercado de acções - criou-se um problema em atribuir-lhe a citação. Imagina um orador numa destas cerimónias a lançar esta pérola de sabedoria e depois a dizer "e isto foi dito por Henry Stanley Haskins, o corretor caído em desgraça". É muito melhor ligar a frase a estas outras celebridades.

Achas que é importante que se saiba quem é que inventou uma citação como essa? A autoria faz mesmo alguma diferença?

Um dos meus objectivos é dar aos autores genuínos o devido crédito. Éticamente, julgo que faz sentido. É verdade que, muitas vezes, as pessoas não querem saber quem é que especificamente disse o quê. Preferem que tenha sido alguém famoso. E alguns desses famosos até podem, nos tempos de hoje, nem ser assim tão reconhecíveis. Se disseres, por exemplo, "Ralph Waldo Emerson", o público em geral pode não ter uma forte percepção da sua personalidade, ou dos seus valores.

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Mas acho que faz sentido tentar creditar a pessoa certa. Uma das razões que levam a que as coisas sejam citadas erroneamente tem a ver com o facto de que, quando as pessoas escrevem online uma frase de uma citação, grande parte das vezes no topo da lista de links do Google, ou do Bing, aparecem grandes bases de dados, como o Brainyquote, por exemplo. E estas bases de dados estão cheias de informações erradas, mas as pessoas não as sabem distinguir. Portanto, repetem-nas. É simples. E, por vezes, escrevem uma frase e aparentemente há centenas de sites que dizem que foi Mark Twain quem a disse, por isso acham que tem de ser verdade. Pensas, "como é que centenas de pessoas podem estar enganadas?". Mas, o que é certo é que estão.

Julgas que a Internet acelerou o processo, ou fez com que houvesse mais hipóteses de uma citação ser mal creditada?
Julgo que acelerou a disseminação da informação errada relativa a citações. think that it has speed up the dissemination of misinformation for quotations.


Vê também: "Os grandes felinos ilegais do Instagram no Golfo Pérsico"


Consegues ver uma ligação entre o fenómeno das "fake news" de que toda a gente fala e o teu trabalho?

Bem, uma possível ligação seria que as falsas citações têm uma longa história de centenas de anos. E as "fake news" também. Houve citações atribuídas a Mark Twain, mesmo ainda no seu tempo de vida, que eram falsas e foram amplamente difundidas e continuaram a ser. O exemplo recente do poeta nigeriano acontece, acho eu, porque a investigação foi muito superficial, ou porque pesquisar de uma forma correcta é mais complicado. E ninguém se lembrou de me contactar a não ser Ben Zimmer, do Wall Street Journal, que foi a pessoa que acabou por descobrir a primeira versão desta citação, com a data de 3 de Março de 1936.

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Recentemente parece-me que as pessoas se estão a tornar um bocadinho mais cépticas em relação a coisas que lêem online. Parece que, por exemplo, aqueles "snippets" que o Google coloca no topo dos resultados das buscas são incrivelmente errados. Sabias deste fenómeno?
Na verdade, isso acontece até com o meu site. Se escreveres algumas citações que o Google usa nesses "cartões", ou lá como eles lhes chamam, aparecem "snippets" do meu site e se sºo leres isso podes ficar com uma impressão completamente incorrecta. Tens mesmo de entrar para perceberes a história toda. É assim, eles têm grandes programadores a trabalharem nisto e a tentarem extrair a informação, mas é uma tarefa de enorme dificuldade. É por isso que é sempre melhor entrar e tentar perceber o contexto completo.

"Julgo que é melhor dar o feedback de forma privada e não tentar publicamente envergonhar a pessoa. Em certos casos até mais vale deixar passar".

Sentes-te alinhado com o movimento de pessoas que está a tentar que os utilizadores regulares da Internet sejam um bocadinho mais cépticos em relação àquilo que vêem online?
Tento sensibilizar as pessoas para o facto de que anda aí muita informação errada. Há anos eu próprio fui culpado por ter assumido que as citações populares que lia em revistas e jornais era certeira. Nem me ocorria que deveria ser céptico em relação a isso. Hoje em dia, o perigo é ainda maior, mas, em particular, se estás a escrever um livro, ou artigos para um jornal e queres ter credibilidade máxima, aconselho que recorras sempre a um dicionário de citações, como o "The Yale Book of Quotations", ou ao meu livro.

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Se uma pessoa quiser fazer da internet um lugar um bocadinho mais correcto e contribuir para o o fim das falsas citações e, de repente, vê alguém a publicar uma má atribuição no Facebook, é de bom tom deixar-lhe um comentário do género "Winston Churchill não disse isso", ou vai parecer que se está a armar em esperta?
Em determinados contextos pode ser um bocado irritante e até pedante e os visados podem não reagir bem e assumirem uma postura defensiva ou zangada. Alguns podem vir com o "não interessa quem disse, interessa é que é verdade. É uma frase importante". Julgo que é melhor dar o feedback de forma privada e não tentar publicamente envergonhar a pessoa. Em certos casos até mais vale deixar passar. Se a coisa for feita de uma forma construtiva, para ajudar alguém a não cair numa situação potencialmente embaraçosa no futuro e se o fizeres de forma privada, entendo que é uma boa ideia. Nunca é bonito envergonhar alguém publicamente.

Preocupa-te que pessoas em altos cargos, como o presidente dos EUA, atribua créditos errados a citações? Vês isso como um sinal de desleixo, ou como uma propensão a acreditar em tudo o que vê na Internet?
Acho que essas pessoas precisam de melhores conselheiros. Ou então, quem lhes faz as pesquisas tem de fazer melhor o seu trabalho. Até o presidente Obama tem um exemplo de uma má atribuição de uma citação e Hillary Clinton, num dos seus livros, também. Julgo que é um problema apartidário.

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Esta entrevista foi editada e resumida para maior clareza.

Podes encontrar "Hemingway Didn't Say That" na Amazon.


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