Em Terra de Crack, Heroína Não Se Cresce

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Em Terra de Crack, Heroína Não Se Cresce

Rodamos pelo fluxo trocando ideia com os usuários e não encontramos.

Fluxo da Cracolândia, no Centro da cidade de São Paulo, ao cair da tarde. Foto: Felipe Larozza/VICE

No meio da Cracolândia um homem negro de dreads se levanta com uma flauta doce. Na mão esquerda fechada pequeninas pedras de crack. Ele estica os dedos e arremessa a droga para a garganta. Faz uma careta e leva o instrumento à boca. Dó, Ré com Dó, Si Menor, Ré Menor e Fá. "Lanterna dos Afogados" dos Paralamas do Sucesso ecoa no fluxo enquanto uma mulher loira conta suas façanhas com o Príncipe Harry, em junho do ano passado. Ao fundo um homem está acocorado de cabeça baixa. Os cabelos aloirados puxando pro verde são vastos e bagunçados. Ele levanta a cabeça e exibe o rosto pintado de branco com uma boca vermelha borrada de orelha a orelha. Na mão um cachimbo de crack feito com antena e na cara um sorriso sombrio. A versão de Heath Ledger no filme O Cavaleiro das Trevas se perde no meio da multidão de crackeiros do Centro.

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São 19h15 de uma noite agradável de maio e o movimento é intenso. A Polícia Militar circula e a Guarda Civil Metropolitana conduz os usuários pelas ruas da Luz. O Centro da cidade está vigiado. Grupos com quatro, cinco militares se concentram na maioria das esquinas. GCMs abordam algumas dezenas de crackeiros na Rua dos Protestantes. "Vamo, pessoal. Devagarinho. Vamo andando". Vigiada como nunca, a região está saturada de homens de farda cinza ou azul-marinho.

Em meio a um amontoado de usuários somos conduzidos como numa corrente marítima pelos guardas. Vira a esquerda na Rua dos Gusmões, entra a direita na Rua do Triunfo, passa pelo Largo General Osório, atravessa a Rua Mauá e desemboca na Praça Julio Prestes, onde há um grupo ainda maior de viciados. Bem perto da praça um Smurf, como muitos crackeiros se referem aos Guardas Civis Metropolitanos, tenta chutar os pertences de um local para botar um terror.

O fluxo mudou apenas alguns metros de lugar: a massa que se amontoava pela Rua Helvetia agora está em peso na Alameda Dino Bueno. Do mesmo jeito, com os mesmos cachimbos de antena de carro na mão e as mesmas paranoias. Em caixotes de madeira algumas pessoas vendem a pedra, algumas em blocos do tamanho de tijolo baiano, em pratos brancos.

Crack, cachaça e nada de heroína no meio do fluxo da Cracolândia. Foto: Felipe Larozza/VICE

É a mesma velha e carcomida Cracolândia, apesar dos rumores de mudança. Em março deste ano, por exemplo, pipocou na imprensa que uma "nova" droga, a heroína, teria começado a fervilhar entre o crack. Segundo o delegado do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) Alberto Pereira Matheus Junior, em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo. "Os nigerianos e outros africanos descobriram um caminho pra popularizar a droga e dessa forma passaram a colocá-las no mercado em um preço muito mais acessível ao consumidor final. E esse preço chega, em comparação à Europa e Estados Unidos, de 5% a 10% do valor utilizado nesses países.". Procurados dias a fio pela reportagem, nem o delegado nem ninguém de sua equipe atende nos telefones da delegacia.

A afirmação soa como um náufrago agarrado a uma bola de vôlei. Ela está sozinha numa ilha. Nos últimos meses fomos repetidas vezes ao fluxo da Cracolândia, trocamos ideia com usuários, conversamos com muita gente e não encontramos nenhuma mosca branca, muito menos heroína. Um homem de pele escura, com um terno um pouco maior que o seu tamanho, ao ser perguntado se já tinha visto a droga por ali, foi enfático. "A gente é pobre". Em nota oficial a Secretaria de Segurança Pública também desmente o movimento de drogas injetáveis na região. "A única única ocorrência dessa natureza, foi a prisão de dois tanzanianos portando 1,4 gramas da droga, no mês de fevereiro".

O cheiro da pedra, um misto de plástico, borracha e alguma coisa química pegando fogo,está ali como uma nuvem negra. Tem roupa usada pra vender, celular roubado, gente fabricando artesanalmente os cachimbos, tem o movimento passando de bicicleta pra lá e pra cá, tem de tudo, mas heroína não há. "Nunca existiu, são somente especulações. Maconha, crack, cocaína, cachaça são as drogas que existem ali. Ando todos os dia lá, conheço muita gente e nunca vi. No fluxo não se esconde nada", comenta o João Carlos Batista , o João Boca. O pastor da Missão Cena (Comunidade Evangélica Nova Aurora) é uma das pessoas com acesso liberado em meio ao fervo.

Já passa das 21h e o movimento aumenta. Uma criança de cabelos cacheados passeia no meio do povo e faz do fluxo sua pista de corrida imaginária. Os cachimbos estão na mão ou no bolso. Os olhos da maioria brilha sem foco e as pupílas estão dilatadas. Tem muita pedra, vez ou outra tem cheiro de maconha, tem corote, tem até uma ou outra cápsula de pó, mas heroína. Isso definitivamente não tem não.