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Tal como o Governo, o Alcides também tem as suas prioridades

E preferiu alimentar os filhos a pagar impostos.

Antes de invocar o artigo 21.º da Constituição, o Alcides esteve encostado à parede, sem saber como pagar as contas correntes. Recusa o epíteto de herói porque não podia ter feito outra coisa, e adianta que podem surgir seguidores deste protesto. Encontrei-me com o Alcides na Moita, para saber o que é que o fez alegar o “direito à resistência” e como planeou com minúcia a mediatização de todo um processo que não é contra o Estado, mas antes a favor dos próprios filhos. VICE: Olá Alcides. Como é que era a sua vida antes de decidir que não iria pagar os impostos?
Alcides Santos: Fiquei desempregado e com o tempo livre — uma pessoa começa a ter tempo, não é? — via televisão. Ouvi alguém falar da Constituição Portuguesa e fui lê-la. Acho que é uma coisa que toda a gente deveria ler. Nessa altura, pensei que num dia em que quisesse fazer qualquer coisa, iria atacar pela Constituição. O que acontece é que fiquei desempregado durante dois anos. Depois dessa data, a 21 de Março, deixei de receber o subsídio de desemprego. Então pensei que teria de tomar uma decisão, porque o dinheiro não iria chegar. Tinha de tomar medidas, porque comecei a viver a crédito. Em que momento tomou essa decisão?
Há coisa de uma semana, fiquei a olhar para o tecto durante duas horas, a pensar o que iria fazer para arranjar dinheiro. Nesse momento, ainda não considerava a hipótese de me matar, também não considerava a hipótese de roubar, mas o dinheiro não chegava. Pensei, pensei e naquele momento tomei uma decisão. Tinha de priorizar os meus gastos. O que é que podia cortar em primeiro lugar? Não sabia. E em que é que podia cortar em último lugar? Em último lugar era fácil: na comida, nos filhos, na família. Depois, talvez nos serviços, na casa… Só depois é que vêm os impostos. Portanto, pensando ao contrário, a primeira coisa na qual devo cortar é nos impostos, portanto, não iria pagar impostos. Não se aconselhou com nenhum advogado?
Não. Estamos a falar de coisas independentes. Tomei a decisão de que não ia pagar impostos. Porquê? O dinheiro não chega e tenho de cortar em algum lado. Vamos lá ver, posso não gostar daquilo que eles estão a fazer. [O Governo] considera prioritário o pagamento aos credores, apesar de isso implicar a morte de crianças e velhos e isso tudo. Eles têm o seu critério, mas posso não estar de acordo. Eu faço a mesma coisa. Eu é que decido onde vou gastar o meu dinheiro e decidi que seria na comida dos meus filhos. Mesmo assim [esse incumprimento] não chegaria para os gastos, mas tinha de começar por algum lado. Como é que passou da teoria à prática?
Pensei sobre como é que iria suportar isto. Se começasse a fugir aos impostos, como muita gente faz, isso seria uma bola de neve que não pararia de crescer… Poderia tê-lo feito quando teve aquele trabalho temporário.
Exactamente. Poderia perfeitamente tê-lo feito. Mas isso é fazer o que os governantes deste país fazem: empurrar os problemas com a barriga. E eu não ia fazer isso. Neste caso, seriam os meus filhos a sofrer. Como é evidente, o governo está a aumentar o desemprego propositadamente. Entendo o que estão a fazer. Eles acham que as empresas, para serem competitivas, têm de ter mão-de-obra mais barata e então a única forma de pôr a mão-de-obra mais barata é aumentar o desemprego para que toda a gente aceite trabalhar por menos dinheiro. Outra coisa importante é que, ao fomentar o desemprego, acabam por inviabilizar que se cumpra um dos artigos da Constituição, que é o direito ao trabalho. E pensei logo: “Ora aqui está uma coisa substancial.” E como planeou tudo isto?
Naquelas duas horas em que estive a olhar para o tecto, pensei no direito à resistência que me diz que posso recusar-me a cumprir uma ordem. O Estado ordena-me a pagar impostos e eu recuso-me! Esta sua recusa no pagamento de impostos foi um alerta para a situação que vivia?
Não. Foi uma decisão! Informei o Estado de que suspendia o pagamento dos meus impostos. Não pago! Não pago e ponto final! Façam o que quiserem, podem dizer que é obrigatório mas não pago. O que é que vão fazer? Se me querem prender, prendam-me. Vamos lá ver o que vai acontecer. De certeza que há mais pessoas na sua situação. Se todos fizessem como o Alcides, teríamos um terramoto…
Há muita gente a preparar isso. Tem conhecimento de outros casos?
Oiça, tenho quatro mil mails para ler. Há pessoas a pedir-me para fazer uma revolução [risos]. Já pedi desculpa a essas pessoas, porque entretanto até arranjei trabalho e agora vou ficar por fora. Já nem entro no Facebook. Vejo aquilo e fico maluco. Significa que a história acabou?
Vou fazer uma declaração, mas ainda não tive cabeça para isso. Nessa declaração, vou dizer duas coisas. A primeira é que mantenho aquilo que disse. Porque um desempregado que não tenha dinheiro para comer não tem de pagar impostos. Não faz sentido que uma pessoa pague impostos para que eles [governantes] mantenham os nossos filhos com fome. Não faz sentido. Mas a partir de amanhã [ontem, quinta-feira], começo a trabalhar e, no meu caso, repito, no meu caso, já não se justifica. As outras pessoas fazem o que entenderem. Até digo mais, se fosse hoje, a carta teria mais alguma coisa. Mas a argumentação é esta — se fosse outro desempregado e visse que isto estava bem esgalhado, faria o mesmo. O que teria mais?
Mais dois artigos. Não me recordo agora. Mas seja como for, vou fechar o processo. As pessoas podem chamar-me herói, mas acho que não estão bem a ver a situação. Não sou herói. Epá, foi um problema concreto que tive de resolver e decidi fazer assim, porque não tinha outra opção! Pagar impostos para depois pagar uma dívida que não é minha? Não pago! É muito curioso, porque o Alcides, apesar de ser da área da Matemática, conseguiu levantar dúvidas a alguns juristas sobre se o seu caso seria poderia ser abrangido pelo artigo que refere.
Isso é problema deles. Eu estou-me a cagar, desculpe a expressão. Se me quiserem prender, prendam-me e vamos lá ver o pandemónio que se arma [risos]. Agora tenho visibilidade e pensei que esta porcaria iria bater no fundo. Façam o que querem e vamos lá ver onde isto vai parar. O Alcides enviou uma carta às redacções. Foi nessa esperança de mediatizar todo o processo? Foi planeado nesse sentido?
Não tenha dúvidas nenhumas. Vamos lá ver, eu sei planear. Sou de matemática, sou rigoroso. Foi tudo muito fácil. Nessa segunda-feira, em que olhei para o tecto, tomei a decisão e escrevi aquela carta antes de almoço e pensei: “Isto está jeitoso.” Mandei o texto a três ou quatro pessoas da minha confiança. Um deles, que não é jurista mas que é dessa área, disse-me para ter cuidado e para pensar nas implicações. Mas queria cá saber das implicações. A curto prazo, eu estaria morto. Estou-me a borrifar para as implicações. Portanto, se é para resolver o problema, vamos resolver já. Não ia andar a empurrar o problema com a barriga. Se é para rebentar, rebenta-se já e vamos ver o que vai acontecer. Pensei num jornal, ocorreu-me o Expresso e liguei. Ficaram logo muito interessados. Dei-lhes o exclusivo e os dados estavam lançados. Só que entretanto arranjou emprego.
Certo. O Expresso saía na sexta-feira, mas na quinta-feira ligaram-me de uma empresa com a qual já andava em contacto há uns tempos. Perguntaram-me se ainda estava interessado. E eu pensei: “Tenho de falar já com eles.” A notícia ainda não saiu e, portanto, isto tem de ser já. Mas depois de a notícia sair, ainda não tinha emprego.
Pois, e achei que tinha o caldo entornado. Como é que este processo de emprego se desenrolou?
Tive a minha primeira conversa com a empresa há meses. Na sexta-feira passada, [a minha questão] saiu no Expresso e nesse mesmo dia voltei a falar com a empresa. Por uma questão de franqueza, porque não consigo fazer as coisas de outra maneira, tinha-os informadp sobre tudo o que se passava. Terça-feira entreguei o documento à hora de almoço e nessa mesma tarde chamaram-me para trabalhar. É possível que a sua entrada na empresa tenha sido potenciada pela visibilidade que teve?
Não sei. Já estava em conversações há meses, mas pondo-me no lugar da empresa, vejo-me como uma situação de risco. Obrigado, Alcides. Boa sorte. Fotografia por Nuno Barroso