Histórias terríveis de refugiados que fogem da morte em Myanmar
Uma mulher rohingya cruza o Rio Naf de Myanmar para Bangladesh. Via Onur Coban/Anadolu Agency/Getty Images.

FYI.

This story is over 5 years old.

reportagem

Histórias terríveis de refugiados que fogem da morte em Myanmar

“Vimos eles cortarem gargantas e barrigas, atirarem nos nossos homens e estuprarem nossas mulheres.”

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .

Desde o final de agosto, as forças de segurança mianmarenses travam uma campanha sistemática de violência contra a população rohingya do estado mais ocidental de Myanmar, Rakhine. Os últimos números divulgados dão conta de que mais de 389 mil muçulmanos rohingya — uma minoria sem país que tem cidadania e direitos básicos negados pelo governo de Myanmar — caminham, nadam e se arrastam por selvas, montanhas e ravinas lamacentas para chegar ao vizinho Bangladesh. Muitos chegam ao país com nada além da roupa do corpo. Muitos não comem há dias. Eles relatam vilarejos incendiados, bens saqueados, mulheres estupradas e incontáveis mortos, incluindo bebês e crianças. Por volta de 30 mil rohingya continuam presos nas montanhas, encurralados por forças de segurança sem alimento ou suprimentos.

Publicidade

Há décadas, o governo rotula os rohingya como migrantes ilegais de Bangladesh — apesar de provas de sua presença no oeste de Myanmar desde tempos pré-coloniais — que violam a pureza racial e religiosa da nação budista e planejam estabelecer o controle islâmico. O governo e seus aliados apontam o surgimento do Exército de Salvação Rohingya Arakan (ARSA em inglês) — que atacou postos policiais em agosto, matando 12 funcionários e desencadeando uma grande reação militar — como prova dessas alegações. O ARSA diz que sua resistência nasceu da autodefesa, e que a perseguição sancionada pelo governo e a demonização do povo rohingya, que incluem restrições de filhos por casal, casamentos e acesso à educação, é nada menos que genocídio.

O mundo está começando a notar o que está acontecendo: no último dia 11, o alto comissariado de direitos humanos da ONU chamou a violência de "uma cartilha de limpeza étnica". (O governo mianmarense continua usando o termo "operações de remoção" para as mortes do povo rohingya.)

A líder de Myanmar Aung San Suu Kyi, vencedora do Prêmio Nobel da Paz e ex-dissidente política, nega a escala e a natureza da violência, culpando uma campanha de "desinformação". Seu porta-voz, Zaw Hatay, diz que os rohingya estão incendiando seus próprios vilarejos num plano para conseguir simpatia internacional. Imagens de satélite capturadas pelo Humans Rights Watch mostram outra realidade. Semana passada, foi anunciado de Suu Kyi não vai comparecem à Assembleia Geral da ONU, que acontece nesta semana.

Publicidade

Falamos com cinco refugiados rohingya entre as vítimas dessa violência mais recente nos arredores dos acampamentos de Kutupalong e Balukhali em Teknaf, a região mais sul de Bangladesh. Esse é o ponto de chegada dos rohingya cruzando o Rio Naf de Myanmar.

Abu Ahmed. Foto por Belal Uddin Joy.

Abu Ahmed é um agricultor de 60 anos do distrito de Maungdaw. Ele cruzou para Bangladesh 17 dias atrás, expulso de sua casa por forças de segurança que apareceram em seu vilarejo com armas, bombas e facões.

"Eles agarraram minha cunhada com seu filho", ele disse. "Primeiro eles mataram a criança. Depois atiraram na minha cunhada e colocaram fogo no corpo, na frente do meu irmão. Não havia nada que pudéssemos fazer além de correr."

Abu Ahmed disse que fugiu enquanto o exército, acompanhado de grupos budistas locais, estupravam mulheres, massacravam civis e incendiavam casas. Uma bomba foi jogada de um helicóptero militar num lago próximo. Ele e o que restou de sua família se esconderam, voltando no dia seguinte para encontrar os restos carbonizados de seu vilarejo, corpos e prédios. Eles esperaram até meia-noite, depois fugiram para um vilarejo vizinho, levando apenas alguns pratos e panelas.

"Deixamos as plantações no campo, o arroz no armazém", ele me disse. "As cabras, as vacas, os peixes. Não pudemos trazer nada. Saímos em segredo, como ladrões."

Por quatro dias, eles se abrigaram no vilarejo vizinho — até que os helicópteros vermelhos reapareceram. Novamente o exército invadiu, matando e queimando. Novamente, Abu Ahmed e sua família fugiram, procurando refúgio em outra vila. E pela terceira vez, o exército chegou. O vilarejo foi destruído, e Abu Ahmed disse que eles não tinham outra escolha a não ser entrar em Bangladesh.

Publicidade

"Andamos por dois dias", ele disse. "Mulheres, crianças, idosos. Não tínhamos comida. Quando as pessoas começaram a cair na estrada de fome e fraqueza, nós as levantamos. Aí finalmente chegamos ao rio."

Ele diz que milhares de rohingya já estão acampados no Rio Ghat, esperando transporte para Bangladesh. Barcos de madeira, remados por bangalis, oferecem um comércio em ascensão. Abu Ahmed descreve como um desses barcos, prestes a tocar o lado de Bangladesh, foi afundado por um barco militar bengali. Os únicos sobreviventes a chegar em terra foram três crianças de dez a 12 anos, segundo ele.

Eventualmente, Abu Ahmed conseguiu atravessar para Teknaf, se juntando a mais de 34 mil refugiados rohingya que fugiram de ataques anteriores. Esses acampamentos oficiais já estão quase lotados. As instalações improvisadas cobrindo a estrada de 20 quilômetros de Teknaf a Cox's Bazar é uma grande favela de lonas e cobertores pendurados em cortas, uma proteção frágil contra as monções torrenciais da temporada de chuvas. Os recursos são escassos.

Segundos dados preliminares da UNICEF, 60% dos refugiados são crianças, totalizando cerca de 200 mil. Mais de mil foram separadas dos pais. Adultos e crianças estão fracos, famintos, doentes, traumatizados e não dormem há dias. Quase todo mundo está descalço. A falta de água potável e saneamento significa que disenteria, febre e outras doenças estão em ascensão.

Publicidade

Ainda assim, Abu Ahmed chama suas condições precárias de "paraíso" comparadas ao horror que ele deixou para trás.

"Oramos para que [o governo de Bangladesh] nos dê terras aqui", ele disse. "O que resta para nós em Myanmar agora? Se [o mundo] puder garantir nossa segurança, voltaremos para nossos vilarejos. Se isso não acontecer, nunca mais falarei de Myanmar de novo."

Mas voltar pode não ser uma opção. Na quarta-feira, um porta-voz do governo mianmarense disse que 40% dos 471 vilarejos alvos foram desocupados com sucesso. O porta-voz disse que apenas rohingyas "verificados" poderão retornar, um anúncio cínico considerando que a política do governo é negar documentos de cidadania aos rohingya. O governo anunciou que uma zona econômica de US$1,6 milhão será construída na região recém-desocupada.

Enquanto isso, o influxo continua; são de 10 mil a 20 mil novos refugiados chegando a Bangladesh diariamente, segundo a Organização Internacional de Migração (OIM).

Marium. Foto por Belal Uddin Joy.

Rahima, de 25 anos, me disse que as forças de segurança estupraram todas as mulheres de sua família antes de incendiarem sua casa e as levarem para longe. Arefa, também de 25, descreveu como a irmã foi morta com um tiro e como o que restou de sua família, incluindo seus dois filhos pequenos, teve que caminhar por três dias para chegar ao acampamento Kulutpong. Eles gastaram todo o dinheiro que ainda tinham em comida e pagando pela travessia.

Publicidade

Marium, de 60 anos, contou como as forças de segurança cercaram todos os homens de seu vilarejo e os levaram embora. Ela nunca mais os viu. Os 400 ou 500 habitantes que restaram — velhos ou muito jovens — andaram por oito dias, enquanto grupos de justiceiros budistas os perseguiam. Nos acampamentos toda uma geração de homens rohingya parece ter desaparecido: eles foram mortos ou ficaram para trás para defender suas casas, ou se juntaram ao ARSA para lutar.

Syedul Amin, um comerciante de 26 anos, é um dos homens que conseguiu chegar a Bangladesh. Ele amarrou um filho nas costas e outro na frente do corpo e andou 14 dias sem comida. Eles pegavam o que podiam na selva. "Comemos folhas de bananeira e bebemos água da chuva nas folhas", ele disse.

Apesar de, pelo menos, haver comida em Bangladesh graças a organizações com o Programa Mundial de Alimentos da ONU e a caridade de moradores locais — que oferecem bananas, arroz cozido, açúcar mascavo e pão, apesar de sua própria pobreza — Amin diz que perdeu a fome.

"Nossos corpos doem", ele disse. "Vimos os militares e os magh [budistas da etnia arakanesa] matarem nossas famílias. Vimos eles cortarem gargantas e barrigas, atirarem nos nossos homens e estuprarem nossas mulheres. Eles mataram os mais velhos, depois mataram homens da minha idade. Eles mataram nossos médicos."

Depois ele descreveu como, quando eles estavam finalmente alcançando a fronteira cruzando as ribanceiras lamacentas do Rio Naf, acreditando que o pior já tinha passado, quatro helicópteros militares começaram a sobrevoar o grupo e atirar. Duas tias deles morreram.

Publicidade

"Cavamos sepulturas e as enterramos lá", ele disse.

As consequências de longo prazo dessas atrocidades e do êxodo resultante são difíceis de imaginar. Em 2014, estimava-se que os rohingya em Myanmar eram 1,1 milhão. Pelo menos 700 mil agora são refugiados em Bangladesh. Até o final do ano, esse número pode chegar a 1 milhão, segundo a OIM. Numa entrevista coletiva da organização com o comissariado de direitos humanos da ONU na capital de Bangladesh, na quinta passada, o diretor de operações e segurança da OIM pintou um retrato sombrio: "A menos que uma solução política seja encontrada, há a possibilidade de que toda a comunidade rohingya venha para Bangladesh".

Belal Uddin Joy contribuiu para esta matéria.

Shahirah Majumdar é uma jornalista e escritora que mora em Nova York.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.