Drogas

Diário de quarentena de um agarrado à heroína

“Não suporto a ideia de ter que deixar a droga de repente e sem ajuda, durante um período tão stressante.”
Madalena Maltez
Traduzido por Madalena Maltez
NC
Como contado a Nick Chester
mujer fumando heroína
Imagem de arquivo, não do escritor. Foto: Janine Wiedel Photolibrary / Foto de arquivo: Alamy

Este artigo foi publicado originalmente na VICE UK.

O confinamento é difícil para toda a gente, mas os viciados em heroína enfrentam novos desafios. Robbie, um investigador de mercado de Portsmouth de 28 anos, tem uma adição à heroína há 3 anos. Explicou-me, em detalhe, como é que isso afectou a sua quarentena.

Sofro de ansiedade, por isso, quando se anunciou o confinamento pela primeira vez, fiquei com os nervos em franja. Nunca na História da humanidade tinha acontecido o Mundo inteiro fechar-se em casa, é muito desconcertante. Também me preocupava que o fornecimento de heroína parasse, porque os dealers também fazem quarentena, mas apercebi-me rapidamente que ainda era possível arranjar, o que me acalmou. O cavalo faz-te sentir que há uma solução para tudo, até para algo tão avassalador como uma pandemia, por isso ajudou-me a relaxar temporariamente.

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Antes do confinamento, estava a tomar metadona para além da heroína. Tinham-me receitado uma dose diária de 50 ml, com a ideia de substituir a heroína e depois, pouco a pouco, reduzir a dose de metadona até estar limpo. Na realidade, precisava de uma dose mais alta de metadona, porque ainda dava no cavalo de três em três dias.

Estava submetido a acompanhamento diário, todos os dias tinha que ir à farmácia recolher a metadona e tomá-la à frente dos farmacêuticos. No dia em que foi decretada a quarentena, o farmacêutico disse-me que podia ir buscar doses para 7 dias. Portei-me bem, tomei a dose que correspondia a cada um desses sete dias. Houve quem excedesse a dose diária ou vendesse a metadona que lhes tinha sido dada.

No princípio, essa foi a única coisa que mudou na minha rotina e adição. No entanto, cerca de três dias depois, liguei ao meu dealer de confiança para ir buscar brown e ele disse-me que não ma podia entregar. Experimentei outros números e todos me disseram que era demasiado arriscado. Antes do confinamento, os traficantes passavam a droga aos dealers - no geral, viciados que o fazem a troco de uns 60 euros em heroína por dia - e eles encontravam-se com os compradores em sítios específicos. Ainda que, por norma, o fariam sem reclamar para poderem ganhar a sua comissão, desta vez pareceu-lhes demasiado perigoso andar pela rua com sacos de heroína, tendo em conta que seriam as únicas pessoas na rua.

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É inédito!, pensei. Tenho dinheiro e ainda assim vou ter que deixar isto de uma assentada. Assustava-me a ideia de não me drogar durante toda a quarentena - já é difícil aguentar a vida quando está tudo bem, quanto mais num período tão incerto, com tantas fontes de ansiedade. Não sabia se seria capaz de aguentar.

Essa noite não consegui dormir e as pernas começaram a doer-me; depois, comecei a dar pontapés involuntariamente em todas as direcções (é conhecido como "andar de bicicleta", um sintoma comum do síndrome de abstinência. Também passei um período de medo intenso ao pensar em como seria o mundo, uma vez que o confinamento fosse levantado. A falta de heroína faz com que os níveis de stress disparem e a mim não me faltavam razões para estar preocupado.

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Foto de arquivo. Fotógrafo: Bob Foster

Por sorte, nos dias seguintes a oferta de drogas começou a subir outra vez, supostamente porque os traficantes e dealers se tinham apercebido que a quarentena estava aqui para ficar e não estavam dispostos a perder dinheiro. Houve uma mudança na maneira de operar: tínhamos que ligar ao dealer quando estivéssemos perto de algum ponto de encontro, para evitar fazê-los esperar muito tempo no mesmo sítio. Não pareciam inquietos pelo vírus, a sua preocupação era não serem apanhados. A mim, preocupavam-me ambas as coisas, visto que tenho asma e, portanto, sou de risco. Os dealers, normalmente, levam a heroína na boca e cospem-na para as mãos antes de a entregar, o que é a maneira perfeita de passar o vírus - ou seja, eu estava na iminência de fumar e inalar uma substância que tinha estado na boca de alguém durante uma pandemia.

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Ao fim de uma semana de quarentena, comecei a sentir-me isolado. Vivo sozinho, por isso as únicas caras que vejo regularmente são as dos dealers. Antes, só queria ir buscar droga para a fumar, mas rapidamente se tornou uma desculpa para sair de casa, fazer alguma coisa diferente. Se bem que não me ajuda a aliviar a solidão, porque os dealers não falam muito.

Também me apercebi que a minha adição estava a aumentar. O aborrecimento de estar fechado no meu apartamento sem nada para fazer levou-me a dar na heroína todos os dias. Antes ia a reuniões de NA, o que me ajudava, mas toda essa rede de apoio já não estava disponível, o que piora a situação. Nas reuniões, encorajávamo-nos uns aos outros na luta contra a adição. Fazem-me muita falta. Há grupos na internet, mas não têm o mesmo impacto que as de cara-a-cara.

Com o passar dos dias, comecei a inquietar-me mais e mais com o estado do mundo após o confinamento. No princípio, acompanhava o avanço do vírus nas notícias, mas deixei de as ver porque me assustavam demasiado. Também me preocupava constantemente com a possibilidade de acontecer qualquer coisa que afectasse a minha situação económica e me deixasse sem meios para comprar droga. Muitas empresas andavam a despedir empregados, mas eu tinha a sorte de poder trabalhar de casa e manter a minha fonte de rendimento. O meu trabalho consistia em averiguar o mercado por telefone para várias empresas. Mas eu não sabia se o meu posto estava a salvo nestes tempos imprevisíveis.

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No princípio de Abril, o meu chefe deu-me a notícia de que a minha carteira de clientes se tinha esvaziado e, por isso, tinham que me despedir. Ontem preenchi o requerimento para um crédito universal (um apoio social do governo britânico) e foi muito deprimente. Até esse momento, tinha estado orgulhoso de mim próprio por ser capaz de manter um trabalho apesar do vício, por isso isto foi um golpe muito duro para a minha auto-estima. Para além disso, não sei como é que vou sustentar os meus hábitos nos próximos meses, o que é aterrador. Não suporto a ideia de ter que deixar a droga de uma assentada e isolado, sem ajuda, durante um período tão stressante.

Também me preocupa que a oferta de heroína acabe, a algum momento. Há uma grande possibilidade de que haja problemas nessa frente. Ou, quem sabe, talvez o tráfico de drogas seja o único mercado estável quando tudo isto acabar. Só o tempo o dirá.

Os meus planos para o resto da quarentena são encontrar outra fonte de rendimento, se possível, não ser apanhado a comprar heroína em ruas desertas e não enlouquecer de aborrecimento. A minha recuperação está em pausa até a quarentena acabar, seja quando for que isso aconteça. Até lá, não tenho dúvidas de que será extremamente difícil e problemático para mim e para toda a gente, quer tenha ou não uma adição.


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