FYI.

This story is over 5 years old.

Entretenimento

Entrevistámos a realizadora de um documentário sobre a violência doméstica e as suas vítimas

"Love You to Death: A Year of Domestic Violence" pretende contar a história de cada uma das 86 mulheres que foram assassinadas pelos seus parceiros em 2013 no Reino Unido.
recortes de jornais de casos de violência doméstica

Este artigo foi originalmente publicado na VICE UK.

"Era a minha tia. Era a minha melhor amiga. Era a minha filha. Era a minha mãe." Assim começa o último documentário de Vanessa Engle, Love You to Death: A Year of Domestic Violence, um filme que pretende contar a história de cada uma das 86 mulheres que foram assassinadas pelos seus parceiros em 2013 no Reino Unido. Uma forma de dar nome a quem perdeu a vida como resultado da violência doméstica durante apenas um ano.

Publicidade

Embora não seja possível explorar cada caso extensamente, Engle teve a preocupação de conhecer em detalhe a vida destas mulheres. Através de testemunhos de amigos, irmãs, mães, pais, e filhas, a realizadora dá-nos uma pequena visão de como viviam. Um dos pontos centrais do documentário é um placard gigante (do qual a câmara se aproxima e afasta) onde podemos ver as caras destas mulheres afixadas e os recortes de jornais relacionados com os seus casos. Recorda-nos constantemente quem foram.

a-qa-with-vanessa-engle-director-of-love-you-to-death-750-body-image-1450267699-size_1000

Vanessa Engle ao lado do placard que aparece no seu documentário.

Com mais de 30 anos de experiência como documentarista, é bem possível que tenhas ouvido falar do trabalho de Engle. Tornou-se conhecida, sobretudo, pela sua série em três partes – Lefties, Jews, Women and Money – mas esta é a primeira vez que lida com material tão sensível e traumático.

E à medida que novos números são revelados e se sabe que a polícia não tem mãos a medir face a este aumento de casos de violência doméstica [em Portugal os números são igualmente assustadores], o documentário de Engle não podia ser mais pertinente.

VICE: O que te levou a fazer este documentário sobre violência doméstica?
Vanessa Engle: Há muito tempo que o tinha em mente. Há 30 anos que faço filmes e já tinha retratado temas como a disparidade entre homens e mulheres, por isso, de certa maneira, já conhecia bem o tema. Sempre soube que, segundo as estatísticas, morrem duas mulheres por semana vítimas da violência doméstica, mas depois pensei que podia fazer um filme sobre todas as mulheres que morrem durante um ano. A violência doméstica é um tema delicadíssimo e francamente desagradável para as pessoas no geral, estejam envolvidas ou não - mas, relatar um ano de mortes é uma ideia que aguça a curiosidade. 86 mulheres assassinadas num ano é um conceito tão poderoso, são imensas mulheres. No entanto, contínua a ser um número que toda a gente pode quantificar.

Publicidade

As mulheres que aparecem no filme são todas muito diferentes – de todas as idades, proveniências e etnias. Se há algo que as une é que a violência doméstica não discrimina. É algo que te tenha surpreendido?
Todos temos preconceitos acerca da violência doméstica. Por exemplo, podemos pensar que as pessoas afectadas contribuem para relações violentas. Podemos pensar que as causas são o consumo de álcool, ou problemas de saúde mental. São preconceitos que não estão errados, mas quando olhas para estas 86 mortes vês que existem muitas outras situações e razões pelas quais estas mulheres foram assassinadas. Mergulhei em todos estes casos e li tudo o que havia para ler – foi uma experiência realmente perturbadora. Encontrei muitas senhoras mais velhas assassinadas pelos maridos com quem passaram uma vida inteira. Quis retratar a experiência que tinha tido ao ler todos estes casos e o quão diferentes eram entre eles.

a-qa-with-vanessa-engle-director-of-love-you-to-death-750-body-image-1450202685-size_1000

As mortes são todas tão violentas, e foi algo que me chocou bastante, especialmente se comparamos esta intensidade com o anonimato e normalidade que se vive nas cidades que retratas.
Toda esta violência foi uma enorme surpresa para mim. De certa maneira, posso imaginar alguém que esteja fora de si e que empurra alguém que depois dá uma pancada com a cabeça. Ou posso imaginar que, quando se está mesmo, mesmo, bêbado possas atacar ou aleijar outra pessoa. Mas, depois há o caso do rapaz de 18 anos que decapitou a namorada. Ou o de outro homem que arrancou o coração da mulher - cada vez que a câmara focava este caso no placard sentia calafrios. Lee Birch [que aparece no filme] estrangulou a sua mulher, Anne Marie, num campo, e depois espancou-a brutalmente com um ramo. Existe o caso deste outro homem que despejou gasolina sobre a mulher e lhe pegou fogo em frente aos seus filhos pequenos. Mas, cada rua e cada casa parecem tão "normais" - são as casas pelas quais passamos todos os dias. A banalidade destas paisagens impressionou-me muito e essa é uma das coisas que tentei transmitir.

Publicidade

O que é que mais te marcou no filme?
Vi-o tantas vezes, mas de cada vez que volto a vê-lo há sempre alguma coisa que me chama a atenção. As consequências intermináveis que estes eventos têm na vida das famílias das vítimas é algo que me marcou muito. Estão todos extremamente traumatizados e todas as vezes que estivemos em contacto - coisa que faço regularmente -, ou havia um aniversário, ou era o aniversário da morte, ou do julgamento do agressor. As datas importantes são os momentos mais difíceis de superar.

É a primeira vez que faço um filme sobre o trauma e tu pensas que sabes o que é o trauma, mas é preciso tê-lo bem de perto para o conhecer realmente. As pessoas que participaram neste documentário foram muito corajosas ao exporem-se e falarem de temas tão íntimos, pessoais e privados. Não é um filme que retrata apenas o drama da violência doméstica, também nos explica que impacto tem esta violência nos que estão por perto. É uma sensação que nunca desaparece e não acredito que a coisa melhore. A coragem destas pessoas surpreende-me sempre.

a-qa-with-vanessa-engle-director-of-love-you-to-death-750-body-image-1450202713-size_1000

Como realizadora, como lidaste com este trauma? Como conseguiste ganhar a confiança das pessoas que entrevistaste?
Acredito que ser directa e dar às pessoas carta branca para que tomem as suas próprias decisões é uma boa estratégia. Não tento convencer ninguém a fazer parte disto, esse não é o meu trabalho. O que faço é explicar-lhes honesta e claramente o que estou a tentar fazer. Neste filme, particularmente, a proposta era bastante clara e era bastante evidente que o nosso objectivo consistia em chamar a atenção para este problema. São as pessoas que decidem e quando começamos a filmar sabem do que se trata. Nesse momento é quando coloco as minhas questões da forma mais humana e directa que consigo. O contrato entre mim e os entrevistados é bastante directo - eles sabem no que é que se meteram e eu sei o que devo fazer.

Publicidade

Imaginamos que a violência doméstica é algo que acontece à porta fechada, mas há momentos no filme em que o abuso é omnipresente.
As pessoas sentem-se extremamente culpadas porque pensam: "Podia ter feito algo diferente? Podia ter ajudado?". Mas também se sentem chateadas pelo facto de não se terem apercebido, ou terem dito, "Por favor, deixa-o!" e não terem sido ouvidas. Até que ponto as pessoas podem, ou têm o direito de intervir?

A par da angústia que se sente ao perder alguém, também existe a culpa e a raiva. E uma questão se levanta: não tem tanto a ver com quando intervéns, mas como intervéns. Conheci mulheres nesta situação e podes dizer-lhes que saiam dessa situação, mas se têm filhos, se não têm dinheiro, se não têm para onde ir, não é assim tão fácil.

a-qa-with-vanessa-engle-director-of-love-you-to-death-750-body-image-1450263989-size_1000

Anne-Marie Birch com a sua filha.

É inegável que a questão da violência doméstica é uma questão de género. Pensaste em como os homens são retratados neste documentário?
Quando expliquei às pessoas em que consistia o documentário que estava a fazer, disseram-me, "As mulheres também são violentas com os homens. Na comunidade lésbica e gay também há violência e na comunidade trans a violência é brutal. E essas pessoas?". Essas pessoas são muito importantes e estes temas também, mas o filme não é sobre elas.

Em 2013, morreram 154 mulheres, 86 das quais assassinadas pelos seus parceiros masculinos. Trata-se de uns 52 por cento. No mesmo ano, morreram 381 homens (há sempre mais homens que são assassinados, porque os homens têm mais tendência a expôr-se a situações violentas), dos quais 12 foram assassinados por mulheres. Ou seja, três por cento. Existe uma assimetria. E desses três por cento de homens, o que se tende a encontrar, quando se pesquisa, é que várias destas mulheres foram abusadas anteriormente e acabaram por retaliar. Por isso, até nesses 12 casos as mulheres em questão podem ter sofrido abuso.

Publicidade

Na tua opinião, qual é o grande problema por detrás da violência dos homens contra as mulheres?
Há tantas razões quanto mortes – são todas muito diferentes. Mas, o que sobressai neste filme é que parece que está relacionado com a necessidade que alguns homens têm de ter controlo sobre as mulheres, ou sentem que têm o direito de controlá-las e ser possessivos. Não é uma explicação científica, até porque esta questão requer outro tipo de reflexão sobre como os homens são ensinados a olhar para mulheres.

É muito interessante que alguns homens no filme sofram de problemas mentais - alguns são dementes - mas ainda assim conseguem matar as suas mulheres. É assim que as coisas funcionam na psique de um homem - mesmo quando não sabem o que estão a fazer ainda têm o impulso de matar a mulher. Alguns destes homens são brutais e têm um passado de violência, mas normalmente não são sujeitos violentos. Não foram violentos antes e este é o seu primeiro caso de violência.


Segue a Olivia Marks no Twitter: @liv_marks

Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.

Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.