Como "Black Mirror" passou de série inteligente a ensaio de reflexão

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Como "Black Mirror" passou de série inteligente a ensaio de reflexão

A nova temporada da série de origem britânica e agora produzida e realizada nos EUA, quer que o público veja o seu próprio reflexo, mas não se importa muito com quem realmente está a olhar do outro lado.

Imagem do episódio "Nosedive", da terceira temporada de "Black Mirror" (Foto por David Dettmann/Netflix)

Este artigo foi originalmente publicado na VICE UK.

Num ano que mais pareceu um monte lixo a arder em lume brando, Black Mirror regressou em boa hora. A série de Charlie Brooker teve uma migração perfeita para o serviço de TV digital Netflix, onde conquistou uma audiência fiel a nível global. A terceira temporada, que estreou a 21 de Outubro) — a Netflix terá alegadamente pago 40 milhões de dólares pelos direitos - dá seguimento às obsessões e fascínios que sempre guiaram a série: homem, máquina e a questão de quem controla quem.

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É uma premissa legal. Há décadas que o terror tem sido o género mais apto para falarmos sobre nós próprios. Nada mergulha mais fundo no comportamento humano que a vulnerabilidade, o medo e a paranoia irracional. Em todas as culturas, os assuntos ligados ao horror podem ser lidos como antropologia. Mas o que diz Black Mirror sobre nós agora?

Não muito, pode até parecer. Não precisamos de terror e ficção científica para nos envolvermos em alegorias, mas nem é preciso dizer que asua potência aumenta quando tal acontece. O grau pode variar - o cânone tão elogiado dos filmes de terror japoneses é muito eficiente neste aspecto, mas se estás à procura de entender, digamos, o patriarcado do país, o fascínio do género pela raiva feminina é capaz de ser suficiente.

Black Mirror, por outro lado, é uma série inteiramente desprovida de alegorias. É, ao invés, totalmente sobre a coisa em si. A tecnologia é espelho da própria tecnologia? E a nossa devoção servil às conveniências da tecnologia deveria dar-nos uma imagem daquilo que somos: escravos dessas conveniências.

A grande mudança nesta nova temporada advém da própria Netflix, onde entra agora na secção "Série Original". Deixamos o confinamento inglês das duas primeiras temporadas e entramos em vários países, sob o olhar de selectos realizadores americanos. Como resultado, a textura da nova temporada parece um tanto desigual, com o ritmo e o estilo a oscilarem bastante. Os tons saturados que se reconhecem da televisão inglesa persistem, à excepção do conto de abertura, da responsabilidade de Joe Wright, que mais parece uma cena de videojogo.

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O ritmo granulado do drama britânico é, às vezes, varrido pela edição febril norte-americana. O episódio encabeçado por Dan Trachtenberg, "Playtest", segue à velocidade de um thriller paranóico, enquanto "Shut Up and Dance", de James Watkin, é marcado por um sofrimento repetitivo. Uma mudança estranha. Pela minha visão do outro lado do Atlântico, a televisão britânica é, geralmente, uma experiência insular, algo que a "era de ouro" dos EUA tem tentado adoptar desde então. O segredo é não revelar quase nada, tanto no ecrã como abaixo da superfície.

Black Mirror é, muitas vezes, comparado aTwilight Zone, outra série bastante niilista. A tecnologia tinha nesta um grande peso, mas o enredo era mergulhado em paranóia da Guerra Fria. O carácter cíclico era central na obra televisiva de Rod Serling. A ansiedade atómica, os perigos do "MacCartismo", o medo do Outro; Twilight Zone estava repleta de paranóia. Um episódio de época, um cenário moderno, um futuro distópico elaborado; não eram escolhas da narrativa, esses aspectos deveriam significar todas as formas como estávamos condenados a repetir os mesmos conflitos, com as décadas e os bodes expiatórios a surgirem como meros detalhes, numa história trágica sem fim.

Black Mirror tem menos a dizer sobre onde estamos e quem somos no século XXI, porque ainda estamos a tentar, mais uma vez descobrir isso mesmo. A série é mais sobre comportamento que sobre medo. Se Twilight Zone parecia um teste de Rorschach, Black Mirror é uma reflexão, um ensaio sobre o qual é preciso pensar.

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Sob a batuta de Brooker, a série mostra uma certa indignação. Mas com que finalidade? Serling preocupou-se quase que inteiramente com a moralidade e a ironia de muitos dos finais niilistas dos episódios parecem um perene "eu bem te disse". A série tem pouco a dizer, principalmente por causa dos caprichos do momento a que está a responder. Até há pouco tempo, a tecnologia estava sobrecarregada com a bagagem da utopia: uma ferramenta que deveria guiar-nos numa nova era cheia de promessas. Séries como Star Trek levaram-nos corajosamente para um tempo em que os nossos males seriam amenizados pela tecnologia, não causados por ela. Nesse sentido, Black Mirror é um conto de fadas sombrio sobre a nossa época, onde as suspeitas de que as máquinas não estão totalmente do nosso lado se tornam realidade. Recentemente, um ensaio da New York Magazine sobre os perigos do vício em tecnologia tornou-se um cartão-postal dessa viragem.

Mas esta não passa de uma tentativa monodimensional de manifestar medos tridimensionais. Alguns episódios mostram-se estranhamente proféticos: num episódio da temporada dois, "The Waldo Moment", um artista de televisão consegue enganar o público e escalar os degraus da política até ao topo, um eco sinistro do que aconteceria nos EUA; o piloto da série mostrava o primeiro-ministro britânico a ter sexo com um porco.

A nova temporada tem um episódio que funciona como uma metáfora poderosa da imigração, tocando o que é uma questão política definidora para os dois continentes a que Black Mirror agora pertence. Vivemos tempos absurdos, no qual assuntos como muros, verificação da idade de refugiados e denegrir advogados de direitos humanos são quase tratados como clichés. Muito do que torna a ficção científica poderosa é a maneira como ela nos faz confrontar quem somos.

Black Mirror rende algumas horas de entretenimento, mas o seu principal interesse reside no facto de nos dizer quem poderíamos ser. É um alerta no olho do furacão. Ainda assim, muito absurda na sua estética para ser registada como arte e muito óbvia na sua narrativa para ser classificada como metáfora. Black Mirror quer que o público veja o seu próprio reflexo, mas não se importa muito com quem realmente está a olhar do outro lado.

Black Mirrorestá disponível no Netflix desde 21 de outubro.

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