A relação das mulheres com a erva ao longo da história
Madleyn 'Madzilla' Lance, cortesia "Weediquette"

FYI.

This story is over 5 years old.

Drogas

A relação das mulheres com a erva ao longo da história

Activista de longa data pela causa da marijuana, Ellen Komp explica a relação das mulheres com a canábis ao longo dos séculos e como hoje as coisas estão definitivamente a mudar.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.

Ao longo da longa e obscura história da proibição da canábis, o cultivo e a distribuição de marijuana têm estado, maioritariamente, no domínio dos homens. Mas nem sempre foi assim. De facto, em algumas sociedades mais antigas as mulheres eram líderes, quer na recolha de erva, quer no seu manuseamento com para fins medicinais e curativos.

À medida que fomos passando de sociedades pequenas, politeístas e matriarcais, para grandes e monoteístas sociedades patriarcais, as mulheres que forneciam plantas medicinais tornaram-se alvos frequentes da caça às bruxas e outras campanhas de erradicação, por representarem uma ameaça séria tanto para a "religião", como para a "medicina". Áreas dominadas por homens.

Publicidade

Vê também: "Mães e Canábis: o grande mercado inexplorado"


A boa notícia é que, finalmente, a crescente aceitação cultural e legal da erva já começou a diminuir essa suposta distância entre géneros. E enquanto os media só ficaram minimamente excitados quando descobriram as stilleto stoners, a comunidade da canábis há muito que beneficia da impressionante coragem e da convicção de mulheres que servem a causa, tanto como produtoras, vendedoras, curandeiras, artistas, activistas, empreendedoras e líderes políticas.

Há um novo paradigma relacionado com a erva e há cada vez mais mulheres a proclamarem com orgulho, e em voz alta, o seu amor pela canábis. Para nos dar uma perspectiva histórica sobre o assunto, a VICE falou com Ellen Komp, a autora de Tokin' Women: A 4,000 Year Herstory. Activista de longa data pela causa da marijuana e directora da California NORML, Komp é também responsável pelo blog Tokin Woman, onde dá a conhecer "mulheres famosas e connoisseurs de canábis".

VICE: Comecemos pela forma como encetaste a nível pessoal a tua relação com a canábis e como isso levou a que te transformasses numa activista e uma advogada da causa.

Ellen Komp: Despertei para a canábis através de uma colega da universidade que assumiu como missão espetar-me uma moca. Não foi à primeira. Quando, finalmente, me apercebi de que estava mocada, foi tipo, "É só isto?". Estava à espera de sentir-me meio embriagada, ou estúpida, ou algo do género, mas depois percebi que a canábis era bem mais interessante que isso. Acabou por despertar a minha atenção para muitos outros interesses e experiências. No entanto, só comecei realmente a aperceber-me da injustiça da guerra às drogas, quando me deparei com o livro The Emperor Wears No Clothes, de Jack Herer. Fiquei a noite inteira a verificar coisas em dicionários e enciclopédias (porque na altura não havia Internet) e, literalmente, da noite para o dia tornei-me uma activista. Foi há 25 anos.

Publicidade

"As mulheres normalmente sentem-se mais seguras e confortáveis numa situação em que se esteja a fumar erva, em vez de numa situação em que se esteja a beber fortemente".

Nessa altura, achaste que o activismo ligado à causa da marijuana era dominado por homens?

Havia muito poucas mulheres envolvidas. Isso sempre me deixou perplexa e sempre fez com que tentasse encontrar mais mulheres para darem a cara. Uma das razões pode residir no facto de que muitas mulheres tiveram problemas relacionados com os seus direitos parentais por causa da marijuana. E, por isso, tinham medo que lhe pudessem levar os filhos, ou algo do género. Na altura, nunca pensei que houvesse mulheres que estariam dispostas a organizarem-se nos seus próprios grupos, como o NORML Women's Alliance, ou o Women Grow, mas o que é facto é que essas organizações estão agora num crescimento incrível. É óptimo ver isto a acontecer.

A utilização de canábis tem algum benefício que seja único, ou mais pronunciado, para as mulheres?

As dores menstruais, claro! É um remédio que já vem do tempo da Rainha Vitória. Mas também, e isto a nível pessoal, a erva ajudou-me a ser mais sociável. Os homens tendem a socializar uns com os outros à volta de álcool e eventos desportivos violentos e, por vezes, as mulheres sentem-se desconfortáveis e até ameaçadas em ambientes desse tipo. Por isso, acredito que, começando pelas relações interpessoais e extrapolando para um cenário mais geral, as mulheres normalmente sentem-se mais seguras e confortáveis numa situação em que se esteja a fumar erva, em vez de numa situação em que se esteja a beber fortemente.

Publicidade

Investigaste intensivamente o papel que as mulheres desempenharam ao longo da história no cultivo da canábis, bem como no seu uso para fins medicinais. O que é que aprendeste com essa pesquisa?

No livro Tokin' Women, começo no terceiro milénio antes de Cristo - um tempo em que tanto as deusas como as plantas eram reverenciadas como curandeiras. Nessa altura, uma proeminente deusa Suméria, chamada Ishtar, foi associada à canábis e até à invasão Semita de 2600 a.C., as mulheres praticavam as artes curandeiras sem qualquer restrição. Mas por volta do ano 1000 a.C., deixaram de ter essa liberdade. E as religiões baseadas em deusas foram subvertidas e as mulheres transformadas em ídolos de cariz sexual.

"Claro que, até muito recentemente, as mulheres nem sequer podiam estudar medicina e as que praticavam actos medicinais com plantas eram perseguidas como bruxas".

Até o Epic of Gilgamesh, do século 18 a.C., a história escrita da humanidade mais antiga a chegar aos nossos dias, basicamente transforma Ishtar numa devassa e é tido como o ponto de viragem da humanidade para um domínio patriarcal. Depois, na Bíblia, profeta atrás de profeta diz aos hebreus que Deus vai ficar muito lixado "se continuarem a queimar incenso em honra de Ashtoreth [o nome bíblico de Ishtar]". E esta é, possivelmente, a primeira machadada na canábis que, muito provavelmente era o elemento chave desse incenso que queimavam.

Publicidade

Claro que, até muito recentemente, as mulheres nem sequer podiam estudar medicina e as que praticavam actos medicinais com plantas eram perseguidas como bruxas. Joana d'Arc foi queimada viva por usar "ervas de bruxaria", como a mandrágora, por amor de Deus. Isto aconteceu no século XV, por isso sabemos bem que a Idade das Trevas foi realmente uma altura negra para as ervas medicinais e para as tradições lideradas predominantemente por mulheres que as colhiam e administravam.

No século XII, Hildegard de Bingen, uma compositora, filósofa e cristã mística alemã cultivou marijuana no seu quintal e escreveu dois volumes sobre ervas medicinais. Era uma mulher incrivelmente respeitada, que trocava correspondência com o Papa e todos os grandes líderes daquele tempo, mas desde aí não consegui encontrar mais nada sobre a contribuição das mulheres para a história da erva até 1800, quando Napoleão invade o Egipto e as suas tropas descobrem o haxixe.

Pouco depois, artistas e intelectuais europeus começam a experimentar o haxixe, incluíndo muitas mulheres. Uma delas foi Harriet Martineau, que é a tetravó da Princesa Kate Middleton. Era também uma reformista social, escritora e a primeira mulher socióloga. Entre outras experiências recolhidas nas suas viagens, descreveu, por exemplo, que como as mulheres judias não podiam fumar canábis durante o Sabbath, as mulheres árabes sopravam-lhes o fumo para cima.

Publicidade

Há alguma entusiasta do passado cuja história e ligação à canábis te seja particularmente querida?

A autora Isak Dinesen (também conhecida como Karen Blixen) inspira-me muito. Foi representada por Meryl Streep em África Minha, que foi baseado no seu bestseller sobre a sua vida enquanto capataz de uma plantação de café no Quénia. Era fã de Baudelaire e seguiu de forma entusiasta o seu exemplo nas experiências com haxixe. Timothy Leary, Aldous Huxley, Arthur Miller, Marilyn Monroe e Orson Welles todos andaram à sua volta e queriam a sua atenção. Era gigante.

David Bienenstock é autor do livro How to Smoke Pot (Properly): A Highbrow Guide to Getting High. Segue-o no Twitter.


Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.

Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.