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50 a 50, Entre a Liberdade e a Morte por uma Bala de Kadafi

Uma entrevista com Andrei Netto, o jornalista brasileiro que esteve no calabouço do regime líbio.

Em fevereiro de 2011, Andrei Netto, correspondente do Estadão em Paris, botou o pé no Oriente Médio determinado a contar a história da revolução da Líbia. Quando se viu estagnado em Ben Gardane, cidadezinha tunisiana a pouco mais de 200 km de Trípoli, e sem visto pra entrar no país, tomou a decisão que mais tarde o deixaria entre a liberdade e a morte: entrar clandestinamente na Líbia.

A prisão, o compromisso com as pessoas que conheceu e a necessidade de contar a história da revolução do início ao fim o motivaram a escrever O Silêncio Contra Muamar Kadafi. Num país como o Brasil, em que estamos adestrados a consumir uma ração mínima de notícias de mundo — com exceção, é claro, dos leitores vorazes da VICE —, o livro entrega uma visão coesa sobre um dos principais episódios da Primavera Árabe.

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Andrei abriu mão do distanciamento jornalístico em terceira pessoa e soltou a mão numa narrativa com arranjos de thriller em primeira pessoa. Mas não pensem que isso tirou seu discernimento ou esforço de imparcialidade. Como ele mesmo coloca, não existem anjos na revolução da Líbia.

Recentemente, Andrei esteve no Brasil pra lançar o livro. No meio da correria, conseguiu um tempo pra trocarmos uma ideia por telefone.

VICE: O livro começa em terceira pessoa e, em seguida, você entra falando em primeira pessoa e vai até o fim, escrevendo não só sobre a sua vivência, mas também sobre coisas que apurou com as pessoas, histórias que te contaram.
Andrei Netto: O livro ia ser escrito em terceira pessoa. Passei pra primeira pessoa quando concluí que a melhor ideia era falar sobre a minha experiência. Mas isso não teve nenhuma implicação na opção de começar falando na história do Siraj, pra depois falar sobre a minha história. Na verdade, isso é só um recurso narrativo pra começar em alta velocidade, digamos assim, e depois fazer uma curva descendente, acalmando o ritmo do livro pra começar a entrar num processo de reflexão sobre a Primavera Árabe. Depois, o livro volta a acelerar quando se aproxima da minha prisão. Quando acontece a prisão, ele está acelerado. Aí, começa uma nova curva descendente, pra contextualizar de novo, passa pelo lance das discussões diplomáticas que são bem de contexto mesmo, e volta a acelerar até o fim do livro, quando acontece o encaixe da história.

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Eu queria saber mais sobre o exercício de estilo. Quais foram as suas influências, fora das referências bibliográficas? Você se inspirou num John Reed, Jon Lee Anderson? Quais autores?
O Jon Lee Anderson é um cara que admiro muito. Ele está presente nesse livro, a narrativa de guerra dele. Do Michael Herr, embora tenha um texto completamente diferente, repleto de gírias e mais alternativo, peguei algumas pitadas da forma como ele apresenta um conflito. O fundamental são essas duas escolas que me inspiraram mais: primeiro, a das narrativas norte-americanas de guerra, que veio depois do Michael Herr, e segundo a do pessoal do novo jornalismo dos anos 20, 30, 40, que fizeram esse texto mais saboroso e menos jornalístico.

O fato de o primeiro capítulo se chamar "Morte" me pareceu bem sintomático sobre a sua percepção da revolução, porque fica claro ao longo do livro que você não crê nem um pouco que os rebeldes são "melhores" do que os kadafistas.
Sim! Fiz questão de deixar claro que não existem anjos na revolução. Uma revolução é feita de crimes de guerra, de parte a parte. É um pouco iconoclasta nesse sentido, porque as pessoas tendem a criar deuses e demônios numa guerra. Então, os kadafistas eram demônios e os rebeldes eram anjos. É claro que a legitimidade estava do lado dos rebeldes, porque eles estavam lutando pra derrubar um regime tirânico que estava lá há 42 anos, em nome de causas nobres, como democracia e direitos humanos. Mas, no caminho disso, vêm os crimes, os excessos, as mazelas. A história do Siraj é a de um jovem que queria matar o Kadafi, queria ver ele morto, não matou, mas tinha vontade, estava chutando o Kadafi, arrancando o cabelo dele junto com os outros. A minha ideia é não criar heróis, de lado nenhum.

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Nesse contexto de crimes de guerra e de uma revolução calcada na violência, qual é o futuro da Líbia nas mãos dos rebeldes?
É um futuro complexo. Falo sobre isso no epílogo. É um momento pós-revolucionário agora, delicado por natureza. A questão é: são os primeiros meses de democracia, pós-regime. Aconteceram eleições em junho. É natural que o Estado esteja em frangalhos, porque as instituições foram destruídas ao longo dos 42 anos de regime. Na verdade, eram instituições que serviam à família e não ao cidadão. Então, é preciso reconstruir essas instituições. E o processo de reconstrução vai ser lento. Vai demorar anos, quem sabe décadas. A Líbia tem a sorte de ser um país muito rico em recursos naturais, tem a quarta maior reserva de petróleo do mundo. Durante esse período todo de fraqueza e de construção do Estado líbio, o país está sob ameaça. O que aconteceu nesse primeiro ano de libertação é que algumas milícias que participaram da revolução se organizaram em torno de ideais extremistas islâmicos falatistas, e hoje eles representam uma ameaça contrarrevolucionária conservadora. Se esses caras armados decidirem um dia afrontar o Estado pra tentar tomar o poder, isso vai ser um movimento contrarrevolucionário por excelência, porque existem os revolucionários originais, com ideias democráticas e abertura do país, e existirão os ex-rebeldes, que vão tentar, eventualmente, um golpe de estado pra impor a charia como lei do país. Então, é um momento delicado. Tudo pode acontecer, inclusive uma contrarrevolução.

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Agora, o que eu vi na última vez que fui à Líbia, durante as eleições, foi muito positivo. Foi uma adesão em massa de 60%, 70% do eleitorado indo às urnas com vontade de votar, com imenso entusiasmo, como eu nunca vi em nenhum país do mundo, e isso que já eu cobri eleições em vários países.

Países vizinhos passam por processos semelhantes. A Síria, por exemplo, está numa situação que agora se agravou e parece se encaminhar pra um desfecho. Outros países da Primavera Árabe já viveram sua revolução, como Egito e Iêmen. Você enxerga algum lugar-comum entre essas revoluções?
Enxergo, sim. O grande lugar-comum é o ponto de partida, que é a opressão, o silêncio. As populações desses países estavam sujeitas a um grau de opressão inigualável dos aparatos públicos. Nessa região do mundo, a opressão era onipresente. Esse é o grande ponto em comum dessas revoluções, que depois vão ter desfechos muito diferentes. A revolução da Tunísia é muito mais pacífica do que a do Egito, que foi muito complexa e problemática, mas é uma revolução que não resultou num conflito armado como a da Líbia, esta já uma revolução armada muito pesada, mas ainda assim com começo, meio e fim. A da Síria é uma revolução armada, mas muito mais problemática em termos de conflito, porque existem movimentos sectários. Os futuros desses países provavelmente vão caminhar em direções diferentes. Agora, a origem dessas revoluções, a meu ver, é uma origem comum, de enorme opressão, que chegou a um ponto de saturação depois de décadas e décadas. Esse ponto de saturação se chama Primavera Árabe.

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Esse ponto de saturação foi dinamitado por novos meios de comunicação e uma juventude mais informada e alfabetizada?
Sim, tem uma porção de fatores: tecnologia, meios de comunicação, acesso à TV a cabo, internet, uma juventude muito mais aberta ao Ocidente, que quer consumir não só informação, mas produtos. Os objetos de desejo de um jovem líbio são os objetos de desejo de qualquer jovem do mundo: ter uma tevê mais legal, um iPad, uma namorada, sair pra noite. Eles são jovens como a gente, andam com as calças baixas mostrando a cueca.

Além dessa fatia da população, que foi essencial pra revolução, ainda se soma uma elite intelectual muito forte, que foi se formando nas universidades locais e estrangeiras — na França, no Reino Unido, nos Estados Unidos, no Canadá e no Brasil, inclusive. Essas pessoas se formaram nesses países e, em determinado momento, absorveram a cultura democrática e de direitos humanos, e hoje replicam essa cultura dentro do país. A ambição da abertura foi trazida por essas pessoas, que acabaram sendo os autores intelectuais dessas revoluções.

As revoluções da Primavera Árabe são profundamente populares, mas também são da classe média esclarecida, digamos assim, que ajudou muito a conscientizar as classes mais baixas, que eram beneficiadas pelo assistencialismo dos estados, a se unirem à revolução.

Como os protagonistas da Primavera Árabe enxergam o Ocidente? São céticos ou acreditam na ajuda internacional?
Isso varia muito de país pra país. No Egito, por exemplo, a opinião pública é muito antiamericana. Eles têm a sensação de que os regimes militares — o último deles foi o do Mubarak, mas os regimes já existiam antes — eram fantoches nas mãos dos Estados Unidos. O que eu sinto no Egito é o desejo de um tratamento de igual pra igual, que os Estados Unidos e o Ocidente parem de tratar o país como um bando de estúpidos e marionetes, a serviço deles no Oriente Médio.

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E na Líbia?
Na Líbia existe esse sentimento também, mas é muito mais fraco. Não há um sentimento antiamericano muito forte. Pelo contrário, existe um sentimento de admiração imenso pela América. A população da Líbia é muito mais moderada do que a do Egito, e uma boa parte chega a ser liberal, mesmo.

Durante a guerra, os líbios olhavam pro céu e rezavam pra surgir um caça norte-americano ou eles sentiam que deviam decidir o destino do país sozinhos, sem contar com a ajuda internacional?
Não, eles têm a perfeita consciência, até os que negam isso, que a revolução não teria acontecido sem a intervenção do Ocidente. Claro que vão surgir alguns nacionalistas que vão dizer "não, nós fizemos a revolução sozinhos". É verdade, eles fizeram a revolução por terra. Mas sem a ajuda internacional, Kadafi teria retomado o controle do país. Até porque os grandes ideólogos do plano de tomada de Trípoli, por exemplo, sabiam que, sem a ajuda dos aliados do Ocidente, a revolução iria fracassar.

Quais foram as motivações principais pra escrever o livro: tinha muita história pra contar, mas faltava espaço, uma sensação de dever com as pessoas que você conversou ou o quê?
Um pouco de tudo. O fato de que num jornal não se pode contar a história de uma revolução, só o dia a dia, é essencial. Eu sabia que, pra consolidar esse trabalho pros leitores, seria necessário bem mais do que algumas páginas de jornal. O segundo fator é esse que você mencionou, o compromisso com as pessoas. Muita gente me pedia pra escrever um livro. E o terceiro fator é que muitas pessoas queriam saber a história da minha prisão. São essas três grandes histórias, que na verdade são uma. Tudo isso faz parte da construção da minha visão da revolução.

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E como foi sua experiência nos calabouços do Kadafi?
Se tivesse que resumir, eu diria: ansiedade, uma ansiedade brutal, uma angústia muito forte pelo fato de que eu estava desaparecido e sem comunicação com o exterior, que as pessoas achariam que eu estava não só desaparecido, mas morto também, e incerteza. Uma incerteza completa, gerada pelo fato de que qualquer coisa poderia acontecer a qualquer momento. A libertação era uma hipótese, a melhor delas, e a execução era outra, a pior delas. Qualquer uma era plausível. E, se eu tivesse que apostar, eu diria que as chances eram de 50%.

Pra finalizar, qual a lição que os jovens árabes que fizeram a revolução deixam pro jovem ocidental?
A grande lição que eles deixam é de cidadania. Os caras estavam cerceados da atividade política durante mais de 40 anos e, sem ter noção, estavam fazendo política ativamente ao se rebelarem. Isso é um ato político. E eu acho que a juventude ocidental precisa se ligar pro fato de que a atividade política pode transformar vidas, países, alterar destinos. Não estou aqui pra ser um militante político-partidário, não é isso. Estou falando de iniciativa, de saber que a gente ainda muda mundos. Esses caras estão mudando o mundo.

Todas as fotos são de Andrei Netto, com exceção do seu retrato, feito pelo fotógrafo Tadeu Vilani.

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