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A morte de Alton Sterling nos EUA mostra por que é importante filmar a polícia

Depois do vídeo que mostra a morte de um homem negro por uma ação abusiva de policiais brancos, a justiça norte-americana revê o direito civil de filmar a ação policial.

Still do vídeo da morte de Alton Sterling. Foto por Arthur Reed via AP. Foto de Header via usuário do Flickr Tony Webster.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.

"Obrigado, Deus, pela Apple, obrigado pelo Google, obrigado pela Microsoft!"

Essas foram as palavras do advogado Edmond Jordan, falando sobre a morte de Alton Sterling numa entrevista coletiva em Baton Rouge na quarta passada. Sterling ganhou o tipo de fama póstuma mais trágica um dia antes, seu nome se juntando a um catequismo macabro de outros negros norte-americanos que tiveram a vida tirada pela polícia por pouca ou nenhuma razão. Ele foi morto enquanto policiais o imobilizavam no chão do estacionamento de uma loja de conveniência, baleado várias vezes à queima roupa depois de ser abordado.

Só sabemos disso, e a morte de Alton Sterling só virou um trend no Twitter e se espalhou pelo mundo, porque os policiais o segurando foram filmados por alguém de um carro próximo da cena. Os oficias estavam usando câmeras presas ao corpo, que aparentemente caíram no meio da luta, e a filmagem que elas produziram não foi divulgada ao público — pelo menos não ainda. As câmeras de segurança da loja de conveniência também devem ter capturado o incidente, mas as fitas foram confiscadas pela polícia. Há ainda o vídeo do painel da viatura, mas se esse revela alguma coisa, apenas as autoridades sabem o quê. (Um vídeo de outra testemunha, com imagens mais fortes, foi obtido pelo Advocate.)

Esse é o procedimento padrão da polícia dos EUA: quando sob ataque, eles fecham suas fileiras e evitam que qualquer informação, incluindo vídeos, veja a luz do dia. Pode haver boas razões para que a polícia não queria divulgar imagens de encontros questionáveis, mas geralmente fica parecendo que eles só querem se esquivar do que só pode ser rotulado como um crime. Por exemplo em 2014, quando um policial de Chicago baleou Laquan McDonald, 17 anos, porque ele teria "se lançado" com uma faca na mão — até que o vídeo do painel da viatura, que estava sendo suprimido, teve a divulgação obrigada por um juiz, revelando que no momento em que McDonald foi baleado, ele nem sequer estava andando em direção aos policiais.

Provas em vídeo podem ser interpretadas de modo diferente por pessoas diferentes, e raramente são tão conclusivas quanto deveriam. Mas ainda são melhores que o testemunho dos policiais, que podem não lembrar exatamente do que aconteceu no calor do momento ou — não tem como dizer isso de um jeito legal — mentem para salvar a própria pele quando matam alguém.

O compartilhamento desses vídeos pode parecer mórbido ou voyeurista às vezes, mas geralmente esses são os melhores relatos que temos desses incidentes. Sem vídeo, o assassino de Walter Scott provavelmente não teria acusado policiais pelo crime. Sem vídeo, nunca saberíamos que Eric Garner disse várias vezes aos policiais da NYPD "Não consigo respirar!", até o momento em que desmaiou por causa do mata-leão que acabou o matando.

Graças à onipresença de celulares incrivelmente avançados, é mais fácil que nunca filmar a polícia, e compartilhar esses vídeos de forma rápida e anônima com o mundo inteiro.

Empresas de tecnologia gostam de tagarelar sobre como estão mudando o mundo para melhor, mas smartfones e a internet realmente mudaram o mundo, principalmente por acidente, e em algumas vezes para melhor. Graças à onipresença de celulares incrivelmente avançados, é mais fácil que nunca filmar a polícia, e compartilhar esses vídeos de forma rápida e anônima com o mundo inteiro. As câmeras que os policiais usam nos uniformes pode ter atraído muita atenção, como um jeito de evitar que os oficiais cometam irregularidades, mas às vezes essas câmeras podem ser desligadas, em outras simplesmente caem no momento errado. Os vídeos mais impressionantes geralmente são feitos por pessoas que estavam passando e resolveram usar seus celulares, como no caso das mortes de Scott, Garner e Sterling. Steve Jobs certamente não pretendia dar aos usuários a melhor ferramenta possível para policiar a polícia, mas o iPhone é exatamente isso.

Geralmente, tribunais decidem que filmar a polícia em público é um ato protegido pela Primeira Emenda americana (especialmente se você é um jornalista profissional), mas esse não é um direito universalmente reconhecido. No passado, pessoas que estavam registrando a ação da polícia já foram acusadas de fazer "grampo"; Simon Gilk, um cidadão de Boston, processou a polícia depois de ter sido preso nesses termos, e com ajuda da ACLU, usou um tribunal de apelação para afirmar o direito de gravar a polícia.

Apesar dessa vitória, muitos policiais continuam tendo uma atitude hostil quando são filmados. Em maio, um oficial da polícia de Nova York puxou sua arma para um grupo de pedestres que os gravava com seus celulares — e mesmo que o policial tenha perdido sua arma e distintivo, o comissário do NYPD Bill Bratton denunciou a "epidemia" de pessoas filmando policiais, como se elas fossem o problema. Mais preocupante ainda, dois processos comandados por um juiz federal da Filadélfia decidiram que não há direito da Primeira Emenda em filmar a polícia "sem o propósito declarado de criticar o governo".

A ACLU da Pensilvânia, que atualmente está apelando da decisão, diz que isso não representa que agora é ilegal filmar a polícia no estado. No entanto, na ausência de um direito constitucional, leis podem ser aprovadas limitando a capacidade do público de fazer o tipo de vídeo que esclareceu a morte de Alton Sterling. Projetos de lei proibindo a filmagem da polícia a 6 e 7 metros de distância foram introduzidas este ano no Texas e Arizona — e apesar das duasiniciativas terem morrido, não é difícil ver uma onda de sentimento reacionário pró-polícia forçando a aprovação delas em outros lugares. No final das contas, a Louisiana, o estado onde Sterling foi morto, aprovou uma lei "blue lives matter" em maio, que protege oficiais da lei sob status de crime de ódio.

Filmar a polícia não deveria ser necessário. Instintivamente, queremos que todos os policiais sejam confiáveis, assim como queremos que todos os nossos amigos sejam sinceros e todo cachorro seja amigável. Mas já vimos incidentes demais de brutalidade policial, muitos cadáveres de homens negros desarmados crivados de balas e muitos acobertamentos para que o público assuma que os policiais estão certos quando usam suas armas. Cada vez mais, parece que a coisa mais responsável e cívica a fazer é filmar qualquer alteração com a polícia que possa sair do controle. Não porque todos os policiais são maus ou propensos à brutalidade, mas porque se algo horrível acontecer, seu vídeo pode ser a única maneira de responsabilizar o culpado.

Depois da morte de Sterling, os oficiais envolvidos insistiram que estavam com a razão, mas seus chefes parecem não ter tanta certeza — o chefe de polícia de Baton Rouge disse que "exige respostas", o governador da Louisiana disse que estava "seriamente preocupado" com o caso, e agora todo mundo está esperando os resultados das investigações do Departamento de Justiça norte-americano. Esse tipo de discussão não emergiu porque os oficiais de repente ficaram indignados com as mortes causadas pela polícia — emergiu porque alguém tinha um celular no lugar certo, na hora certa e pressionou "gravar".

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Tradução: Marina Schnoor

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