A Volta da Hidra

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A Volta da Hidra

O dragão de várias cabeças dessa vez era multicor, mas ainda sem rosa na paleta.

A festa foi muito bonita. Sim, a quinta manifestação contra o aumento das passagens de ônibus em São Paulo foi, em sua maioria, um imenso bloco de carnaval por 20 centavos.

Depois do fatídico ato na última quinta, que acabou em uma difusa luta urbana entre a Polícia Militar e manifestantes pelos arredores da Avenida Paulista, a adesão ao movimento cresceu consideravelmente. As imagens, relatos e vídeos da violenta repressão policial foram repetidos e compartilhados à exaustão durante o fim de semana.

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As redes sociais tiveram pauta única durante 72h. A imprensa cobrindo ostensivamente os resultados e desenrolar do ato. Links e mais links com dicas de sobrevivência em caso de confronto. Mil memes e piadinhas com vinagre, salada, gás lacrimogêneo e liberdade de manifestação. Galera já estava antecipando o esporro.

Às 16h, o Largo da Batata já estava totalmente tomado. Pelo Metrô e pelas ruas adjacentes, milhares chegavam. Uma hora depois o trânsito da região já estava completamente bloqueado, o comércio de portas fechadas, os gritos de guerra e a bateria ecoavam vigorosamente pela praça.

O clima era muito diferente da última quinta-feira. A tensão lúgubre deu lugar à ansiedade e um certo ar de festa universitária com pouca cerveja. Logo no início da concentração, militantes do PSTU levantaram as suas bandeiras e foram fortemente hostilizados com gritos de “abaixa a bandeira”, “sem partido”, “PSTU vai tomar no cu” e “oportunistas”. Esse tipo de autogestão espontânea e tensão interna aconteceu inúmeras vezes na noite - vale notar que, ao contrário de muitos apartidários ali, o partido estava presente desde o primeiro ato.

Os rostos cobertos e encapuzados compartilharam o espaço com caras pintadas de verde amarelo e bandeiras brasileiras. Muitos cartazes sobre “liberdade de manifestação” e “o Brasil acordou”. Foi meio pateta ver muita gente indo pela primeira vez em um ato público numas de “contra qualquer coisa”. Pouca polícia em volta da praça. Nem sinal da tropa de choque ou cavalaria.

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Quando a marcha deu os seus primeiros passos pela Avenida Faria Lima, por volta das 18h, era impossível precisar quantas pessoas estavam ali, e muitas outras ainda chegavam. Qualquer estimativa que conte menos de 100 mil manifestantes passa bem longe da realidade. Foi muito mais.

No front formou-se um pelotão com membros do MPL e policiais militares negociando o trajeto e o ritmo da marcha. Cercados de jornalistas, câmeras e doideras gritando “fora Globo!” e “vamos pra Paulista’. Ao fundo, a bateria e a galera se esgoelavam em “vem pra rua vem, contra o aumento” e “ih, fudeu, o povo apareceu”.

A primeira parada foi na esquina com a Avenida Rebouças. E aí a marcha se partiu em duas, com um tanto de gente seguindo pela Faria Lima, outro pedaço pegou a Rebouças para a Marginal Pinheiros. Nós fomos pela Faria Lima achando que esse seria o bloco principal, nossa equipe de vídeo se dividiu também.

A Hidra reapareceu, mas desta vez ela foi criada de dentro para fora do movimento. Mais tarde ficamos sabendo que uma dissidência do MPL, descontente com o atual tom da marcha, marchou diretamente para o Palácio dos Bandeirantes, na zona oeste. O clima era outro e a turma tentou derrubar o portão, molotovs voaram para dentro do palácio. Os policiais não deixaram barato e as bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha foram novamente usadas contra os manifestantes.

No lado de cá, o que se seguiu foi uma rápida e calma marcha. Todos os comércios fechados, prédios vazios. Aos poucos o bloco de pessoas foi se espalhando e, conforme a caminhada seguia, os gritos e batuques também iam ficando mais esparsos.

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Seguimos a turma que entrou na Avenida Cidade Jardim (uma outra seguiu pela Faria Lima). Seguimos pela Avenida Europa, entre concessionárias de carros importados e o trânsito, que foi pego de surpresa pela guinada do bloco. O cansaço já começava a bater e os manifestantes se espalharam pela rua, mas sem parar a marcha. Os carros buzinavam em apoio, o pessoal retribuía com flores e cartazes. Teve até uma motorista chorando de emoção.

Na Avenida Europa também vimos a primeira “contenção de danos” espontânea. Uns anarcos adolescentes tentaram pixar uma parede branquíssima e foram prontamente vaiados e xingados pela galera. “Sem vandalismo, sem vandalismo!” A molecada fez uns rabiscos, mas acabou desistindo assim que um fortão com camiseta do Motorhëad intimou eles. Foi nesse tempo que também ouvimos os primeiros gritos de “fora corrupção”.

Lógico que a marcha subiria a Rua Augusta em direção à Avenida Paulista. E a subida foi cansativa e contou até com uns momentos de silêncio. Nenhum policial à vista, com trânsito já interrompido. Foi só chegar e se espalhar. "A Paulista é nossa!". O Estado perdeu a luta simbólica.

Achamos que ficaríamos por lá, mas o pessoal seguiu caminhando pela Paulista inteira até o bairro do Paraíso. Ainda lotada, a marcha entrou na Avenida 23 de Maio e seguiu para a Assembleia Legislativa, no Ibirapuera. Uma trupe parou em frente ao prédio, que tinha um cordão com só uma dúzia de PMs, e cantou contra Dilma, Haddad e Alckmin. Não durou muito e o seguiram de volta à Paulista, subindo a Brigadeiro Luís Antônio. Enquanto isso, outra parte do protesto ocupava a Marginal Pinheiros até a ponte estaiada. Em todos os trajetos, intensa adesão popular.

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Encontramos um outro front da manifestação no caminho e a coisa retomou o fôlego. O clima de festa começou a se instaurar definitivamente e os poucos bares abertos que encontramos pelo caminho se apinhavam de gente, já sacando umas brejas para a celebração.

A Paulista tinha clima de Virada Cultural, mas sem arrastão. O pessoal ainda agitava as bandeiras e cartazes, mas a ideia mesmo era ficar por lá e curtir uma apoteótica ocupação pacífica. Nem o Metrô fechou, estava tudo na paz.

Já eram umas 21h e ainda tinha gente que chegava, vinda dos outros fronts que se espalharam pela Avenida Berrini e Marginal Pinheiros. A micareta do Passe Livre foi o alívio que o movimento e todo paulistano que orbitou ao redor dele nos últimos dias precisava. A tensão e o confronto, as imagens de bombas explodindo e nuvens de gás deram lugar a um clima de curtição, de tomar as ruas por um motivo político, mas saber lidar com a situação com algum prazer.

Muita gente que esteve nos outros atos sentiu medo de que o movimento fosse aos poucos se tornando uma espécie de Cansei, que levanta a inócua bandeira mediocrata de ser “contra a corrupção”. A passeata desta segunda teve lá os seus pequenos núcleos cara-pintada, mas o ponto pacífico era que tudo aquilo só estava acontecendo porque o ônibus aumentou, se manifestaram contra isso e a resposta do Estado foi violenta demais. Se não fosse a festa, haveria guerra. Seria um erro estratégico absurdo reprimir a imensa marcha de ontem, tivesse ela vandalismo ou não.

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Tudo correu bem quando deveria correr e São Paulo teve uma noite de alívio e festerê merecidos, mas isso também não é indício de que tudo está certo agora. Outras passeatas virão e, mesmo se a adesão for menor, o recado é que o Movimento Passe Livre conseguiu pôr nas ruas, do Palácio dos Bandeirantes à Avenida Paulista, a maior manifestação política dos últimos anos.

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