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O Monge Rebelde Exilado de Mianmar Ainda se Considera Perigoso

Ashin Gambira liderou a Revolução do Açafrão em 2007, sendo posteriormente preso pelas autoridades. Durante seu tempo na prisão, Gambira foi torturado, sofreu vários ferimentos na cabeça e viu sua saúde se deteriorar muito.

Em 2007, o mundo viu as massas se juntarem em Mianmar, em meio à alta repentina do preço dos combustíveis, para protestar contra a ditadura militar. Entre os manifestantes havia milhares de monges budistas, um movimento que ficou conhecido como Revolução Açafrão, uma referência à cor de suas vestimentas.

A mobilização pacífica de homens santos num país que vem se isolando do resto do mundo começou como algo inspirador, dado esperança de um fim para a ditadura local. Aí o mundo assistiu horrorizado quando a Junta Militar do país reagiu violentamente contra os protestos, matando um número ainda desconhecido de pessoas e ferindo muitas outras. Claro, não foi a primeira vez que esse tipo de força foi usado pelo governo local para subjugar os dissidentes, mas foi a primeira vez que o mundo pode testemunhar tudo em tempo real.

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Ashin Gambira liderou uma das organizações mais proeminentes dos protestos, a All Burma Monks' Alliance. Depois que a ofensiva começou, Gambira passou muito tempo na clandestinidade, escrevendo cartas criticando o governo birmanês para as principais publicações da mídia ocidental. Não demorou muito para ele ser preso e sentenciado a 68 anos de prisão por seu papel nos protestos. Ele foi libertado em 2012 depois de muita pressão internacional, só para ser perseguido, preso e libertado muitas vezes até finalmente fugir do país em 2013. Durante seu tempo na prisão, Gambira foi torturado, sofreu vários ferimentos na cabeça e viu sua saúde se deteriorar muito.

O caminho que levou Gambira a se tornar monge é incomum. Quando criança Gambira fugiu de casa, foi pego pelo Exército Mianmarense e forçado a servir como soldado mirim. Sua família conseguiu encontrá-lo e colocá-lo num monastério antes que ele fosse preso ou tivesse que voltar ao exército. Foi essa decisão que que levou Gambira, 14 anos depois, a se ver como um jovem de 28 anos no comando de um dos movimentos de protesto mais importantes do país, e contra a mesma Junta que roubou parte de sua juventude.

O movimento foi principalmente um levante orgânico, mas também uma ação meticulosamente planejada no submundo. "Estávamos organizando o All Burma Monks Alliance desde 2004", me disse Gambira. "Há 20 anos as pessoas não estavam contentes com os preços sempre subindo. Os preços dos combustíveis e das commodities eram muito altos e os salários eram muito baixos. A 88 Generation e outras organizações não conseguiam protestar livremente, e isso se tornou um problema, então todos os monges se juntaram para protestar também", ele diz, se referindo ao movimento batizado em homenagem aos grandes protestos que aconteceram no país duas décadas antes.

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Por seu papel na organização dos protestos, a Junta agiu com força contra Gambira, o sentenciando a 68 anos de prisão. Apesar dos monges serem especialmente respeitados na sociedade mianmarense, os algozes de Gambira foram bastante cruéis. "Na prisão sofri três tipos de tortura: tortura física, psicológica e médica, na qual eles me davam injeções", ele diz. "Eles tentavam interromper meu sono constantemente. Eles colocavam areia no meu arroz. Mas eu recebia comida da minha família, então não precisava comer aquilo. Eles usavam sons altos para me assustar. E me batiam." Segundo a Anistia Internacional, Gambira foi amarrado numa cadeira com um pano sobre a cabeça e espancado com bastões de madeira. Na mesma época ele foi deixado algemado numa cadeira por tanto tempo que o metal começou a cortar a pele dos pulsos. Como resultado, Gambira teve que reaprender a usar as mãos depois que saiu da prisão.

As injeções que ele descreve eram igualmente sádicas. "O médico da prisão me dava uma injeção e eu começava a tremer. Meu corpo e minhas pernas tremiam, e aí eu começava a gritar. Eu ficava assim por três horas. Depois dessas três horas, o médico voltava para minha cela e os guardas me seguravam pelos braços e pernas no chão, aí o médico injetava a mesma coisa de novo. A tremedeira foi ficando menos severa a cada vez que eles faziam isso." Até hoje Gambira não sabe dizer o que eram aquelas injeções.

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O monge foi libertado no dia 13 de janeiro de 2012, como parte de um perdão em massa resultado de pressão internacional. Depois ele foi preso e libertado várias vezes, até fugir para a Tailândia em março de 2013.

Desde que saiu de Mianmar, a violência entre budistas e muçulmanos parece ter deixado uma impressão forte em Gambira, e ele desconfia que a Junta tenha um papel central nessas revoltas, juntamente com a ascensão do budismo nacionalista associado a elas. "Se não houver paz é difícil ter uma democracia de verdade", ele diz. "É assim que os generais permanecem no controle. Eles não estão interessados em soluções políticas. O governo cria toda essa cena por baixo dos panos. Em Meiktila [onde as revoltas de 2013 começaram] – não eram os moradores locais que estavam brigando e causando tumulto, eram pessoas de fora."

Ele culpa principalmente Wirathu – conhecido como o "Bin Laden budista" em Mianmar, ele frequentemente é creditado por inflamar as tensões entre budistas e muçulmanos, espalhando seu discurso de ódio e rumores contra os muçulmanos. "Ele fez um discurso sobre os kalar [um termo depreciativo para os muçulmanos e rohingya] logo antes da violência começar", disse Gambira.

Gambira lembra de ter encontrado Wirathu em duas ocasiões. "Nos encontramos na cadeia – Wirathu também esteve preso em Mandalay. Eu estava sozinho na prisão e ele me mandou uma carta perguntando sobre as minhas condições. Quando fui libertado, me encontrei com ele mais uma vez. Eu disse a ele para não criar discórdia entre muçulmanos e budistas. Isso dá uma reputação ruim aos budistas."

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A reação de Wirathu, de acordo com Gambira, foi admitir uma relação perturbadora com oficiais do governo. "Antes de conhecer Wirathu, conheci Aung Thaung, um conselheiro próximo do general Than Shwe [o ex-ditador de Mianmar, que alguns acreditam ainda estar no poder nos bastidores]. Quando Wirathu se encontrou comigo, ele disse que não criaria esses problemas no futuro, mas também disse que não podia ignorar Aung Thaung. Wirathu tinha medo de ir preso de novo se desobedecesse as ordens de Aung Thaung. É por essa razão que ele faz isso [alimenta a tensão étnica]."

Se Gambira se lembra bem, essa conversa parece ser uma admissão do "Bin Laden budista" de que ele está sob pressão de oficiais do governo para criar distúrbios entre budistas e muçulmanos. Especulações sobre a relação entre os dois são generalizadas, particularmente depois que Wirathu e Aung Thaung se encontraram em abril de 2012, logo antes das revoltas começarem em Rakhine. Tentei entrar em contato com Witathu para que ele comentasse as alegações de Gambira, mas ele não quis se pronunciar.

Mês passado, os EUA anunciaram ter emitido sansões contra Aung Thaung. O Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros do Escritório do Tesouro norte-americano divulgou a seguinte declaração: "Por minar intencionalmente a transição política e econômica positiva em Mianmar, Aung Thaung está perpetuando a violência, a opressão e a corrupção".

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Quanto à violência atual em Rakhine, oeste do país, onde revoltas entre muçulmanos rohingya e budistas resultaram num número desconhecido de mortos e em 140.000 pessoas deslocadas, Gambira parece ver a mesma mão por trás da violência. "Sim, isso é sobre o poder do general", ele diz. "Rakhine é rico em gás natural e eles querem o controle disso. A questão que começou a violência foi muito pequena, mas eles transformaram isso numa guerra. Eles podiam ter prendido os homens que estupraram a garota [Ma Thida Htwe, cujo estupro e assassinato, supostamente cometidos por três muçulmanos, teria começado os distúrbios em 2012]." Apesar das autoridades terem de fato prendido os homens que seriam responsáveis pela morte de Ma Thida, a polícia e outras autoridades também foram acusadas de permitir, incentivar e em alguns casos participar da violência contra os rohingya.

A violência entre budistas e muçulmanos no país não mostra sinais de estar esfriando, como as revoltas que ocorreram agora no verão em Mandalay mostraram. Quando perguntei se havia esperança de uma reconciliação, Gambira mostrou ter consciência dos desafios. "Sim [pode haver reconciliação], mas há um problema porque as pessoas não tiveram educação, elas não conseguem pensar. As pessoas sempre ouvem seus líderes. Estamos tentando formar uma organização para fazer a reconciliação em Mianmar, com líderes de todas as religiões. Mas há grupos trabalhando contra isso, grupos antimuçulmanos como o Ma Ba Tha."

Gambira é o tipo de rebelde guiado pelo coração, o tipo que se recusa a cair mesmo quando é espancado, que não se submete à coação. Por essa razão, essa insistência inabalável em buscar justiça para toda Mianmar, que a Junta ainda o teme tanto. De acordo com Gambira, é por isso que o governo ainda tem medo que ele volte a Mianmar. "Eles têm medo; eles sabem que as pessoas ainda me apoiam", ele disse. "O governo de Mianmar ainda está esperando por mim. As patrulhas da polícia passam pela minha casa de 15 em 15 minutos. Eles ficam de guarda nas casas de chá que eu costumava frequentar, para ver se vou voltar."

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Tradução: Marina Schnoor