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Pedalando até o Topo da Favela Mais Antiga do Rio

O governo está despejando milhares de residentes da Providência, a favela mais antiga da cidade. E não é a primeira vez que os moradores passam por um aperto desses.

Em preparação para a Copa do Mundo e a Olimpíada, o governo da cidade do Rio de Janeiro está despejando milhares de residentes da Providência, a favela mais antiga da cidade. Há um grande déficit de habitação no país. A classe média baixa do Brasil e atualmente mais de 11 milhões de pessoas vivem em favelas por aqui. Muitos residentes de favelas possuem suas próprias casas, que estão sempre em estado de construção, com a adição de um novo andar ou um quarto extra. Isso, mais o fato de muitas das instalações elétricas e do encanamento também serem improvisados, tornam a situação ainda mais precária. O governo não faz quase nada nesses locais, mas um estudo recente publicado pelo jornal O Globo mostrou que só 21% dos residentes das favelas da cidade vivem abaixo da linha da pobreza e que 13% são de classe média alta ou ricos.

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A Providência fica perto do centro, próxima de estações de trem e metrô, e tem uma vista deslumbrante da cidade. Atualmente o lugar sofre uma explosão imobiliária, e alguns apartamentos e casas na vizinhança estão saindo por quase 200 mil reais no mercado. Dois anos atrás, funcionários da prefeitura começaram a pintar números nas paredes das casas. Quando os moradores perguntaram o que era aquilo, descobriram que a prefeitura planejava demolir um bom pedaço do bairro e construir um alojamento de luxo pago com dinheiro público, além de um gigantesco sistema de teleférico ligando a estação de trem e a Cidade do Samba, uma estrutura estilo prisão perto do porto, onde turistas estrangeiros pagam muita grana por cerveja morna e shows de samba. Tudo isso estava sendo feito, segundo o prefeito Eduardo Paes, como parte do projeto Porto Maravilha. Porto Maravilha é um projeto público-privado que visa melhorar a infraestrutura do local e que vai custar oito bilhões de reais para gentrificar a área decadente do porto da cidade, beneficiando grandes especuladores como Donald Trump, que anunciou recentemente a construção de quatro torres empresariais em frente ao fétido canal de esgoto do Maracanã, próximo da estação de teleférico Cidade do Samba. O prefeito justifica o custo como um embelezamento necessário antes que a cidade seja a anfitriã da Olimpíada.

Esta não é a primeira vez que os moradores da Providência passam por um aperto desses. A vizinhança foi fundada por veteranos da Guerra de Canudos depois de 1897, grande parte deles ex-escravos. O governador prometeu casas para qualquer um que se alistasse na guerra. Mas o governo deu para trás quando os soldados voltaram, e muitos deles tiveram que construir suas próprias casas ao lado de um grande morro atrás da estação de trem.

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Hoje, em troca de suas casas — algumas com dois ou três andares —, a cidade promete fornecer minúsculos apartamentos a cerca de 60 quilômetros do centro para alguns, apartamentos mais próximos do morro para outros e uma “assistência aluguel social”, o que significa que em troca de suas casas os moradores vão receber 400 reais por mês por um período indeterminado para reembolsar parcialmente os gastos com locação de apartamento. O valor de alguns aluguéis na área já passa de mil reais.

Durante os sete anos em que morei no Rio de Janeiro, muitas vezes olhei para o morro da Providência e fiquei imaginando como seria lá em cima. Até alguns anos atrás, você precisava de permissão de adolescentes armados com metralhadoras para entrar na comunidade. Uma UPP substituiu os adolescentes, mas criou outros problemas. No geral, o morro está mais seguro hoje em dia, então decidi que, para saber mais sobre o que estava acontecendo na Providência, eu deveria fazer o que sempre faço nesse tipo de situação: subir o morro e achar um bar.

Fazia uns 37 graus enquanto eu pedalava pelo trânsito caótico do Rio até a parte de trás do morro. Achei que haveria uma estrada ali, mas só encontrei vielas e escadarias, então tive que carregar minha bicicleta nas costas por uns 30 lances de escadões de concreto — para o divertimento de muita gente que me via passar — serpenteando por vielas estreitas de tijolos expostos até uma praça onde estão construindo a enorme estação do teleférico. Acorrentei minha bicicleta lá e subi mais uns 180 metros de escada até o topo do morro, onde fica uma pequena capela do século XIX cercada por casas com números pintados de spray nas paredes, marcadas para a destruição. Ali havia uma caixa d'água aparentemente quebrada e os vizinhos compartilhavam mangueiras presas a ela para conseguir encher suas máquinas de lavar roupa. Fui até um pequeno bar, uma casa de lajotas com um pátio de madeira que tinha um vista sensacional do centro do Rio e do porto, e pedi uma garrafa de Itaipava. Sentei numa mesa e comecei a beber minha cerveja enquanto crianças passavam soltando pipa e um grupo de adolescentes começava a preparar asinhas de frango numa churrasqueira. Puxei conversa com o dono do bar, um cara apelidado de “70”. Conversamos um pouco sobre esportes, depois perguntei se a casa deles também seria destruída.

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“A minha ainda não foi marcada”, ele disse. “Mas dizem que vão ser dois estágios. Não tenho certeza, mas ouvi dizer que minha casa está marcada para remoção no segundo estágio. Não sei se é verdade. O que eu sei é que até agora nada foi marcado, nem meu bar nem minha casa. E, se fossem, eu não ia gostar nem um pouco. Com certeza não. Mas as casas do meu irmão, da minha irmã e dos meus sobrinhos foram todas marcadas. A minha família toda mora aqui.”

“Essas reformas aqui em cima, elas ajudam os negócios do seu bar?”, perguntei. “Estou esperando por uma resposta concreta da prefeitura”, ele respondeu. “Ninguém diz nada. Eu gostaria de ficar. Principalmente se isso aqui virar uma das sete maravilhas do mundo, tipo o Corcovado, a Guanabara, a Barra da Tijuca ou Copacabana, lugares aonde os gringos vão. Mas em 2004 teve outro projeto chamado Favela Bairro que removeu muitas casas aqui em cima e não me ajudou em nada, porque levou meus fregueses também. Os negócios ficaram prejudicados. E se eles removerem essas casas, onde meus fregueses moram, vou ter que esperar os gringos aparecerem. Espero que eles venham todos os dias, porque eu dependo disso e, se eles despejarem meus fregueses, não vai ser bom para mim.”

A fofoca corre rápido nas favelas e, enquanto eu conversava e bebia com o 70, as pessoas ouviram falar que tinha um gringo perguntando sobre os despejos, aí apareceu um líder popular de um movimento pela habitação chamado Central dos Movimentos Populares. O nome dele era Marcelo. Eu o convidei para sentar e pedimos outra cerveja.

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“O que a prefeitura está oferecendo para as pessoas que vão perder suas casas?”, perguntei. O Marcelo disse: “A prefeitura diz que está negociando com os moradores, mas ela negocia assim: 'ou vocês aceitam isso ou aceitam aquilo'. Eles nunca perguntam o que os moradores querem. Ou você aceita um acordo que não vale quase nada ou aceita um apartamento minúsculo no meio do nada. A prefeitura nunca se perguntou se há uma alternativa a isso. Nunca se perguntou o que poderia estar fazendo diferente. Eles só colocam a faca no peito da pessoa e, por medo, ela acaba aceitando a negociação e eles derrubam a casa. Acho que resistência e luta organizadas podem ajudar as pessoas a encontrar alternativas para melhorar suas condições de vida no morro e continuar morando onde eles construíram suas vidas”.

Me despedi do 70 e do Marcelo e voltei para a praça onde parei minha bicicleta. Uma mulher caolha de meia idade estava parada na frente de uma casa. “Você é o gringo que está perguntando sobre os despejos? Vem aqui ver isso”, ela disse.

Ela me convidou para entrar no seu jardim da frente. A casa tinha uns três andares e parecia ter muitos quartos. “Está vendo isso? Eles vieram e pintaram um número na minha porta e eu pintei por cima. Não vou sair daqui”. Ela tinha pintado um coração em cima do número marcado pela prefeitura.

Do jardim dela, ficamos olhando para a nova estação de teleférico, ainda em construção. Ela apontou para a obra e disse: “Sabe como chamamos isso aqui? Desperdício de dinheiro. Quer saber por quê? Porque já temos um sistema de vans que desce e sobe o morro e é melhor do que um teleférico porque te deixa onde você quiser. O sistema de educação do Rio de Janeiro é fraudulento, e o sistema de saúde pública está na UTI. E eles gastam todo esse dinheiro para fazer isso aqui na comunidade. Eles podiam ter construído um hospital ou uma escola aqui em cima”.

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“Quando você acha que eles vão derrubar a sua casa?”, perguntei. “Nunca”, ela disse. “Vou continuar aqui lutando. Olha, não sou contra nada disso, mas por que eles não fazem uma coisa justa como construir primeiro os apartamentos e depois só trocar as chaves com a gente? Mas essa conversa nunca aconteceu”.

Emendei outra pergunta: “Eles te ofereceram um novo apartamento?”. “Eles estão falando de uns apartamentos minúsculos na Rua Juca de Freitas, mas a Juca de Freitas não fica nem perto daqui. É outro bairro, Santo Cristo. E no lugar onde eles estão dizendo que vão construir mais perto da comunidade, na rua Faria, na Coronel Costa e na Cardoso Maria, eles ainda não construíram nada. Então eu vou sair da minha casa para entrar numa aventura? Não. Vivi aqui minha vida inteira. Minha casa e minha vida estão aqui onde moro.”

Me despedi da mulher, desacorrentei minha bicicleta e achei uma rua de paralelepípedo que levava direto para a estação de trem onde eu tinha uma reunião marcada com uma representante da prefeitura. Começou a chuviscar. O guidão da minha bicicleta está frouxo, o freio traseiro está quebrado, e o da frente está quase totalmente gasto. Era uma descida escorregadia que eu provavelmente não teria tentado se não fosse pela cerveja. Mas eu tinha um encontro com alguém da prefeitura, então enquanto passava pelos dois quarteirões de terra de ninguém cheia de usuários de crack e trombadinhas no pé do morro, só pensava num lugar onde eu pudesse me arrumar, tomar um café e chupar uma bala. Quinze minutos depois eu estava num elevador bambo que levava até o escritório da prefeitura que fica em cima da estação de trem.

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O encontro foi com uma representante do governo da cidade que eu já sabia ser contra os despejos. Não vou dar o nome dela porque não quero que ela tenha problemas no trabalho. Comecei perguntando sobre os rumores de que o Eike Batista, o homem mais rico do Brasil, planejava construir um hotel de luxo e um cassino de 5 mil dólares a diária no topo do morro da Providência.

“Para falar a verdade, não sei se isso é uma ideia do Eike ou das pessoas que estão fazendo a proposta do projeto. O Eike é um fenômeno midiático e obviamente quer continuar no papel de homem mais rico do Brasil, mas também há várias histórias sobre ele que são só boatos. O que sei sobre o projeto atual para o topo do morro é que eles planejam construir casas de estilo colonial e que elas com certeza não são para os moradores atuais do morro. Então o resultado vai ser devastador. O censo mostra que há 4.832 famílias vivendo na Providência. E fala-se em despejar pelo menos um terço delas. E a razão oficial para os despejos é que as obras são para o bem da comunidade. Vendo as estimativas feitas pelo Comitê Popular do Porto, uma coalizão que trabalha na área, parece que o número de despejos será muito maior, sem mencionar todas as pessoas que terão que se mudar por causa do aumento no aluguel e nas taxas imobiliárias. Então acho que as leis precisam ser refeitas. Para justificar os despejos, eles dizem que essas pessoas vivem numa área de perigo de desabamento, mas pelos meus anos de trabalho aqui posso dizer que o risco não é natural, mas político. Existe todo tipo de lei que protege as pessoas de serem despejadas, mas no minuto em que você diz que elas vivem numa área de risco, elas são forçadas a sair e seu direito constitucional de moradia digna é violado. Essa onda de despejos na Providência está acontecendo sem nenhuma discussão sobre o impacto social, algo que o governo é legalmente obrigado a fazer. O projeto todo é tecnicamente ilegal até que acordos sejam feitos sobre o impacto social e ambiental. Eles tinham que ter feito tudo isso antes de começar a demolir o bairro, mas não fizeram nada ainda.”

Me despeço da representante, pego minha bicicleta e pedalo de volta para casa, imaginando por que uma cidade que já recebe três milhões de turistas estrangeiros por ano precisa de um evento como a Olimpíada.

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