Tiros, cheiro de pólvora e relax
Todas as fotos por Felipe Larozza/VICE.

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Tiros, cheiro de pólvora e relax

Fomos ao Clube de Tiro ADC, na zona sul de São Paulo, tentar descobrir se a "tiroterapia" realmente funciona.

Quando se entra no estande do Clube de Tiro ADC, na zona sul de São Paulo, a primeira coisa que se nota é um forte cheiro de pólvora queimada. O odor lembra o de bombinhas de festas juninas, mas é proveniente de equipamentos muito mais perigosos – quando manuseados por pessoas mal-intencionadas, ou sem conhecimento técnico para a coisa.

A VICE esteve no local para entender como funciona o mundo dos atiradores esportivos e amadores que frequentam o lugar para treinar — e também para relaxar.

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Os "brinquedos". Foto: Felipe Larozza/VICE

Segundo a presidente do ADC, Claudia Assunção de Paula, a associação surgiu em 2008. Mas antes, ela e o marido já frequentavam o local, administrado por um sargento. Aí o militar fechou o espaço e a administração atual pegou o ponto fechado e todo abandonado.

Resolveram fundar o próprio clube com um diferencial: seria "fechado", focando o tiro esportivo.

A "família", como gosta de se referir ao grupo, contava com 300 associados até o dia da entrevista concedida à VICE, na segunda quinzena de junho.

Climão de velho oeste. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Além dos associados, o ADC também mantém parcerias com o Sindicato dos Delegados da PF. O local é frequentado por agentes da Segurança Pública (policiais civis, militares, membros da Polícia e Receita Federal, Guardas Civis Metropolitanos, agentes penitenciários). "Eles não são membros, mas o espaço está livre para ser frequentado por eles também", explicou Claudia.

O que diferencia o ADC de outros grupos, segundo a presidente, é que para começar a frequentar o local é necessário fazer um cadastro previamente. Antes mesmo de ir conhecer o clube, a diretoria analisa o perfil do candidato que pleiteia frequentar o local (se ele responde algum inquérito policial), além de verificar se a pessoa tem condições financeiras para frequentar o clube. "Tiro é um esporte caro", afirmou.

Outra questão é verificar se o aspirante a associado pretende de fato praticar o tiro esportivo ou se quer somente vantagens para obter uma arma, por exemplo.

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Claudia disse que outros clubes trampam de forma diferente: a pessoa chega, mostra o RG, paga o aluguel de uma arma, as munições que serão usadas e atira. Já no ADC não é assim. "Qualquer clube de tiro que você for hoje, vai entrar e atirar (já na primeira visita). Aqui não atira, esta é a diferença, salvo para agentes de segurança."

Depois da aprovação, é só dar pipoco

Se o aspirante a sócio conseguir a aprovação da diretoria, ele tem à sua disposição armas como carabina 22, espingarda calibre 12, pistolas calibre 380, 40 e 45, revólveres calibre 38 e 357. Isso é oferecido ao associado que não adquire a própria arma de fogo. "Há muitos associados que não querem comprar uma arma. Usam as do clube, pois vem aqui para relaxar, para fazer o que chamamos de 'tiroterapia'. Mas há também os que começam a frequentar e decidem se tornar competidores, aí adquirem suas próprias armas."

Os associados que decidem adquirir uma arma precisam pedir uma autorização ao Exército, para que possam transportar seus trabucos de casa para o clube e do clube para casa. Vale ressaltar que as munições precisam ser transportadas separadamente. Se a pessoa quiser manter uma arma somente em casa, para defesa pessoal, o pedido para a emissão da posse é feito à Polícia Federal.

A VICE já publicou que, segundo a PF, foram expedidos 446 portes de arma entre 2002 e 2003. Após o lançamento do Estatuto do Desarmamento, em 2003, a expedição dos documentos caiu bruscamente. A lei foi sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para se ter uma ideia, em 2012, só 22 pessoas conseguiram autorização para circular com armas pelo estado de São Paulo.

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A diferença entre o porte e a posse de arma é que, no primeiro caso, a pessoa pode circular com a arma para todos os cantos. No segundo caso, ela pode manter o armamento em casa, ou transportá-lo para clubes de tiro, como já foi mencionado.

Os investimentos para praticar o esporte

Médicos, empresários e famosos (que não tem os nomes divulgados para garantir o momento de lazer deles) são o "grosso" dos associados do clube. A mensalidade é de R$ 100, fora as munições usadas durante as sessões.O preço das "balas" de pistola calibre 380, uma das mais em conta, sai por R$ 1,60 para associados e R$ 2,20 para não associados, fora o aluguel do espaço e da arma. Associados podem levar convidados ao local. Os não membros pagam R$ 50 pelo espaço, mais R$ 30 para cada arma usada e, claro, o carregamento dos trabucos. A munição mais cara é de um revolver conhecido como "O Juiz". Cada disparo dado com esta arma sai pela bagatela de R$ 6,50. "Esta revólver foi lançado nos EUA para xerifes e juízes. Para defesa é melhor arma disponível hoje em dia, é como se fosse uma calibre 12 de bolso", explicou a presidente.

Foto: Felipe Larozza/ VICE

Praticantes da "tiroterapia"

Humberto Braga trabalha com segurança pessoal. Frequenta o clube há nove anos. Por ser ex-policial militar, já tinha intimidade com armas antes de ingressar na "família" de atiradores. "Frequentar o clube, para mim, é prazeroso, além de ser bom para eu treinar tiro também. Isso me deixa interagido com o sistema e contribui para minha segurança". Braga conta com o porte e a posse de arma de fogo.

Afirmou que o clube o ajuda a manter a mira e a qualidade do serviço que presta.

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O Juiz. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Começou atirando com pistola 380 e revólver calibre 38. A partir do momento em que frequentar o clube virou rotina, conheceu novas armas e, por isso, atualmente treina usando o revólver "o Juiz". Esta arma custa entre R$ 3,5 mil e R$ 3,8 mil.

Atirar para ele não é novidade, como afirmou à VICE. No entanto, relatou que, quando dá uns pipocos, relaxa. "Chego estressado por causa das atribuições de meu trabalho (que é feito para garantir a integridade de seus clientes). Por isso, fico muito tenso. Vindo para o clube, descarrego com meu revólver tudo o que trago de fora, da rua. É quase que praticamente um êxtase."

Do hospital para o estande de tiro

O clínico geral Luiz, que pediu para ter somente o primeiro nome publicado por questões de segurança, pratica tiro há cerca de um ano. Sempre teve curiosidade em atirar, mas disse que o preconceito contra as armas no Brasil e as barreiras burocráticas para adquirir uma pistola, revólver, carabina ou espingarda o deixavam reticente para ir atrás de um trabuco. "Quando eu descobri que podia saciar esta curiosidade sobre este assunto, que também tem uma aura de mistificação optei em vir até o clube para me informar, para aprender sobre o assunto e aprender a atirar."

Foto: Felipe Larozza/ VICE

Conheceu o ADC por causa de um amigo, policial, que já frequentava o local. A primeira arma que usou foi uma pistola calibre 380. "Antes de entrar no estande [de tiro] já estava com a frequência cardíaca aumentada, suando. Parecia que ia andar de montanha russa pela primeira vez. A primeira vez que atirei nem lembro direito, foi tanta adrenalina. Depois que [o atirador] ouve o primeiro som do disparo, o coração também dispara."

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Quando começou a frequentar o clube, usava armas de amigos. A partir do momento em que o local se tornou ponto semanal de visitas, decidiu comprar sua primeira pistola, uma calibre 380, da marca CZ, produzida na República Tcheca.

No caso do médico, ele requereu autorização do exército, para poder transportar suas armas de casa para o clube e vice-versa. Demorou cerca de três meses até ele estar com sua primeira arma de fogo, legalizada, em mãos.

Para isso fez teste psicológico, teste de aptidão prática de tiro, uma prova escrita ligada às questões de legislação. Depois da primeira requisição, afirmou que fica "menos difícil" registrar outras armas no nome do atirador. Atualmente é proprietário de oito armas curtas (revólveres e pistolas).

Compartilhando conhecimento com os chegados

Luiz admitiu que a namorada atira melhor do que ele e, invariavelmente, observa que a maioria das moças que acompanham seus companheiros são melhores do que eles no gatilho. "Se você mantém uma arma em casa, as pessoas que frequentam o local precisam ter uma noção de como usar. Não pode ser um segredo. É importante envolver a família e pessoas próximas nisso também."

Foto: Felipe Larozza/ VICE

Por ter arma em casa, o médico afirmou se sentir mais seguro. Narrou um caso em que a residência do vizinho foi invadida. Quando percebeu isso, pegou uma de suas armas. A polícia chegou antes que os criminosos tentassem pular para o imóvel do clínico geral. "Mas eu sabia que conseguiria, de qualquer maneira, fazer a defesa da minha integridade e da minha residência."

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Acrescentou ainda que "as pessoas precisam perder o medo de tudo, de altura, de arma, de bicho. Se a pessoa tem medo é importante que ela vá conhecer, se informar sobre o assunto antes de formular uma crítica. Depois disso, caso não mude de ideia, pelo menos terá embasamento para tecer as críticas."

Instruções para atirar

Depois de conversar com a presidência e os frequentadores do clube, fui juntamente com o fotógrafo Felipe Larozza a uma sala. Nela, o instrutor de tiro Sebastião Silva Júnior nos explicou a postura básica para se segurar revólver, pistola e espingarda.

A primeira arma foi um revólver calibre 357, sem munição. A segurança para se manusear os armamentos é sempre reforçada pelos instrutores e frequentadores do local. "A primeira coisa a se fazer quando se pega uma arma é verificar se ela está com munição", falou Júnior.

Primeiras aulas. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Com muita paciência e didática, mostrou que a última coisa a se fazer com uma arma é colocar o dedo no gatilho. Antes disso, o atirador deve (em meu caso que sou destro) segurar a arma com a mão direita e, com os dedos mindinho, anelar e do meio da mão esquerda cobrir a outra. Os dedões devem ficar cruzados.Após isso, a falange do dedo indicador da mão do disparo é colocada no gatilho. Com todo este procedimento feito, é só atirar. Os rudimentos para atirar com pistola são semelhantes, com a diferença de que não é necessário cruzar os dedões de ambas as mãos.

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A espingarda, apesar de maior, conta com uma postura menos treta. Basta apoiar a arma no ombro e pender o peso do corpo para frente, evitando que a força do disparo te mande para trás. "Agora vamos para o estante", disse Júnior, provocando em mim uma típica reação de ansiedade: precisava dar uma mijada antes.

A pólvora queimada adocica a goela

Entramos no estande de tiros e o local estava impregnado com cheiro de pólvora. A princípio o odor incomoda um pouco, mas com o tempo, não sei por que, acaba adocicando a goela. No box reservado para a VICE havia pistolas calibre 380, 40, 45, um revólver Magnum calibre 44, com cano de oito polegadas, além de uma espingarda calibre dose (a famosa "punheteira").

Júnior ofereceu as armas de acordo com o "poder de parada" de cada uma. "O poder de parada é a força com que o projétil sai da arma e atinge o alvo", explicou o instrutor. Em outras palavras, o termo designa o quanto o alvo é estragado pelo pipoco.

Comecei com uma pistola calibre 380. Com a arma municiada e destravada, Júnior me deu um "OK" para começar. "Tente acertar o meio do alvo." Antes de apertar o gatilho pela primeira vez, senti as mãos trêmulas e suadas. "Boom", dei o primeiro tiro. Houve uma reação muito louca em meu corpo e, não sei como, fiquei mais concentrado. Atirei duas, três, quatro vezes até perder a conta e a munição acabar. Confesso que fui bem com esta primeira arma.

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Foto: Felipe Larozza/ VICE

Depois o instrutor jogou em minha mão uma pistola calibre 40, a mesma usada pela Polícia Militar em São Paulo. O tranco desta arma é maior, me deixando preparado para o que ainda viria. O resultado da minha mira foi semelhante ao da primeira pistola testada.

A terceira pistola foi uma 45. Com essa me dei mal. O tranco dela é bem maior e errei bastante o alvo.

"Pista fria", alguém gritou. Esta frase é usada para que os atiradores parem de praticar, pois algum associado precisa ir à pista de tiro para realizar reparos, como arrumar alvos.

Vale ressaltar que é obrigatório usar proteção para olhos, com óculos, e para os ouvidos com tampões – mesmo com eles, o som da sala de tiros é bem alto.

Atirando com os "canhões"

"Pista quente", foi gritado, fazendo com que todos os presentes recolocassem as proteções nos ouvidos.

Júnior me entregou a Magnum 44 e me adiantou: "o tranco desta daqui é bem forte".

De fato, dei um tiro e senti minha mão doer. Atirei a segunda vez e já estava satisfeito. Parece que o Júnior havia lido meus pensamentos, pois, me ofereceu só duas munições para esta arma.

O gran finale ficou por conta da espingarda calibre 12. Ajeitei a monstrona em meu ombro e me senti o próprio exterminador do futuro quando atirei, punhetei e vi o estrago feito no alvo. Fiz isso seis vezes.

Após a sessão, me senti muito relaxado e convencido de que a tiroterapia de fato funciona.

***ARMAS USADAS PELA VICE***

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Pistola calibre 380

Segundo o instrutor de tiro Júnior, esta arma conta com um "calibre funcional". É uma pistola bastante adquirida entre pessoas que não são agentes de segurança.

Pistola calibre 40

Esta arma é muito usada por praticantes de tiro esportivo, além das polícias Civil e Militar.

Pistola calibre 45

Conta com mais de cem anos de história e foi a queridinha dos oficiais militares norte-americanos até a década de 1980. "Os atiradores adoram este calibre, é um clássico", afirmou Júnior.

Revólver Magnum 44 de oito polegadas

Este trabucão ficou famoso após ser usado pelo ator Clint Eastwood no filme Dirty Harry, em 1971. Segundo o instrutor de tiro do ADC, esta é o terceiro revólver mais fodão do mundo.

Espingarda calibre 12

É intimidadora só de olhar. Júnior explicou que a arma é muito usada por caçadores, atiradores esportivos e policiais. É o armamento usado no "tiro ao prato", modalidade inserida nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 1896.

Um rolê família e também hobby

A presidente do clube acrescentou que muitas famílias frequentam o ADC aos fins de semana. Crianças, com autorização judicial, também podem usar o local. Foram duas até o momento que fizeram isso, para competir, mas já são adultos. Atualmente nenhum pivete usa a estrutura do clube.

O clínico geral Luiz finalizou à VICE ser partidário de que todo ser humano precisa ter um hobby, para extravasar o estresse. "Pode ser (o hobby) desde gostar de brincar de boneca até atirar. Essas coisas desviam o foco nas questões cotidianas para algo mais lúdico. A tiroterapia é isso, a pessoa deixa os problemas na rua e, além disso, por causa do acesso a este novo conhecimento, o cidadão fica mais consciência [sobre as armas de fogo]."

Depois disso, fui embora com a garganta adocicada de tanto inalar pólvora, mas relaxadão.

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