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Salvando o Sudão do Sul

A Guerra Pantanosa

Lembramos a história do general Charles Gordon. O britânico lutou contra a escravidão no Sudão e terminou decapitado numa árvore para que os locais lhe jogassem pedras e lixo na cara.

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Samuel White Baker, explorador, caçador e governador de Equatória. Foto: Maull & Co/Hulton Archive/Getty Images

Apesar das armadilhas coloniais e das melhores intenções da comunidade internacional, desde os primórdios da história, a África Central esteve mergulhada no caos.

O nome “Sudão” vem do árabe Bilād as-Sūdān (Terra dos Negros). Os negros africanos eram uma fonte de mão de obra e dinheiro para os árabes do norte. Eles eram sequestrados, comercializados e escravizados, tornando-se trabalhadores braçais, funcionários domésticos ou guardas pessoais. Embora a escravidão não seja exclusividade do continente, houve um verdadeiro esvaziamento da África Central quando os europeus aceleraram o processo de tráfico humano. No Sudão, a escravidão é tão endêmica que, mesmo nos anos 1990, ONGs e grupos religiosos ainda pagavam pela libertação de escravos no norte que haviam sido sequestrados no sul, prática que ainda existe.

Grande parte da atividade colonial da região se concentrava no norte árabe, começando pelo Egito e, então, se estendendo gradualmente até o Sudão.

A exploração começou formalmente em 1856, quando Al Zubayr Rahma Mansur, um árabe do norte do Sudão, estabeleceu uma rota comercial para transportar marfim e escravos da região que mais tarde se chamaria Equatória. Conhecido como “o Paxá Negro”, o árabe dominava a região pagando tributos em marfim e escravos ao Quedivato do Egito, um Estado vassalo do Império Otomano. Mansur tinha preferência por escravos do sul, já que dinkas, nuers e shilluks, altos e esguios, eram imponentes e de porte guerreiro.

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Em março de 1861, o britânico Samuel White Baker, explorador e ávido caçador, partiu rumo à África para encontrar-se com os exploradores John Augustus Grant e John Hanning Speke, em sua busca da fonte do Nilo. Em dezembro de 1862, Baker seguiu o Nilo Branco para, dois meses depois, juntar-se a Speke e Grant, que ali haviam chegado exaustos e doentes após 29 meses de exploração.

Na última estação comercial navegável da parte norte do Nilo Branco – um poço de malária chamado Gondokoro, perto da atual cidade de Juba – os dois exploradores deram a Baker informações suficientes para que ele encontrasse o que depois ficaria conhecido como Lago Alberto. Baker conseguiu, por fim, estabelecer a relação do Lago Alberto com a fonte do Nilo. Por esse feito, Baker foi nomeado cavaleiro e reconhecido como grande explorador, mesmo sendo a sua descoberta historicamente irrelevante.

Embora o Império Britânico tenha abolido a escravatura em 1833, a ordem demorou décadas para ser cumprida no Egito. Em 1869, o quediva do Egito, educado na Europa, incumbiu Baker de liderar uma expedição militar à Equatória para eliminar o comércio de escravos. Baker foi nomeado oficial do exército otomano e a ele foi conferido o comando de um grupo de 1.700 homens, muitos deles ex-condenados. Em sua chegada ao que hoje é o Sudão do Sul, descobriu que os traficantes de escravos haviam deixado grande parte da região despovoada.

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Quando Baker chegou com sua ordem, os poucos locais que encontrou se mostraram surpreendidos pelo fato de a escravidão ter sido abolida tão pouco tempo depois de o governo egípcio ter contratado o Paxá Negro para controlar a região. Baker conta em suas memórias que “era óbvio para todos os observadores que um ataque aos estabelecimentos de tráfico e caça de escravos do Egito, a cargo de um estrangeiro – um inglês – seria como uma incursão em um ninho de vespas, que todo esforço para suprimir o tráfico de negros há muito estabelecido seria encarado com oposição determinada, e o comandante de tal expedição seria visto com ódio, malícia e antipatia”.

Por fim, poderia se dizer que o maior feito de Baker foi em prol do inimigo. Seu sucesso em desmatar 80 quilômetros de vegetação emaranhada e pântanos e conseguir seis barcos a vapor para viajar de Juba ao Cairo permitiu que traficantes de escravos operassem ainda mais facilmente em Equatória.

Charles George Gordon, outro governante de Equatória, assassinado durante uma revolta. Time Life Pictures/Mansell/Getty Images

Embora tenha sido nomeado governador da região por quatro anos, Baker não era o militar que o cargo requeria. Sua opinião em relação à escravidão também havia mudado. “Os escravos eram geralmente bem tratados por seus donos. A brutalidade estava em sua captura, na falta de lei e nos assassinatos por parte dos encarregados. Os donos compravam escravos, lhes ensinavam suas tarefas, os alimentavam e vestiam – eles eram felizes. Por que deveria o quediva do Egito proibir o tráfico e, com isso, perturbar todos os lares deste território?”

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Baker decidiu que o fim do comércio de escravos levaria a economia à falência e colocaria as autoridades locais contra ele.

Ao final deste período, Baker voltou ao Cairo para ceder seu cargo ao famoso coronel Charles George Gordon, veterano da Rebelião Taiping, na China, e devoto evangelizador cristão. Em 1877, Gordon foi nomeado governador geral. Como militar, obteve mais êxito que Baker na repressão ao comércio de escravos. De acordo com Baker, Gordon “extinguiu as ilusões que haviam sido alimentadas pelas autoridades do Sudão”.

Gordon estabeleceu um grande número de postos de Malakal a Uganda, e sua repressão contra a escravidão e caça furtiva o colocaram em conflito com sua contraparte egípcia, o governador de Cartum. Gordon renunciou e só retornou quando foi acordada sua nomeação como governador geral de todo o Sudão.

Outro obstáculo que Gordon enfrentou durante seu mandato como governador de Equatória foi uma revolta liderada por Muhammad Ahmad. Autodenominado “al Mahdi” (O Escolhido), Ahmad se proclamava redentor da fé islâmica. Já desconfiados da dominação estrangeira, os locais logo aderiram ao movimento islâmico fundamentalista de Ahmad, que encontrou maior apoio entre os nuers e outras tribos do sul.

Enquanto isso, o Paxá Negro, que há muito aspirava se tornar governador geral, subornou líderes locais para desestabilizar o governo de Gordon, ajudando assim a insuflar o caos que resultaria no assassinato do governador.

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Em 1884, Gordon propôs transferir seu mandato do Sudão a Mansur, caso concordasse em lutar contra as forças de Mahdi, que, ironicamente, também queriam reinstaurar a escravidão. Em janeiro de 1885, Gordon e seu exército foram massacrados em Cartum pelos “Ansar”, os seguidores de Mahdi, armados de lanças e espadas. Segundo conta a história, a cabeça de Gordon foi posta em uma árvore para que locais lhe atirassem pedras e lixo.

Foi assim que forças locais triunfaram sobre os estrangeiros, bem intencionados e movidos pela moral, e a escravidão voltou ao Sudão.

Durante a década de 1890, o controle da região voltou para os britânicos, que dividiram o governo do Sudão em dois: Sudão e Sudão Austral. Para proteger as tribos fragmentadas de traficantes de escravos e exploradores, a Grã-Bretanha aprovou uma lei em 1920 (Closed District Ordinance Act) que limitava o tráfego de pessoas entre o norte e o sul.

Na sequência da Segunda Guerra Mundial ocorreu a Conferência de Juba, como fórum de discussão sobre a renúncia colonial. A Grã-Bretanha estava a priori inclinada a passar o controle do sul do Sudão a Uganda, país cujas tribos nilóticas e similaridades culturais poderiam salvar o território da depredação por parte do norte árabe. Afinal, o sul era composto de tribos nilóticas cristãs de língua inglesa, enquanto o norte consistia em grupos islâmicos de língua árabe que ainda viam seus vizinhos negros como escravos a serem comercializados.

Em fevereiro de 1953, a Grã-Bretanha assinou um acordo que resultou na cessão pós-guerra de mais uma de suas colônias. A Grã-Bretanha decidiu, como parte de um pacote de medidas, juntar o sul e o norte. A decisão foi tomada em parte para apaziguar o mundo árabe, que ganhava influência devido à descoberta de petróleo no Oriente Médio.

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Tradução: Flavio Taam