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A Boitempo Editorial lançou uma coleção de livros infantis para o horror da tradicional família brasileira

Além dos títulos 'A Ditadura É Assim' e 'A Democracia Pode Ser Assim', já estão previstos mais dois lançamentos para 2016 sobre classes sociais e questões de gênero.

O sofrido ano de 2015 chega ao fim, e com ele vem o Natal – a tradicional festa em família que reúne todos os espectros políticos em torno de um peru assado. Se você quiser uma opção para além do pavê soviético e de jogar frisante na cara do tio machista que insiste em dizer que até o bloqueio do WhatsApp é culpa do Luladrão, a Boitatá, braço infantil da Boitempo (a editora que publica as obras completas de Marx no Brasil), te oferece uma alternativa inteligente: presenteie a criançada com os recém-lançados A Ditadura É Assim e A Democracia Pode Ser Assim.

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Os livrinhos, belissimamente ilustrados, são uma nova versão de uma série criada na Espanha no fim dos anos 70, após a queda de Franco, chamada "Livros Para o Amanhã". Indicados para crianças a partir dos oito anos de idade, eles trazem uma visão direta e sem rodeios da vida sob governos autoritários e da construção da democracia. Pode parecer estranho, mas essas obras, com quase 40 anos de idade, seguem atualíssimos num contexto brasileiro que inclui a criação de uma Frente Nacionalista e capítulos emocionantes de uma eterna crise política.

Amparados com novos desenhos e textos de importantes pensadores brasileiros, são os primeiros títulos que a Boitatá lança. Noano que vem, ainda dá para esperar mais dois títulos – provavelmente mais polêmicos – da coleção: O Que São Classes Sociais e As Mulheres e os Homens. Conversamos com Thaisa Burani, editora da coleção e do selo, sobre censura em livros infantis, a preocupação em se criar conteúdo para crianças e o futuro do mercado sem o Plano Nacional de Bibliotecas nas Escolas.

VICE: Como foi abrir o selo Boitatá?
Thaisa Burani: O Boitatá era um sonho antigo da nossa diretora editorial, a Ivana Jinkings. A gente não tinha estrutura. Fui contratada pela Boitempo há dois anos, e essa ideia do selo infantil já existia. Foi uma coisa que fomos maturando com muito cuidado, procurando uma linha editorial, escolhendo títulos. Depois de um ano e meio, a decisão chegou da maneira mais óbvia: precisamos de uma Boitempo para crianças. As mesmas coisas que publicamos para os adultos, mas explicando para crianças. Ou seja, pensamento crítico, ciências políticas, cidadania, direitos humanos. Definimos isso no primeiro semestre deste ano. Fizemos um processo de pesquisa, procurando originais tanto nacionais quanto estrangeiros. Tem outras coisas já no forno, essa coleção que começamos foi quase uma coincidência. Recebemos uma indicação da Media Vaca, uma editora espanhola, falando pra gente conferir o catálogo deles, que faziam livros políticos para crianças também. Entramos em contato, o site tinha muita coisa legal. Eles tinham encontrado esses livros em sebos, era de uma editora que não existe mais, chamada La Gaya Ciencia. Ficaram chocados, pensando: "Caramba, se a gente lançasse isso hoje, não pareceria que esse texto tem 40 anos". Esses temas ainda estão em voga, geram muitas dúvidas, polêmicas. As únicas coisas novas são as ilustrações. Lemos essas novas edições, nos encantamos e concordamos com a atualidade do texto – e compramos os direitos para lançar aqui.

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Existe algum desafio grande para fazer livros voltados ao público infantil? Tem um cuidado especial que vocês precisam ter?
Com certeza. Uma coisa que a gente discutiu muito é aquilo: você precisa simplificar a linguagem, mas sem imbecilizar. Como você introduz e simplifica um assunto sem deixá-lo tosco, sem prejudicar o conteúdo, subestimar a criança? E também há o desafio político: não queremos pregar dogmas, cartilhas, para as crianças. Você não quer canonizar ninguém, a nossa maior intenção é desenvolver um material para a criança ler e pensar por si própria: "Concordo ou não concordo, entendi ou não entendi". [É para ela] querer ler mais, ir atrás. Queremos despertar o interesse em política, ciências sociais, feminismo, questão de gênero, questão social – mas sem falar o que é certo ou errado. Uma criança de 11, 12 anos já é um leitor crítico. A gente leu e releu muito esses livrinhos para termos certeza de que eles não eram dogmáticos, redutores demais, levantando bandeiras. Queríamos um equilíbrio.

Vocês editaram muito o texto para se encaixar no contexto brasileiro?
A gente não editou. Ficamos com essa dúvida, entre pesar na edição ou deixar do jeito que tava. Tem até uma passagem no A Democracia Pode Ser Assim que não faz muito sentido para o leitor brasileiro, que fala que "alguns partidos podem querer criar áreas especiais para caça e pesca", mas decidimos não alterar. No fim do livro, a gente colocou textos de apoio de filósofos brasileiros – o da democracia é do Leandro Konder, e o sobre a ditadura é do Ruy Braga. Toda edição vai ter um texto de um autor contemporâneo brasileiro tentando fechar o livro e abordar coisas que não foram abordadas antes. Não queríamos mexer no texto porque quem escreveu foi uma equipe de educadores há quarenta anos. Uma parte está viva e outra, não – não teríamos como aprovar nenhuma alteração com os autores. A Boitempo tem essa prática para tudo: se a gente precisar adaptar algo para o público brasileiro, consultamos os autores– e decidimos levar isso para o infantil.

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No A Ditadura É Assim, vocês pediram novas ilustrações, certo?
Isso. Pedimos para o Mikel: "Adoramos a guarda do livro, tem ditadores de esquerda e de direita lá, mostrando que nenhuma ditadura é legal – mas sentimos falta dos ditadores brasileiros". Discutimos um pouco, e vieram esses nomes, o Geisel e o Médici; chegamos a cogitar o Costa e Silva, mas ele preferiu desenhar o Médici. Foi a única alteração, além dos acréscimos – nossos livros [são] de 52 páginas (o original tem 48) por causa desses textos novos.

A partir de que idade esses livros são recomendados?
Nós achamos que é a partir de oito anos de idade, talvez com menos ela [criança] não tenha repertório para entender. Mas é claro que uma criança de sete, seis anos, mais madura, lendo acompanhada dos pais ou de um professor, acho que até rola. Se você for generalizar, é entre oito e dez anos. Tem até uma referência à gestão pública; então, a criança tem de ter autonomia já, poder procurar no dicionário. Antes de oito anos, isso é muito difícil, tirando casos especiais.

Quando vocês divulgaram os títulos que iam lançar, muita gente comentou muita coisa negativa no Facebook de vocês, usando expressões como "marxismo cultural". Vocês esperavam essa repercussão?

A gente esperava já. Isso faz parte da rotina da Boitempo. Toda semana tem o caso de alguém que vai lá, xinga, fala que a gente é comunista, doutrinador, blá-blá-blá. E a gente sabia que, mexendo com criança, a coisa ia ficar muito mais sensível e que a principal crítica era de que a gente estava doutrinando. Esse pessoal do "Escola Sem Partido" ainda não descobriu a gente; o dia [em] que descobrir, vai ser um caos, vão cair matando. Teve muito xingamento, gente compartilhando e falando muita baboseira: "Esses malucos precisam ser parados, precisamos fechar essa editora". Já estamos escaldados com isso e sabíamos que mexer com criança é mexer com um vespeiro – e é uma preocupação nossa. É claro que explicar marxismo para um adulto é diferente: você vai pras cabeças, com argumentação, debate. Para uma criança, é mais delicado mesmo, não pode vir falando o que é certo e errado. A criança está em formação, está construindo o imaginário político dela. A gente quis começar com essa coleção para firmar a marca("Sim, é uma Boitempo para as crianças"), mas também vamos mexer com literatura, com coisas que não sejam apenas paradidáticas. Queremos transmitir valores de direitos humanos, de cidadania, de uma forma mais fenomenológica, de uma história em que os personagens façam gestos nesse sentido positivo – queremos explorar esse lado do imaginário, que é mais tranquilo, inclusive.

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Normalmente, quem compra livro infantil é a família. Vocês pensaram em estratégias sobre como atingir esses pais?
Sim, desde que abrimos o selo. A gente sabia que tinha gente que ia odiar o selo, porque ele não é neutro, ele não é em cima do muro, ele não é fofo. Vai ter gente que vai adorar e que vai odiar. E quem são as pessoas que vão adorar? Nossos leitores que têm filhos; então, fechamos num público-alvo muito específico, um nicho de pais e educadores; pensamos num perfil de pais, educadores e escola mesmo que iriam gostar – nosso marketing é por aí. Vamos levar para as escolas: temos muitos leitores com filhos, sobrinhos, professores. Contratamos um divulgador escolar, que era algo que já queríamos para a Boitempo, mas procuramos um profissional que já tivesse experiência em trabalhar com o público infantil.

Lembrei de uma série de livros infantis sobre racismo e questões de gênero que seriam distribuídos nas escolas públicas de Guarulhos e foram vetados por uma comissão, neste ano, por propagarem "ideologia de gênero". Volta e meia tem esses casos, os livros infantis são mais passíveis de censura.
São mesmo.

Fiquei feliz com o lançamento da Boitempo, pois não vai ter o risco de censura. Como você vê isso no mercado editorial?
É complicado, porque, quando você pensa numa compra governamental, de alguma prefeitura, esse risco é muito mais palpável. Se um vereador ou prefeito vê que a compra "pegou mal", é muito fácil eles cancelarem. A gente tem um imaginário de que a criança é um ser puro, é um cordeiro, uma coisinha quase sagrada; tem essa ideia de que eles são inocentes, não sabem se defender, que são muito influenciáveis, e vai vir uma editora publicando um livro com uma ideologia muito forte e vai doutriná-los. Isso é uma grande bobagem, não é uma leitura que vai determinar a sua vida . É só pensar no seu caso pessoal, dos livros que você leu na sua infância – claro que você consegue selecionar aqueles que te marcaram, que foram definitivos. Mas não é porque, um dia, você leu alguma coisa contrária do que você acredita hojeque mudou completamente a sua cabeça. A gente não pode subestimar a capacidade da criança de discordar, de ser chata. Criança não é um ser inocente, não existe essa questão da corrupção da bondade da criança. A gente não acredita, mas sabemos que existe uma reação conservadora nesse sentido, de "não encoste nas minhas crianças". Esses programas de governo estão mais sujeitos a esse tipo de coisa: sempre que o público "chiar", volta-se atrás. É o mesmo com o "kit gay". Como a gente está indo para o mercado, é diferente. Livre mercado: se não gostou, não compra. "Ah, a escola do meu filho adotou esses livros" – tira da escola e bota em outra. A gente vai se defender nesse sentido: vamos para o mercado, para escolas particulares. A escola que comprar vai ter de lidar com essa briga de algum pai que queira tirar o livro – vamos ter de ter uma parceria com educadores nesse sentido.

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O lançamento dos volumes 1 e 2, sobre democracia e ditadura, foi pensado pelo momento político do país?
A gente achou que tinha a ver: o ano todo, fomos marcados por essas questões. Mas teve umas coincidências absurdas: o dia [em] que a gente fez o post com os livros recém-chegados da gráfica foi o dia em que o Cunha entrou com pedido de impeachment [risos]. Parecia que a gente tinha combinado. Até brinquei com a divulgação: se a gente tivesse se programado para isso, tinha dado errado. Lógico que a gente já tinha percebido que o clima desse ano estaria assim, mas teve uma ajudinha extra do presidente da Câmara.

Os livros saíram em 1977, porém, como você disse, os temas são atuais. Por que é importante continuar publicando livros sobre esses assuntos?
Resolvemos começar com essa coleção porque achamos que esse amanhã desses livros, que eram sobre um "amanhã" em 77, ainda não chegou. A gente ainda vive numa democracia muito frágil, muito ameaçada. Não estamos livres de retrocessos – não só no Brasil. Na América Latina toda, você tem uma direita reacionária muito forte, uma direita radical muito forte. Já começa um papo na rua, no Facebook, do tipo "Eu me arrependo de ter saído na passeata do Diretas Já". Por incrível que pareça, ainda é um assunto do que a gente não escapa: existe o risco real de um retrocesso trágico.

Você acha que, no mercado editorial infantil, existe uma higienização? Acredita que as pessoas evitam falar de certas coisas para não causar conflitos?
Acho que sim, a gente criou o selo pensando nisso. Como não tem muito isso no mercado, a gente ficava pensando: "Não pode levantar muita bandeira, tem de ser mais careta". E, lá pelas tantas, falamos "Não, pelo contrário – temos de aproveitar que não tem e entrar nessa seara". Pegar justamente por aí. Tenho uma hipótese que eu acho que, de certa maneira, os programas de governo, como o PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola), apesar de ser inestimável para a educação brasileira, [apesar de serem] programas muito legais, acho que eles deram uma pasteurizada no mercado. Foi um efeito colateral. As editoras querem entrar no programa, e o programa dá preferência a coisas mais neutras mesmo, lidando com temáticas mais comuns. As editoras como um todo deram as costas para as livrarias, para as escolas, e foram o tempo todo privilegiando serem contempladas pelo PNBE: tem editora que se especializou nisso, nos programas estaduais e federais. Quando teve a suspensão do PNBE neste ano, teve editora que quebrou, teve editora que teve de repensar a linha editorial. Teve muita gente no mercado falando que "é uma pena que o PNBE está suspenso, mas uma pena para nós, profissionais do livro, que nos acomodamos tanto em nos concentrar em um programa, e não ter desenvolvido um mercado". Acho que há uma tendência das editoras de se olhar para o mercado, para o consumidor, descobrir quem é o pai que compra o livro – e a gente já nasceu com essa premissa.

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