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Identidade

HIV e a cultura do medo: parem de culpar as bichas

Em uma sociedade LGBTfóbica, nada mais fácil do que culpar as próprias bichas e travestis pelas suas mortes.
Todas as ilustrações são cortesia de Topher McCulloch.

Em pleno mês do orgulho LGBTIA+, a Folha de S.Paulo noticiou que "1 a cada 4 homens que transam com outros homens têm HIV" nesta matéria cafona aqui, toda trabalhada no catastrofismo. O dado demonstra um novo aumento de prevalência de HIV na nossa comunidade. Isso obviamente precisa ser discutido, noticiado, problematizado – com muita ética e responsa.

Mas quem pouco sabe sobre HIV/Aids acaba caindo em uma armadilha (bem anti-ética e irresponsável) muito utilizada pela imprensa: a cilada do pânico moral e da culpa individual.

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A matéria da Folha traz uma narrativa simplista, que cai como uma bomba de vergonha no mês do orgulho: a narrativa "bareback mountain". O retrato de uma juventude gay irresponsável, promíscua, sem medo de contrair HIV e morrer. Medopânicoterror. Sodoma e Gomorra. Meldels, a segunda onda da Aids. 1990 feelings.

Mas, vejam bem: não é assim tão óbvio.

Toda vez que se fala de HIV/Aids no mainstream (quando se fala) é assim: culpa-se (e pune-se) quase que exclusivamente a própria vítima e suas práticas sexuais, e não a precariedade (inclusive no acesso à saúde) trazida a ela pela LGBTfobia da sociedade – que, aliás, ganha força com matérias como essa. Selecionei alguns replies fofos no Twitter do jornal, diretamente das sarjetas da Internet: "E ainda falam que a proibição de doar sangue é preconceito", "é só parar de dar o cu", "isso é resultado do sexo contrário à natureza", entre outros bostejos (que aumentam a nossa vulnerabilidade).

Tem outros que parecem mais inofesivos, mas você cheira com atenção e sente as notas de chorume: "Vamos usar camisinha pessoal, depois não adianta reclamar", "A galera está se descuidando muito, perdeu o medo…"

E aí eu pergunto: será que deveria ser sobre medo? Sobre culpa? Essa mania que a imprensa e a sociedade tem de focar na ação individual isenta quem de responsabilidade?

Quando o Gerson Pereira, do Ministério da Saúde, diz, sobre os homens gays, que "se acham super-homens" – o que isso revela?

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Será que dá pra jogar toda a culpa na "promiscuidade", enquanto o governo congelou os gastos na área da saúde por 20 anos?

Será que o problema é uma geração de gays que "não têm medo da morte" ou o desmonte do SUS?

Estamos falando de não usar camisinha como escolha individual irresponsável ou como resultado do fechamento de, só na cidade de São Paulo, 13 ONGs que faziam campanha de prevenção, por falta de financiamento estatal?

Ilustração: Topher McCulloch

Como falar de sexualidade e prevenção para a população LGBTIA+ em um país que coíbe sistematicamente a discussão sobre homossexualidade e transgeneridade nas escolas?

Ainda que a matéria tenha pincelado essas questões políticas, a tônica ainda é moralista demais pra passar batida. Por isso, hoje eu volto aqui na VICE para alinhar quatro coisinhas que você precisa saber sobre HIV/Aids (se ainda não souber) para, aí sim, reler a matéria sem fazer a Regina Duarte: "eu tenho medo".

Porque a cultura do medo parece ajudar, mas só atrapalha: ela responsabiliza o indivíduo dentro de um juízo moralista, aumenta o estigma LGBTfóbico e aidsfóbico, tira a responsabilidade das instituições de saúde e aumenta a EPIDEMIA DE DESINFORMAÇÃO.

Pra fazer esse texto, eu (que sou negativo, portanto não poderia fazer sozinho), assisti a um live do coletivo Loka de Efavirenz, um grupo bapho da USP (Universidade de São Paulo) de pessoas pretas e LGBTIA+ vivendo com HIV, além de ter conversado bastante com o Carlos Henrique de Oliveira (que estava no live) e com o Carué Contreiras, dois amigos positHIVos, ativistas e que trabalham na área da saúde. Carué é médico pediatra, sanitarista e educador comunitário no CRT DST/Aids. Carlos é escritor, militante do movimento negro, da Rede de Jovens SP+, da Resistência – PSOL e do Loka. Passa um lubri e vem comiga (aloka):

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1. HIV e Aids são coisas diferentes: aprenda

Ter o vírus HIV no corpo não significa ter a síndrome (Aids), ok, meninas? A pessoa que toma medicação antirretroviral regularmente, depois de um tempinho, fica com níveis indetectáveis do vírus no sangue, e vive normalmente (já que vocês adoram uma normalidade). A Aids só ocorre quando a quantidade de vírus no sangue é muito alta, e mesmo assim pode demorar anos para ocorrer: só rola quando o vírus começa a atacar o sistema imunológico de uma forma mais intensa.

Uma pessoa indetectável, inclusive, não transmite HIV mesmo em uma relação sexual desprotegida. Ou seja, se 1 em cada 4 homens gays tem HIV, não necessariamente esse 1 boy positivo tem qualquer potencial de transmitir o vírus. Ouviu, Folha? #chega #de #100sacionalismo

Quando a Folha bota as aspas da pesquisadora dizendo que "São muitas vidas em risco", eu recorro à mana Carué Contreiras: "Sim, há mortes, principalmente de pessoas negras. E há outras tantas vidas saudáveis, com possibilidade de tratamento. Parece que a única narrativa possível para o HIV é a morte e o risco, e não é verdade. Faltou explorar esse outro lado".

2. Camisinha não é a única forma de prevenção

Ela ainda é a mais acessível, mas já existem outras opções de prevenção disponíveis no SUS. Uma delas é a PrEP, ou profilaxia pré-exposição: uma pílula por dia e, em eventuais fudeções sem camisinha, não rola risco de contrair o vírus. Como diria Wanessa: pode leitar (aloka). Uma opção para pessoas que têm dificuldade de sentir tesão com preservativo, por exemplo.

É uma vitória que hoje a gente tenha vários modelos de prevenção – e a imprensa precisa entender que a camisinha, ainda que continue super importante, não é o único. Para saber qual é o método de prevenção que mais se adequa ao seu estilo de vida, procure SEMPRE se informar sobre todos os métodos.

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Importante: a PrEP só cobre HIV, e não previne outras ISTs como sífilis, gonorreia, hepatite, etc. Obviamente, também não impede a gravidez de mulheres cis ou homens trans. Ok? Ok.

3. Não basta falar mais de HIV – precisamos falar melhor

A luta das pessoas vivendo com HIV é para que se fale, cada vez mais, sobre isso – mas em uma perspectiva estrutural, coletiva, não-moralista e com os devidos recortes. No boom da Aids nos anos 80/90, se falava em Aids o tempo todo porque geral morria. O tratamento foi avançando, pessoas com mais acesso ao tratamento (aka brancas e ricas/de classe média) deixaram de morrer e aí, de repente, nessa camada visível da Aids, parece que ela tinha deixado de ser um problema de poucos anos pra cá. Certo? R: errado.

Se o Brasil é o país que mais mata LGBTIA+ no mundo, a nossa comunidade morre ainda mais em decorrência da Aids. Em 2016, somando apenas bichas e mulheres trans/travestis que morreram por conta da síndrome, o número foi de 3.849 (dado do Boletim Epidemiológico de HIV/Aids de 2017).* É quase 10 vezes mais do que o número de assassinatos LGBTfóbicos.

Nesse ponto, LGBTfobia e sorofobia são irmãs. Por isso que, para a minha mana Carlos Henrique Oliveira, "nesse processo de culpabilização, o caminho mais fácil, sempre, é fazer as bichas de 'boi de piranha', como falava a minha avó". Em uma sociedade LGBTfóbica, nada mais fácil do que culpar as próprias bichas e travestis pelas suas mortes.

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E ainda há outros recortes fundamentais, como os de raça, classe e gênero.

Ainda que a gente tenha o tratamento antirretroviral no SUS, uma série de outros fatores sociais impedem que pessoas em situação de maior precariedade tenham acesso a narrativas de prevenção e gestão de risco, a exame fácil e rápido, ao caminho das pedras do tratamento – e isso tem a ver não só com LGBTfobia, mas também racismo, classismo e machismo (no caso de mulheres que contraem de seus maridos sem nem imaginar).

É mais complexo do que parece. Carlos explica: "Não são homens, e sim mulheres negras, cis, trans e travestis, as maiores vítimas da Aids. Em São Paulo, mulheres negras morrem três vezes mais do que pessoas brancas em decorrência dela. A chance de uma pessoa preta adoecer é 2,4 vezes maior do que o resto da população".

Ou seja: tem muito mais a ver com desigualdade social do que com "promiscuidade" (moralismo manda bjs). E como foi colocado em um cartaz babado na parada LGBT: "A gente só falava de Aids quando os brancos morriam".

"Não tem como falar de HIV/Aids, ou de saúde em geral, sem fazer uma crítica ao neoliberalismo. Porque quais são os corpos que adoecem? São justamente os corpos historicamente oprimidos, que precisam continuar morrendo para que o sistema funcione garantindo privilégios. Essas mortes podem ser via violência direta ou violência institucional, quando se precariza o sistema de saúde, por exemplo. É aí que a desigualdade social, racial, de gênero e de sexualidade se mistura com essa discussão", arremata Carlos.

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(Em tempo: a palavra promiscuidade é UÓ. É OK SER PIRANHA. Eu sou piranha, amo ser piranha e tenho zero problemas com isso. Sorry not sorry.)

4. Defender a criminalização da transmissão SÓ PIORA*

Muita gente defende que transmitir intencionalmente HIV seja crime. Existe até projeto de lei pra isso. Essa ideia é bem problemática, afinal: como se define, juridicamente, essa "intencionalidade"? Criminalizar a transmissão só cria uma brecha para vulnerabilizar ainda mais as pessoas mais vulneráveis que vivem com HIV. Só joga ainda mais culpa no indivíduo já precarizado, com punição penal.

5. HIV NÃO É VERGONHA: repense sua sorofobia/aidsfobia

Eu gosto dos termos sorofobia e aidsfobia (os termos, e não o que eles significam, ok?). Eles têm sido reivindicados por coletivos de pessoas positHIVas como Loka de Efavirenz e AMEM para nomear um estigma específico: a discriminação contra os corpos que vivem com HIV - porque, sim, é uma fobia muito recorrente dentro da comunidade LGBTIA+.

Isso remonta ao primeiro surto de Aids, lá nos anos 80/90, que era tida como "câncer gay", um estigma ainda mais violento para a nossa comunidade. Por conta disso, algumas bichas mais privilegiadas assumiram uma estratégia de sobrevivência um pouco questionável: a pessoa LGBTIA+ "limpinha", o mais distante possível da possibilidade de ter HIV, 100% aceitável perante as normas sociais, que compra todos os valores heterocis do rolê: trabalho, mérito, família, valores morais, branquitude, pink money, saúde vinculada à estética, etc etc. A ideia de heteronormatividade começa aí – "Você é gay? Nossa, nem parece".

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Essa construção "assimilada" criou um problema sério na nossa comunidade: bees moralistas. Que julgam a amiga que mama sem culpa no darkroom, que acham que a única narrativa de sucesso é a família gay perfeita do Niel Patrick Harris e evaporam da vida do crush quando descobrem que ele tem HIV. Bees (inclusive militantes) que silenciam a discussão do HIV e, por conta desse silêncio, trazem mais vulnerabilidade.

Sim: há muita sorofobia dentro do meio. Gay ou hétero, cis ou trans, lembre-se: HIV NÃO É VERGONHA. Não silencie as pessoas vivendo com HIV.

* Nota: esse boletim é uó, porque coloca mulheres trans e travestis no grupo de HSH (homens que fazem sexo com homens) e não coloca homens trans gays nesse mesmo grupo. Essa transfobia institucional, além de não respeitar a identidade de gênero de pessoas T, impede que a gente saiba de fato quantas mulheres trans e travestis morrem em decorrência do HIV, invisibilizando um genocídio ainda mais grave que o das bichas.

*Este tópico foi acrescentado pelo autor após a publicação do texto.

Gustavo Bonfiglioli é jornalista, artista ativista, LGBT, gestor de vibes, bixa grandona, ornitorrinca, camaleoa multidisciplimara – ela não para nossa que louca. Sócio-fundador (ou CBO - chief bixa officer) da consultoria Pajubá, Diversidade em Rede com o Ariel Nobre. Membro do coletivo artivista A Revolta da Lâmpada. Saque mais infos no site dele e no Instagram.

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