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reportagem

Por dentro das gangues de adolescentes armados em Liverpool

Como a cena de gangues da cidade inglesa está despertando novamente.
Max Daly
London, GB
Um garoto posando com uma arma. Foto: Liverpool Echo.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK .

Estamos dirigindo pelos subúrbios do norte de Liverpool não muito longe de Croxteth, onde Rhys Jones, de 11 anos, foi baleado acidentalmente pelo membro de gangue de 16 anos Sean Mercer em 2007. Foi a rivalidade violenta entre a Croxteth Crew e a Strand Gang de Norris Green que levou à morte de Rhys, que voltou ao foco público este ano com o drama televisivo Little Boy Blues.

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Estou no carro com Paul Walmsley, um ex-membro de gangue que foi um dos bandidos mais procurados da Inglaterra no final dos anos 2000, e com a criminologista Grace Robinson. Estamos aqui porque, depois de anos de queda na violência armada na área desde que Rhys foi morto, ela está explodindo de novo. No final de junho, foram quatro tiroteios em sete dias, parte de uma escalada de crimes com armas que confundiu as autoridades e deixou as comunidades esperando nervosamente pelo próximo eco de tiro. E a parte mais preocupante é que a maioria desses crimes envolvem garotos muito jovens.

Quando viramos a esquina do bairro de Norris Green onde Walmsley cresceu, vemos um grupo sentado num muro. Quando Paul reconhece um deles — depois sou informado que ele é um dos gangsteres mais letais de Liverpool, e que os outros ali são figuras-chave da cena de gangues local — paramos e saímos do carro para uma conversa rápida.

Os mais jovens não conhecem Walmsley; poderíamos ter sido parados em segundos se não fosse por sua conexão com um dos rostos mais velhos do grupo. E mesmo assim, um carro dá voltas no quarteirão, os ocupantes olhando desconfiados para nós. Apesar de uma regeneração parcial e uma ofensiva da unidade antigangue Matrix da Polícia de Merseyside desde a morte de Rhys, Norris Green ainda é volátil o suficiente para formar áreas de entrada proibida para pessoas de fora e policiais a pé.

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Robinson me explicou mais cedo que embora Norris Green e Croxteth não sejam mais considerados centros do crime armado, o problema passou para bairros ainda mais pobres, como Bootle, Kirkby e Fazakerley.

Segundo ela, há uma nova geração de criminosos de rua, geralmente recrutados por criminosos mais velhos, que rapidamente ganha a reputação de ser mais descarada nos esforços para evocar medo nos rivais. Quando Sean Mercer baleou Rhys Jones uma década atrás, ele estava armado com um revólver velho da Primeira Guerra Mundial e uma mountain bike. As gangues de rua de hoje usam mais motos e quadriciclos de baixa cilindrada, levando espingardas de cano serrado. Apesar do respeito pelas mulheres entre a maior parte da classe criminosa de Liverpool, esses garotos dizem aos inimigos "Vamos pegar sua mãe", antes de atirar contra casas e enfiar bombas caseiras em caixas de correio.

Pergunto a um dos caras sentados no muro — que, aos 25 anos, já notou a mudança da maré — por que ele acha que a coisa está deslanchando neste verão, quando em 2016 parecia que a polícia tinha tudo sob controle. "Essa geração é louca. Eles não dão a mínima", me diz ele. "Eles não têm medo e é fácil conseguir uma arma. Eles não frequentam a escola e não têm dinheiro, fora o pouco que ganham vendendo maconha. As mães são viciadas ou alcoólatras, e os pais estão presos por assassinato ou mortos. Esses tiroteios não são por causa de dinheiro ou drogas. Eles não têm nada a perder — eles só se importam com respeito."

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Para membros de gangue que querem provar alguma coisa, armas de fogo e motos são um jeito eficiente de espalhar medo e causar danos, para depois fugir rapidamente. A polícia admite que o crescimento na disponibilidade de armas de fogo poderosas nas ruas de Liverpool é um grande problema.

Denis Moran, um policial aposentado envolvido com a unidade Matrix, me disse que esses adolescentes, que vão regularmente para o interior para vender drogas, também estão roubando armas sob encomenda: "Há uma ligação com os condados aqui. Jovens estão indo vender drogas em Cheshire, Cumbria e Shropshire, e são incumbidos de roubar armas de fogo para usar nas ruas da cidade".

Ele diz que espingardas que os fazendeiros usam para cuidar de animais invasores são roubadas das casas enquanto os donos estão trabalhando no campo. Ele acredita que mesmo que muitos tiroteios tenham começado por rivalidades entre bairros e pequenos insultos, alguns estão ligados a dívidas e disputa de território de venda de cannabis.

Para entender essa crise, você precisa ter uma ideia do que se passa na cabeça dos garotos no meio desse caos armado.

Robinson, que está pesquisando sobre gangues e violência juvenil na Edge Hill University em Liverpool, passou muitas horas falando com membros de gangue e especialistas em crime juvenil dos subúrbios quase completamente brancos do norte da cidade.

Por trás da intimidação, das jaquetas pretas North Face e do corte de cabelo "ketwig" estão algumas das crianças mais negligenciadas do país, que parecem presas numa vida de crime e violência desde cedo.

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"É difícil ajudá-los porque suas famílias geralmente estão envolvidas com gangues. O pai está preso, o avô está preso e o namorado da mãe é de uma gangue. A própria mãe de um garoto com quem falei é integrante de uma gangue e obriga os filhos a roubarem e venderem drogas. Eles acham que é normal", diz Robinson.

Para a criminologista todos os jovens de gangue com quem teve contato vêm de um lar frágil: eles estão no sistema de adoção, em famílias com um só dos pais ou sendo passados, de casa em casa, entre parentes. A maioria deles é expulsa da escola aos 14 anos. "Falei com um garoto ontem", diz Robinson, "que disse que não aguentava aquilo. Ele odiava os professores mandando nele, então começou a bater nos professores. Ele não frequentava a escola desde então."

Um adolescente de Liverpool segurando uma espingarda. Foto: Liverpool Echo.

Os subúrbios do norte de Liverpool sempre foram um lugar difícil para crescer. Libertado ano passado depois de cumprir pena pelo envolvimento num esquema para contrabandear £3,5 milhões em heroína, Walmsley estava na carreira criminosa desde a adolescência, ganhando favores entre os mais velhos por ser inteligente e manter a boca fechada. Agora, aos 48 anos, ele é um life coach que ajuda jovens infratores a desistir do envolvimento com gangues.

Segundo Walmsley, a explosão da violência entre a nova geração vem de um vácuo de poder criado pela remoção de membros de alto escalão das gangues do norte de Liverpool depois da morte de Rhys Jones. Ele diz que uma onda similar de violência aleatória aconteceu depois que a polícia varreu as gangues de Liverpool nos anos 90. Cortar cabeças do monstro tira jogadores sênior da cena, diz Walmsley, mas também leva o caos às ruas.

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"Quando eu estava nessa, havia uma hierarquia. Agora todo mundo é autônomo", me diz ele. "Uma nova geração está emergindo e precisa fazer um nome para si; eles precisam ter uma reputação, então precisam fazer alguma coisa para ganhar isso. Você precisa de segundos para identificar alguém na sua área, ter uma arma entregue na sua mão e disparar contra alguém, mas isso dá a eles dez anos de credibilidade. Celulares são como uma forma de vigilância interna no bolso de todo mundo: você sempre pode ser alertado de que alguém está no seu caminho."

"Liverpool é uma 'fossa' que foi abandonada pelo governo." — Billy

Um rosto muito conhecido das gangues de Liverpool, "Billy" — que "aterrorizou" a cidade nos anos 2000, segundo Walmsley — foi liberado no começo do ano depois de cumprir uma longa pena por porte de armas e drogas. Billy me diz que hoje em dia, como a coisa é mais sobre notoriedade que antes, quanto maior o espetáculo melhor. Essa seria uma das razões atribuídas aos recentes tiroteios em plena luz do dia na região.

A esposa, que é uma enfermeira num hospital local, diz que só viu uma vítima de tiroteio à noite. "Semana passada meu primo foi preso por envolvimento num tiroteio, mas acabou sendo interrogado na delegacia de Birkenhead porque todas as celas de Liverpool estavam lotadas com pessoas em custódia por causa dos tiroteios", diz Billy. "Você respeitava assassinato no meu tempo, mas agora matam por qualquer coisa. Liverpool é uma 'fossa' que foi abandonada pelo governo. Quanto valeriam essas casas em Londres? Aqui elas saem por £30 mil."

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Quase uma década de austeridade atingiu os subúrbios já decadentes de Liverpool, como Knowsley, com toda força. Com a pobreza em disparada, em alguns casos os jovens são atraídos para o crime só para ter dinheiro para comer. Não é surpresa então que a prática estilo Dickens de "exploração criminal infantil" esteja criando um exército de garotos envolvidos no crime cada vez mais jovens.

"Pessoas que trabalham com jovens infratores estão vendo crianças cada vez mais novas se metendo em encrenca com gangues em Liverpool", diz Robinson. "Com a promessa de dinheiro e às vezes até comida, os mais velhos pedem que crianças invadam casas — porque elas são menores — e escondam drogas. Um garoto de sete anos foi pego escondendo a arma de outra pessoa em sua mochila da escola."

Garotos dirigem motos dentro de um shopping em Liverpool. Screeshot por Liverpool Echo .

Crianças com pais que não estão envolvidos em crimes estão se voltando contra os gangueiros. Robinson diz que um pai estava preocupado porque o filho passava semanas fora, depois descobriu que ele estava vendendo drogas em Cumbria para uma gangue de Liverpool. Ele explicou ao filho que o amava, e que seus chefes não tinham respeito por ele. O garoto ouviu dos membros das gangues que os pais só queriam impedi-lo de se divertir, então disse ao pai que os membros da gangue viriam dar uma surra nele se ele não o deixasse em paz.

Em janeiro, um membro de gangue que não conseguiu pagar uma pequena dívida de drogas teve a casa visitada por membros de gangue em Kensington. Ele não estava, então a gangue quebrou tudo lá dentro e esfaqueou seu pai no processo.

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Quando eles estão isolados de seus amigos e família, os laços se apertam, diz Robinson. Membros mais velhos exploram a confiança dos mais novos dando dinheiro, drogas ou alojamento "grátis", só para depois exigir pagamento em serviços. Mesmo se esses jovens tivessem coragem para sair, os crimes que cometeram são usados contra eles na forma de chantagem para que eles fiquem.

Esses garotos evitam álcool. Em vez disso, eles fumam muita maconha, não porque estão cultivando a erva, mas para mascarar emoções com que não conseguem lidar, acredita Robinson. Quanto a Sean Mercer, é fácil apontar esses garotos como "selvagens" sem emoção que precisam ser enjaulados. Mas vá um pouco mais além e as coisas não serão tão unidimensionais assim.

"Eles têm essa fachada. Você não acreditaria que eles estão envolvidos em qualquer crime, porque parecem muito inocente. Mas quando você consegue que eles se abram e sejam honestos, na verdade eles são muito simpáticos. Eles falam com calma e são educados", diz Robinson. "Na fachada eles não têm respeito. Eles não respeitam os pais. Mas quando se abrem, o que não é muito comum, isso está lá."

E as recompensas são passageiras para esses garotos. Diferente de membros de gangue do passado, que alcançavam algum sucesso como Walmsley, que conseguiu sair de Liverpool e morar numa casa grande no interior, a safra atual está cada vez mais num beco sem saída. "A maioria deles não sai da área onde cresceu", diz Robinson. "Eles nunca conseguem ser promovidos para mais nada. Eles acabam na cadeia ou mortos."

A menos que recebam uma chance de sair.

Contra uma maré alta de pobreza, e com os jovens de algumas das partes mais pobres do Reino Unido cada vez mais atraídos para as margens da sociedade, Walmsley está usando suas experiências para tentar tirar os adolescentes de Liverpool do moinho das gangues. "Quero que eles tenham um senso de valor, de conquista, de pertencimento", diz Walmsley, que se tornou autor e conselheiro na prisão. "Eles deveriam estar com as famílias, com pessoas que realmente os amam, não com gente que daqui 20 anos não vai dar a mínima para eles.

"Precisamos conscientizá-los de que eles têm escolha, em vez de os trancá-los do outro lado e os tratar como escória. Porque eles não são — são seres humanos: eles merecem uma chance."

@Narcomania

Tradução: Marina Schnoor

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