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Passei um Dia Inteiro no Metrô de Pequim

Minha missão autoimposta é passar um dia inteiro na Linha 2, circulando pelo centro de Pequim

Estação Dongzhimen no horário de pico da manhã.

Se o metrô de Pequim alimenta o coração pulsante da cidade, então a Linha 2 é o sistema circulatório. Seu percurso é traçado onde antes ficavam as muralhas da cidade antiga, mas o desdém de Mao pela história viu a estrutura como um caminho para os túneis subterrâneos e ergueu um anel viário por cima de tudo. Inacreditáveis 1,5 milhões de pessoas usam a linha todos os dias, cada uma é uma pequena célula sanguínea que mantém a capital viva.

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Minha missão autoimposta é passar um dia inteiro na Linha 2, circulando pelo centro de Pequim do primeiro ao último trem. Metade observação social, metade teste de resistência, não há maneira melhor de experimentar as secções transversais da cidade do que vê-la mudar à sua volta de um desconfortável assento de metrô. É o paraíso dos observadores de pessoas.

Estação Andingmen ao amanhecer.

4h51 – Há uma névoa palpável de sujeira no ar quando desço para as profundezas do metrô. Uma voz gentil nos alto-falantes me lembra que devo me “manter firme e segurar o corrimão”, o que realmente é uma ajuda. É reconfortante saber que o Estado se importa com meu bem-estar.

5h05 – A porta do primeiro trem se abre. “Welcome to Subway Line Teeooo” declara o locutor autômato com um sotaque chinês/inglês/robótico que, nas próximas 24 horas, se tornará meu nêmesis sem corpo.

Pego um assento num carro clinicamente iluminado coberto de publicidade. Telas acima de cada banco de assentos fazem propaganda de um inseticida, um site de encontros e um tipo de óleo de cozinha. Até mesmo as janelas existem para lembrar as pessoas de sua necessidade de consumir. Enquanto aceleramos entre as estações, linhas de displays de LCD dentro do túnel exibem ainda mais propagandas através do vidro.

Madrugadores no primeiro trem.

5h26 – As pessoas de Pequim acordam incrivelmente cedo. A essa hora elas normalmente podem ser encontrados fazendo seus exercícios matinais, um tipo de esporte nacional. Mas uma boa parte também está pegando o metrô. Há pelo menos dez madrugadores em meu carro, apesar de ele ainda manter um ar meio desértico até chegarmos na estação batizada criativamente de Estação Ferroviária de Pequim.

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Aqui, hordas de passageiros invadem o carro, suas roupas e a pele bronzeada sugerem que eles não são da capital. O terminal é um concentrador para os trens que servem às províncias, transportando os migrantes que inundam Pequim em busca de trabalho. Já não há mais assentos vagos.

5h49 – Completo minha primeira volta nos 44 minutos programados e tenho minha primeira grande revelação. As portas do lado esquerdo são as únicas que sempre abrem, significando que o outro lado é completamente redundante. Eles poderiam usar o espaço para colocar mais assentos. Ou, quem sabe, umas espreguiçadeiras acolchoadas.

Indo para o trabalho.

6h50 – O carro começa a se encher com uma multidão de trabalhadores exibindo todas as grandes características do consumo capitalista: os olhos grudados em smartphones e tablets. Mas isso não é uma réplica de uma cena ocidental. A palavra chinesa para terno (xi fu) pode ser traduzida literalmente como “roupa ocidental”, mas não vejo nenhum por aqui. Em vez disso, a maioria dos homens usa camisas polo e as mulheres usam vestidos floridos e saias pregueadas.

A hora do rush definitivamente começou, embora a expressão pareça meio equivocada. Isso vai durar pelo menos umas três horas.

8h20 – Isso está longe do pandemônio que eu esperava. Apesar de haver certo caos no costume de entrar no trem antes de deixar os outros saírem, o sistema absorve a confusão com eficiência. Não há “empurradores” oficiais para compactar todo mundo dentro do trem (como acontece em Tóquio), ninguém é deixado esperando na plataforma (como acontece em Londres) e os trens nunca param nos túneis (como acontece em quase toda cidade grande do mundo). O metrô de Pequim é uma máquina perfeitamente lubrificada.

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Voltas na Linha 2.

9h47 – As coisas se acalmam um pouco e um time de três homens percorre rapidamente o trem, colocando panfletos nas alças de apoio presas no teto de forma hábil. Os panfletos anunciam novos apartamentos num complexo de arranha-céus na periferia da cidade.

Casa própria, juntamente com casamento, é a realização pela qual uma vida é considerada bem-sucedida. Algumas pessoas de 30 e poucos anos examinam as fotos dos prédios, mas a maioria usa os panfletos para se abanar.

Alguns minutos depois, um funcionário uniformizado passa recolhendo os panfletos que continuam nas alças. A guerra entre os panfleteiros e a equipe do metrô se desenrola repetidamente durante todo o dia, apenas mais um dos ciclos infinitos do circuito.

Um dia quente na capital.

10h40 – Depois de cochilar por umas seis paradas, acordo com o carro cheio de crianças de colo examinando curiosamente minha aparência. Faço caretas para elas quando os pais não estão olhando. As crianças não parecem particularmente entretidas, mas isso ajuda a passar o tempo.

Há também muito mais gente velha. Um homem de 40 e poucos anos oferece de bom grado seu assento para uma idosa e sou tomado pelo medo. Respeito pelos mais velhos significa que logo terei que entregar meu assento, um gesto aparentemente pequeno que pode me condenar a horas em pé. Abaixo o olhar descaradamente para evitar contato visual.

12h02 – O vídeo dos comerciais é interrompido pelo último boletim de notícias aprovado pelo governo. Uma combinação de miopia e incapacidade total de ler chinês indica que não consigo ler as legendas. Parece que há um engarrafamento em algum lugar, alguma coisa aconteceu com um porta-aviões e um grupo de homens se encontrou numa sala indefinida.

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Apenas mais um dia na China.

Alinhando-se para a entrada.

15h30 – Há um aumento inexplicável no número de passageiros e que não vai diminuir pelo resto do dia. Não há uma hora do rush discernível no período da tarde, só uma agitação do final da tarde/noite.

As pessoas são consideravelmente mais sociáveis do que nos outros metrôs da cidade. Os cidadãos de Pequim são barulhentos por natureza e o carro se enche com uma atmosfera acolhedora e gregária. As conversas começam a formar um zumbido indistinguível do som “arghr”, que parece permear toda terceira sílaba do dialeto de Pequim. Esse zumbido é pontuado pela pronúncia interminável de nei ge, um expressão-muleta similar a “hum” e que soa idêntica a um dos termos mais ofensivos da língua inglesa. Fecho os olhos e me sinto num trem cheio de piratas racistas.

“Welcome to Subway Line Teeooo!”

15h45 – O inevitável acontece. A vontade de fazer xixi vai destruir minhas esperanças de ver a cidade do mesmo assento que tenho ocupado por 10 horas e 40 minutos.

Não é incomum os pais de Pequim deixarem seus filhos desesperados se aliviarem dentro do trem mesmo, através de uma aba com botões que existe em toda calça de bebê. Mas suspeito que meus colegas passageiros não serão tão compreensivos no caso de um adulto da bizi (um termo para estrangeiro que pode ser traduzido, literalmente, como “narigão”).

Desço numa estação para mijar e embarco no próximo trem para recriar as condições originais de minha observação. Há alguns assentos vagos, mas fico secretamente grato pela oportunidade de ficar em pé. Os bancos são feitos de plástico duro e seu design deixa muito a desejar no quesito ergonomia para vertebrados.

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Um passeio suave no Metrô de Pequim.

17h21 – Cliques ritmados anunciam a chegada iminente de um mendigo. Um velho bate dois gravetos e vem caminhando pelo trem estendendo uma latinha. Para minha surpresa, ele parece relativamente bem de saúde. Levando-se em consideração que há um fluxo horários de cegos, amputados e pobres carregando crianças desde o começo da manhã, parece improvável que ele possa competir pela simpatia dos passageiros. Não que eu tenha visto um único yuan ser doado. Ele é recebido por olhares desviados e indiferença.

Há um rumor comum em Pequim que diz que os deficientes e desfigurados da cidade são explorados pelo crime organizado e forçados a pedir esmolas e dar golpes. Mas talvez a gente só esteja procurando por uma desculpa para não ajudar.

Estação Chaoyangmen no começo da noite.

18h – Acima do solo, o Índice de Qualidade do Ar (IQA), uma medida dos poluentes nocivos, atinge um pulmão trabalhando em 477, o que é classificado como “perigoso”. Mas os cidadãos de Pequim são imunes ao perigo e afirmam que seus corpos já se acostumaram com o ar. Não vejo um só rosto com máscara na Linha 2.

É provável que estejamos no lugar mais seguro da cidade no momento. Eu me sentiria relativamente complacente, não fosse o fato de que minha jornada é abastecida por uma marca de água mineral manchada por um escândalo recente envolvendo contaminação por arsênico. Às vezes, é difícil escapar do sentimento de que todas as necessidades da vida estão aí para nos prejudicar.

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Chegando mais uma vez na Estação Dongsi Shitiao.

20h57 – Passo pela Dongsi Shitiao pela 23ª vez e decido, por razões bastante juvenis, que essa é minha estação preferida. O tédio toma conta e passo as próximas quatro paradas calculando quantas vezes as palavras “dong” e “shit” aparecem no mapa do metrô. São 10 menções à primeira e honoráveis duas para a última. Menos de duas horas para o fim da jornada.

22h36 – O circuito final começa. O último trem é um dos mais lotados, mas não há bêbados, gente indo para a balada, nem pessoas voltando tontas para suas casas depois de um happy hour no karaokê. A ausência de festeiros barulhentos pode ser resultado dos táxis baratos da cidade, mesmo assim, isso é um caso extremo de civilidade.

“Galvin Klein” (à esquerda).

22h59 – A queda noturna do movimento produz uma concorrente tardia para o prêmio de item de vestuário mais estranho da Linha 2. Uma mulher usando uma camisa de futebol com a bandeira da Itália de um lado, a palavra “Alemanha” de outro e um galo francês na manga. Também testemunhei a variedade habitual de itens piratas, incluindo um par de sapatos “Hugo Boos” e uma camisa da conhecida marca “Galvin Klein”.

23h20 – Meu trem para de funcionar e sou ejetado sem cerimônia por um guarda com cara de cansado. Em certo sentido, viajei quase 603 mil quilômetros, em outro, não fui para lugar nenhum. Mas com essa mesma distância eu poderia ter chegado até a Mongólia, mas não teria visto tantas idiossincrasias e curiosidades que formam este país infinitamente complexo.

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Oscar Holland é um jornalista freelance que mora e trabalha em Pequim.

Fotografias por Lukas von Rantzau.

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