Fotografar esses ônibus espaciais abandonados me tornou um alvo da Rússia
Todas as fotos fornecidas pelo entrevistado.

FYI.

This story is over 5 years old.

Viagem

Fotografar esses ônibus espaciais abandonados me tornou um alvo da Rússia

Como um homem invadiu uma instalação secreta que abriga os últimos ônibus espaciais experimentais da União Soviética.
Madalena Maltez
Traduzido por Madalena Maltez
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Matéria originalmente publicada na VICE US.

Esta é a história de um fotógrafo anônimo, como contada a Julian Morgans.

O que você está vendo são ônibus espaciais russos abandonados, cobertos de poeira e esquecidos nas entranhas de uma instalação de lançamento no Cazaquistão. Os restos de um esforço fracassado da URSS de construir um ônibus espacial reutilizável como parte do Programa Buran. Baseado em planos roubados da NASA, o programa comeu bilhões entre 1974 e 1993, só para colocar a nave em órbita uma vez em 1988.

Publicidade

Quando a URSS se despedaçou, o programa foi fechado e os ônibus espaciais incompletos ficaram apodrecendo no ex-império soviético. Um dos ônibus foi destruído em 2002, quando o hangar onde ele estava desmoronou com uma tempestade, enquanto outro protótipo está num museu alemão. Esses dois ônibus espaciais no Cosmódromo Baikonur no sudeste do Cazaquistão provavelmente são os únicos outros sobreviventes.

Poucas pessoas conseguiram entrar na instalação e sair com o cartão de memória de suas máquinas. Vamos ouvir uma dessas pessoas hoje. Ele é um fotógrafo europeu que não queria que seu nome fosse publicado por medo de dificultar suas viagens internacionais, que obviamente são parte de seu trabalho.

Aqui ele explica com suas próprias palavras como entrou na instalação, como saiu, e como agentes russos estão atrás dele desde então. A entrevista foi editada para maior clareza.

A primeira vez que li sobre o Programa Buran na internet, pensei “Bom, isso vai entrar na minha lista”. Parecia o clímax para qualquer explorador urbano. O melhor do melhor. Então, em outubro de 2015, viajei para o Cazaquistão.

Acontece que a instalação é enorme. Ela tem 70 por 90 quilômetros no deserto com centenas de plataformas de lançamento da Guerra Fria. Algumas plataformas ainda estão ativas – é de lá que eles lançam foguetes para a Estação Espacial Internacional. Mas o principal desafio está no hangar a uns 40 quilômetros da estrada principal. Outro problema é que não há um lugar para esconder um carro, então você não pode dirigir até lá. E no topo de tudo isso há jipes constantemente patrulhando o local.

Publicidade

Passei a viagem de 2015 investigando a instalação com um binóculo, só tentando aprender por onde e em que horas as patrulhas passavam. Eu não tinha um plano. Só coletei dados e tentei descobrir como evitar as patrulhas e atravessar o deserto sem um carro, até ter uma ideia – uma bicicleta! Depois que entra, você pode ir de bicicleta pelas estradas de asfalto. Eu só tinha que cobrir a distância da estrada principal, até uma estrada interna, que tinha cerca de 20 quilômetros.

Então voltei para casa e bolei um plano. Encomendei uma bicicleta dobrável e prestei atenção nas datas de lançamento. Você pode conferir a agenda de lançamentos na internet, e eu queria tentar entrar quando houvesse a menor atividade possível. Então vi que não haveria nenhum lançamento durante agosto de 2016. Também haveria uma lua cheia no meio do mês, o que facilitaria viajar à noite. Então esse era o plano.

O primeiro lugar que ele tentou estacionar. A bicicleta deles está no canto direito.

Fui para a instalação numa noite de sexta e no começo foi fácil. Achei um lugar para esconder meu carro – uma pilha de pneus, tapetes e lixo no deserto. Eu estava cobrindo o carro com tapetes e pneus quando uma patrulha passou. Pensei “Merda!” Mas eles devem ter achado que eu só estava descarregando lixo ali como os locais fazem, e não pararam.

Ainda assim, eu sabia que eles tinham mudado sua rota para ver o que eu estava fazendo. Então soube que tinha que fazer um novo plano e dirigi mais sete quilômetros para o leste. Lá, na noite seguinte, achei um cemitério onde imaginei que podia estacionar sem ninguém fazer perguntas.

Publicidade

De lá peguei minha bicicleta e cheguei até a primeira estrada interna. E ali encontrei meu primeiro problema, porque achei que as estradas eram asfaltadas, mas não eram. Em vez disso tinha areia e cascalho, mas eu não tinha outra escolha. Então comecei pedalar pela areia.

Achei que levaria umas cinco horas, mas era difícil pedalar e acabei fazendo o caminho em nove. Quando cheguei ao hangar, já era madrugada e eu estava exausto, só para encontrar outro problema.

O hangar deveria estar destrancado, mas descobri tudo selado. Pensei “Meu deus, cheguei até aqui e não posso entrar”. Mas quando empilhei alguns barris de óleo, conseguiu alcançar uma escada de incêndio e chegar ao segundo andar. O segundo andar estava destrancado, então entrei por volta das 6h30 e estava tudo escuro. Só uma fileira de janelas, lançando um brilho no que parecia uma enorme catedral. E aí consegui ver os dois ônibus espaciais incríveis abaixo de mim.

Era como um mausoléu da era espacial. Sentei lá por duas horas, só olhando para eles. Tentei dormir mas meu corpo estava cheio de adrenalina, então finalmente às 10h a luz melhorou, e comecei a tirar fotos.

Era uma típica manhã calma no Cosmódromo Baikonur e passei o dia escalando e tentando conseguir os melhores ângulos. Os ônibus espaciais claramente estavam apodrecendo há 25 anos e estavam cobertos de cocô de passarinho. Tinha uma escada embaixo de um deles e consegui entrar, mas não havia muita coisa lá dentro para ver. Eles foram basicamente destruídos. O hangar também estava destruído porque os cazaques passaram 10 anos sem saber o que acontecia em Baikonur, então fizeram uma batida no lugar. Tudo de valor foi levado e acho que o hangar pode desmoronar a qualquer momento, como o aconteceu com o outro.

Publicidade

O foguete que deveria levar a nave Buran para órbita.

Depois de passar o dia tirando fotos, eu queria ver outro hangar próximo. Esse abrigava um grande foguete Energia, com uns 400 metros. Me arrestei até lá e tirei mais fotos. Quando eu estava prestes a ir embora, apareceram três pastores alemães. Eles estavam fazendo muito barulho e um deles começou a se aproximar, então peguei um cano de metal e meu spray de pimenta, que comprei especificamente para cachorros. Ele estava cada vez mais perto, latindo para mim, então acertei ele na boca e usei o spray. Depois disso os três se afastaram e fiquei sozinho de novo.

Nesse ponto já estava escuro e eu tinha que voltar. Eu não queria estar lá na manhã de segunda, então precisava chegar até meu carro quando o dia clareasse. Andei oito quilômetros até onde minha bicicleta estava e comecei a pedalar. Do nada, vi luzes de um jipe atrás de mim. Joguei minha bicicleta no chão e corri por uns 50 metros no deserto.

Consegui ver um cara descendo para a estrada, olhando para direita e para a esquerda, observando o deserto e voltando para o carro. Não sei se eles estavam procurando por mim ou o quê. Mas acho que como era final de semana, esses guardas podiam ter tomado umas vodcas, e eu só conseguia pensar “Pelo amor de deus, não passem por cima da minha bicicleta”. De algum jeito, eles passaram direto por ela. Então montei nela de novo e voltei a pedalar.

Depois de horas pedalando pela areia eu estava exausto. Acabei achando que era mais fácil andar, então abandonei a bicicleta e meu colete à prova de balas. Eu queria deitar e descansar, mas sabia que não podia. Andar sob o sol no deserto sem muita água seria perigoso. Eu tinha seis litros para 36 horas e felizmente foi suficiente. Mas eu sabia que não seria num calor de 37 graus.

Publicidade

Finalmente, por volta das 6h, cheguei até meu carro. Aí dirigi 20 quilômetros, liguei o ar-condicionado e dormi. Ao meio dia, acordei e continuei a viagem.

Quando fui para casa fiz uma grande exposição e o lugar lotou. Fiz vários negócios e vendi muitas fotos para homens de negócio. A viagem custou 1 mil euros e lucrei 20 mil, um bom resultado.

Mas quatro dias depois, cheguei em casa e a porta do meu apartamento estava aberta. Instantaneamente, eu soube que alguém tinha invadido, mas eles não fizeram a grande bagunça que eu esperava. As únicas coisas faltando eram minha Nikon – a máquina que ainda estava com as fotos do foguete no cartão. E eles também roubaram meu notebook, mais nada. Acho que eles estava na exposição e viram meu computador projetando todas as fotos de Baikonur. Mas eles deixaram seis lentes na mesma bolsa da câmera, além da minha câmera reserva, uma Sony A7. Então era um pouco suspeito.

Chamei a polícia, eles vieram e eu fiz a queixa. Mais tarde, eles me ligaram e disseram “Olha, não faz sentido esses caras terem levado só sua câmera e notebook. Então achamos que foi uma mensagem de Moscou”.

Eles me disseram para ter cuidado, porque mexer com esses caras não era uma boa ideia. Eles achavam, e eu concordo, que era uma questão de honra. Os russos ficam humilhados quando alguém como eu entra em seu cosmódromo mais secreto com uma bicicleta dobrável. E os americanos pagam dezenas de milhares de dólares toda vez que usam Baikonur para lançar alguém até a Estação Espacial Internacional, então essa história também não era boa para os negócios. Desde então tenho tentado ficar fora da mídia, que é outra razão para falar anonimamente aqui.

Não estou com medo. Não ando por aí olhando por cima do ombro. Sou uma pessoa muito otimista e esse é meu trabalho. É uma grande história e já a contei para alguns amigos. Acho que a principal coisa que aprendi é que é muito importante estar preparado. Eu estava com meu spray de pimenta e meu colete à prova de balas. Aprendi como se diz “mãos para o alto”, em russo. Mas eu não tinha um plano B quando o primeiro lugar que tentei estacionar não deu certo. Eu deveria ter feito um plano B, em vez de ter que improvisar.

Então esteja sempre preparado e se alguém quiser entrar lá, recomendo não tentar. Uma equipe de TV até me pediu para guiar um grupo lá. Eles me ofereceram muito dinheiro, mas não sou um guia. Não vou voltar lá só pelo dinheiro. Faço o que faço pela fotografia e nada mais.

Leia mais histórias do Julian no Twitter ou Instagram.

Siga a VICE Brasil no Facebook , Twitter e Instagram .