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'Big Little Lies' não é uma série sobre assassinato, mas sobre vítimas de abuso

Violência contra mulher, negação e uma trama cheia de nuances na minissérie com sete episódios da HBO.
Foto por Hilary Bronwyn Gayle/cortesia HBO.

Esta matéria foi publicada originalmente na VICE US .

Big Little Lies, a maravilhosa minissérie em sete episódios da HBO que deixou muitos espectadores cativados, terminou no último dia 2 de abril. O que poderia ter sido uma história manjada — um grupo de mães ricas lidando com um escândalo — se mostrou um quebra-cabeça profundo e inteligente, tornando-se cada vez mais atraente com cada episódio de uma hora. Naquele domingo, a série terminou com um grau de catarse feminista bastante incomum numa era definida por políticas cansativas.

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O final eficaz se manteve fiel ao material de fonte (o livro Pequenas Grandes Mentiras de Liane Moriarty) mas também funcionou como uma amostra das forças das atrizes principais: O queixo trêmulo de Reese Witherspoon! O olhar corajoso de corça de Shailene Woodley! A vulnerabilidade palpável de Nicole Kidman! Quando as personagens dessas atrizes acabam brincando no mar juntas na tomada final, sua alegria parece sincera e merecida, não nascida da necessidade de ligar fios soltos da trama. O roteirista David E. Kelley criou uma comunidade realista estranhando a si mesma, mas com suas mulheres colocando eventualmente as diferenças de lado para derrotar um mal maior.

Para além de tratar sobre um misterioso assassinato, Big Little Lies inovou ao retratar de forma implacável a face do abuso violento em todas as suas nuances. As mulheres e garotas no centro da trama da série estão dolorosamente conscientes dos perigos abstratos que podem se manifestar a qualquer segundo. É fascinante assistir como cada indivíduo escolhe lidar com sua própria vulnerabilidade.

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Nicole Kidman estava hipnótica como Celeste, uma advogada aposentada e mãe de dois filhos. Rigorosamente composta e elegante, Celeste é alvo de abuso físico e emocional do marido, Perry, interpretado com uma duplicidade ameaçadora por Alexander Skarsgård.

A presença sufocante de Perry paira sobre Celeste como uma sombra, quer ele esteja em cena ou não. Até os vestidos leves de verão e pequenos cardigans que ela usa são uma refutação da perspectiva dele; ela quer projetar inocência e vulnerabilidade porque seu marido fatalmente inseguro acha que ela não possui nenhuma dessas características.

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A incapacidade inicial de Celeste de reconhecer a brutalidade do parceiro impulsiona o enredo da série até sua conclusão, mas no ínterim, o público precisa assistir Perry batendo a cabeça de Celeste contra o vidro do box do chuveiro, a estuprar enquanto os filhos brincam por perto e repreendê-la por cada suposta recusa em reconhecer a posição — em risco — de seu marido como chefe da casa.

Ele bate nela e depois se desculpa com total sinceridade, dizendo que está frustrado porque viaja demais. Ele insiste que a adora. Enquanto isso, Celeste nega que é uma vítima, e até mesmo se castiga pelos picos febris de crueldade na interação deles — mas quando o casal começa a ver uma terapeuta (Robin Weigert), a fachada desmorona. Como a Dra. Amanda Reisman, Weigert tem uma atuação infundida com empatia e controle; você realmente acredita que ela é a pessoa capaz de ultrapassar os bloqueios da evasiva e intelectual Celeste.

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Reisman inicialmente encontra o casal determinada a consertar o casamento deles. Celeste diz que as brigas deles são "voláteis", e numa cena extraordinária no episódio três, Perry admite seu próprio comportamento raivoso, explicando para a Dra. Reisman que tem medo de perder a esposa. Sua habilidade de reconhecer a razão de seu abuso, enquanto ainda o perpetua, é terrivelmente bem retratada: a série foi elogiada por ser realisticamente desconfortável por uma boa razão.

Outras séries de longa duração (como Sopranos) contam com a relação entre terapeuta e paciente para dar ao público uma visão útil das motivações por trás de um personagem carismático, mas Big Little Lies usa seu limite de episódios como uma vantagem. A descoberta de Celeste — e o tamanho de sua dor — são devastadoras de assistir. "Ele te machuca", Reisman afirma definitivamente no quinto episódio. "Ah, não", Celeste ri constrangida, já saindo do sofá, "Eu não disse isso. Nós dois somos violentos às vezes. Tenho minha parcela de culpa". "Ele te machuca", repete Reisman, insistindo.

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Enquanto as ações de Celeste são definidas, até certo ponto, por sua negação, as outras duas protagonistas (Shailene Woodley e Reese Witherspoon) servem interpretações excelentes com sua energia clara e voracidade de sua compaixão. Jane (Woodley) tem um filho produto de um estupro, e abre seu caminho em Monterey armada com uma graça impressionante e espessa. Reese Witherspoon transcende tipos, elevando sua base puxa-saco moralmente ambígua até uma caracterização quase operística.

O abuso contra mulheres em Big Little Lies chega até as crianças, como visto na personagem Amabella Klein, filha dos executivos viciados Gordon e Renata. A garotinha de olhos azuis enormes termina seu primeiro dia de escola coberta de hematomas e sofre bullying por toda a série. A identidade do agressor de Amabelle está ligada à conclusão sangrenta da série, mas a satisfação de ver o caso resolvido parece pequena comparada à gravidade da tese central da série. Abuso não é aleatório, não existe num vácuo e, mais importante, pode ser ensinado. Big Little Lies te obriga a se reconciliar com a ideia de que abuso pode até ser herdado.

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Tradução: Marina Schnoor

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