O apresentador Gilberto Barros (à esq.), uma carta do jogo Yu-Gi-Oh e Jair Bolsonaro.
O apresentador Gilberto Barros (à esq.), uma carta do jogo Yu-Gi-Oh e Jair Bolsonaro. Imagens: reprodução/YouTube/Facebook

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Cultură

O que Gilberto Barros e o "baralho do demônio" nos dizem sobre a era Bolsonaro

Tudo caminhava bem até que alguns garotos começaram a ser proibidos de colecionar Yu-Gi-Oh pelas mães.

Quase toda criança de classe média que viveu o início dos anos 2000 carregava consigo alguns objetos mais ou menos padronizados: uma Beyblade (aquele pião da moda inspirado no desenho da TV) que soltava faísca e um baralho de Yu Gi Oh – que poderia ser original (este, exclusividade dos garotos ricos do bairro) – ou uma versão falsificada que vendia nas bancas de jornal e podia ser comprada com o troco do pão. Tudo isso provavelmente levado para lá e para cá dentro de uma pochete breguíssima.

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Tudo caminhava bem até que alguns garotos começaram a ser proibidos de colecionar Yu-Gi-Oh pelas mães. Um dos meus amigos à época chegou a ser obrigado a queimar todas as suas cartas (e ele tinha várias). Só depois de muito tempo fui descobrir quem foi o responsável por colocar na cabeça das mães que o baralho era uma má influência: o apresentador de TV Gilberto Barros.

Na época, o Leão – como também era conhecido – comandava um programa na TV Bandeirantes chamado Boa Noite Brasil, e usou seu espaço em rede nacional para repercutir acusações de que estes jogos seriam o "baralho do diabo", chegando até mesmo a especular que os cards de Yu-Gi-Oh teriam ligação com a máfia japonesa. Em uma época em que a internet ainda engatinhava e a televisão era o principal meio de informação e entretenimento do brasileiro, as reportagens causaram furor.

Pode parecer inusitado, mas casos como esse – mesmo tendo ocorrido há mais de 15 anos – ajudam a entender o Brasil de Bolsonaro, em especial o fenômeno das notícias falsas e da influência das igrejas evangélicas na política e nos costumes.

Sérgio Amadeu, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor associado da Universidade Federal do ABC (UFABC), afirma que, embora o termo “fake news” tenha ganhado força depois da eleição do republicano Donald Trump nos EUA em 2016, o processo de desvirtuamento da realidade e “deslocamento” de fatos não nasceu da internet – mas sim da mídia tradicional.

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No ano de 2003, quando o acesso à internet ainda não era difundido em massa no Brasil, uma acusação distorcida como a feita por Barros em seu programa de TV atingiu muitas pessoas. Foi o caso do comerciante Guilherme Stoll, de 26 anos. À época um adolescente, ele se lembra de ter faturado diversas cartas de Yu-Gi-Oh quando os pais de seus amigos proibiram os filhos de jogar o RPG.

“Eu estava na quarta serie e era mó febre essa parada. A gente trocava no pátio da escola, nos intervalos, e até na sala, por debaixo da mesa”, conta. “Lembro que um dia a galera chegou comentando sobre esse programa, que tinha falado que o jogo era coisa do satã, e que as mães estavam proibindo os filhos de jogar. Nessa, eu tinha uns amigos em comum que doaram todas as suas cartas para mim.”

Durante a semana em que atacou os card games na TV Bandeirantes, o apresentador Gilberto Barros teve como principais fontes pastores evangélicos, que repercutiram a acusação de que o jogo seria o “baralho do demônio”, e políticos conservadores – uma mistura bastante presente na eleição presidencial de 2018.

O professor Sérgio Amadeu lembra que o maior exemplo da mistura do evangelismo político com a distorção da realidade nas eleições de 2018 foi o chamado “kit gay”, que nasceu com acusações repercutidas por lideranças religiosas e políticas – inclusive a atual Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

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“De 2003 para cá, os evangélicos cresceram no Brasil, e tiveram um peso na arrancada final das eleições de 2018, porque várias lideranças de peso apoiaram o Bolsonaro”, diz Amadeu. Essa influência é ainda maior quando somada à TV Record, comandada pelo bispo Edir Macedo, que declarou apoio ao candidato do PSL. “Tivemos uma maioria evangélica que apoiou um candidato cuja campanha foi baseada em desinformação”, afirma o cientista político.

Apesar dos impactos negativos da internet em relação à produção e distribuição de desinformação, as redes também trazem a possibilidade de desmentir e apontar os erros da mídia de massa – o que ainda não era possível em 2003, quando Barros lançou suas acusações contra o “baralho do demônio” na TV.

À época, o jornalista Odair Braz Júnior trabalhava na Conrad – editora responsável pela publicação da revista Herói, referência no universo nerd de então. Ele era responsável pelo conteúdo de internet da Editora, e recorda que “os fãs ficaram putos”. No entanto, a reação se restringiu a comentários raivosos em fóruns online, insuficiente para rebater a força das acusações lançadas na TV.

Atualmente, são 116 milhões de internautas no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2016. Desses, 92,4% fizeram uso de aplicativos de troca de mensagens, como o WhatsApp – o que explica porque foi este o principal meio de difusão de notícias falsas na eleição de 2018.

Gilberto Barros também falou contra o anime Dragon Ball – que tinha sido, inclusive, transmitido pela própria Rede Bandeirantes. Este, minha mãe tentou me proibir de assistir, mas sem sucesso. Era transmitido em um horário em que ela não estava em casa.

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