Por que a goleada na estreia da Copa foi importante para Putin
Ilustração: Cassio Tisseo

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Por que a goleada na estreia da Copa foi importante para Putin

Numa abertura marcada pela ausência de líderes mundiais, chefe russo conseguiu emplacar dentro e fora dos campos o estilo de vida que aprecia.

É tempo de colocar a Grande Mãe Rússia de novo no centro do picadeiro internacional. É com essa intenção que Vladimir Putin decidiu fazer do país a sede da Copa do Mundo de 2018, e foi com essa pegada que a seleção da casa inaugurou os trabalhos do 21º Mundial de Futebol, com uma sonora goleada por 5 a 0 sobre o fraco time da Arábia Saudita. A cada gol, o presidente russo olhava para o príncipe Mohamed Bin-Salman com cara de emoji e, mesmo sem comemorações efusivas, sentia-se satisfeito por ver que sua ideia, a princípio, está funcionando.

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O fim da Guerra Fria e a repartição da União Soviética em 15 repúblicas foi uma espécie de rebaixamento da Rússia no campeonato de importância global. Enquanto via o nascimento de uma burguesia que se tornava bilionária graças à privatização das antigas empresas estatais, o país perdia relevância nas grandes decisões, ofuscado pela consolidação da União Europeia e pela força monolítica mostrada pelos Estados Unidos.

Ter um presidente como Boris Yeltsin, chegado numa vodca, poderia até render bons memes, mas na época eles mal existiam (no máximo eram espalhados em arquivos de Power Point por correntes de e-mail). Mas então o sujeito fortão, ex-espião da KGB, com cara de vilão de filme do 007, chegou ao cargo de primeiro-ministro. Depois, virou presidente. Desde 2000, Vladimir Putin é o nome do poder na Rússia – quando não foi presidente, entre 2008 e 2012, no mandato de Dmitri Medvedev, era o primeiro-ministro e o cara que mandava de fato. De volta à presidência, em 2012, manobrou e conseguiu ampliar o próprio mandato; em março deste ano, foi reeleito com mais de 75% dos votos. Nesse período, conseguiu que país se tornasse sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochí, em 2014, e da Copa do Mundo de 2018.

O poder simbólico do esporte

Não que seja uma novidade: a Copa do Mundo, praticamente desde sempre, é acompanhada por um simbolismo de autoafirmação do país-sede. É o chamado “soft power”: mostrar força e impor valores por meio de coisas aparentemente inofensivas como o esporte, não quais não se deve misturar política ou “dá ruim”, diria famoso apresentador. Em 1934, Mussolini ameaçou veladamente seu elenco: a taça ou a vida. Em casa, a taça chegou e foi parte da afirmação do regime fascista. Em 1994, os Estados Unidos queriam mostrar ao mundo que estavam prontos para se juntar ao mundo na paixão pelo soccer; em 2006, a Copa serviu para os alemães resgatarem o orgulho nacional, num país em que a proximidade do nazismo sempre inibiu manifestações patrióticas mais efusivas.

Em 1950, o Brasil construiu o Maracanã, maior estádio do mundo até então, com 200 mil lugares, com o objetivo de mostrar para o planeta que estava pronto para ser um país de primeira linha; a Copa de 2014, trazida por Lula junto com a Olimpíada do Rio, deveria demonstrar a ascensão definitiva do país, ilustrada pelo Cristo Redentor que levantava voo na capa da revista liberal The Economist.

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Foi nesse espírito que Putin, um cara que gosta de posar para fotos em que faz exercícios pesados sem camisa no meio da floresta cheia de neve, resolveu usar o esporte para mostrar a força da Rússia. Mesmo sem gostar de futebol (prefere hóquei), o líder russo fez lobby para trazer a Copa numa Fifa que já não existe mais: Sepp Blatter e Michel Platini, lobistas poderosos a favor da vitoriosa campanha russa, hoje estão proibidos de mexer com futebol e atolados em acusações de desvios, propinas, subornos e favorecimentos.

Para completar, o mérito esportivo dos atletas russos, outra arma de soft power muito usada por Putin, começou a ruir sob o peso do doping. Estrelas do esporte russo como a tenista Maria Sharapova e a saltadora Yelena Isinbaeva caíram em exames, seguidas por dezenas de outros atletas de maior e menos gabarito que revelaram ao mundo uma estrutura de doping com patrocínio estatal. Detalhes dessa história estão no filme “Ícaro”, produzido pelo Netflix e que tem no médico Grigory Rodchenkov um dos protagonistas. Rodchenkov era diretor da agência antidoping russa e, ao mesmo tempo, responsável por orientar os atletas a usar substâncias ilegais sem serem pegos.

O presidente rebateu as acusações com reclamações de “russofobia”, mas o fato é que o acumulo de resultados positivos levou à suspensão de dezenas de atletas, a diversas mudanças de resultados olímpicos e fez o Comitê Olímpico Internacional tomar uma medida extrema e inédita: banir o país como um todo das competições olímpicas. Os atletas russos limpos de substâncias ilegais (ou que pelo menos ainda não foram flagrados) competiram neste ano nos Jogos de PyeongChang, na Coreia do Sul, com a bandeira do COI, e ainda por cima proibidos de fazer qualquer referência à pátria no pódio. Ao todo, foram 17 medalhas, sendo duas de ouro.

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A guerra fria está no forno

Ao mesmo tempo em que a reputação esportiva da Rússia se pulverizava, o país retomou seu protagonismo no noticiário internacional nos anos Putin, e quase nunca como o mocinho da história. O presidente se consolidou no poder ao impedir com mão de ferro as manifestações separatistas na Chechênia. Também patrocinou quiproquós territoriais com a Ucrânia, ao ocupar a Crimeia, e com a Geórgia, ao apoiar o movimento separatista na Ossétia do Sul.

O país ainda se tornou mal visto na comunidade internacional pela falta de respeito aos direitos humanos em diversas áreas, como a repressão a dissidentes políticos e a proibição de “propaganda homossexual”, numa nebulosa fronteira que deixa o espaço livre para a criminalização da comunidade LGBT e o avanço da homofobia. No índice de democracia da The Economist, a Rússia tem notas baixíssimas e é considerada, na prática, uma ditadura disfarçada de democracia. Na lista do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), a Rússia está em 49º lugar, bem abaixo dos países desenvolvidos, mas à frente, por exemplo, do Brasil, que é o 79º colocado.

Em março, um novo terremoto marcou as tensas relações da Rússia com o Ocidente: o envenenamento do espião Sergei Skripal, um ex-agente duplo que vive em Londres e havia sido trocado por outros agentes duplos depois de passar um tempo preso em Moscou. O crime foi imediatamente creditado pelo governo britânico a Moscou, causou expulsões mútuas de diplomatas russos e britânicos e fez a primeira-ministra Theresa May sugerir um boicote à Copa do Mundo – senão das seleções, ao menos da classe política. Deu certo: a ausência de líderes mundiais foi uma marca da abertura da Copa, na qual o único convidado de alto gabarito era justamente Bin Salman, herdeiro do reino da Arábia Saudita e que viu sua seleção tomar um “sacode”. Apenas dois chefes de Estado sul-americano estiveram presentes: o boliviano Evo Morales e o paraguaio Mario Abdo Benitez, cujas seleções estão ambas fora da Copa.

Durante seu discurso na abertura, feito diante de um silêncio quase sepulcral no estádio Luzhniki (alguém lembra do coro de vaias e ofensas a Dilma Rousseff em 2014?), Putin fez questão de deixar claro que o país ama o futebol, é hospitaleiro e que durante a Copa não haverá barreiras “de ideologia nem de fé” – deliberadamente deixando de fora as questões de gênero e identidade sexual.

Na Copa, dentro de campo, a seleção russa chega com a obrigação de não dar vexame e pelo menos avançar às oitavas de final – a única seleção eliminada em casa ainda na fase de grupos foi a África do Sul, em 2010. O técnico Stanislav Tchertchesov teve problemas com lesões durante a preparação, perdeu jogadores importantes e enfrenta dificuldades no processo de renovação: uma das provas é o goleiro Akinfeev, que levou alguns frangos na Copa do Brasil, quatro anos atrás, e continua como titular e capitão do time. O sorteio foi favorável, a estreia foi boa e chegar às oitavas de final parece possível. Depois, diante provavelmente de Portugal ou Espanha, uma vitória pode ser mais complicada. Vladimir estará de olho. Mas, por ora, a Copa está do jeito que ele gosta.

Fernando Cesarotti, 40, é jornalista e professor universitário. Assina a coluna Geopolítica das Copas, sobre futebol e política, durante o Mundial da Rússia.

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