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Salvando o Sudão do Sul

Aliança Maldita

Antes de ser empalado por rebeldes em fúria, o líder líbio Muammar Kadafi deu uma força para os rebeldes separatistas do Sudão do Sul.

A VICE foi ao Sudão ver como uma das civilizações mais ricas e avançadas durante os séculos de colonialismo na África transformou-se num país castigado por golpes de Estado, ditaduras e desmandos, mergulhado numa série de conflitos intermináveis após a independência, em 1956. Nesta série de 22 capítulos, Robert Young Pelton e o fotógrafo Tim Freccia mostram de perto o que acontece num dos maiores países do continente africano, rico em petróleo e guerras, rachado ao meio em 2011, e com um futuro incerto pela frente.

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Foto: Tim Freccia

Em setembro de 1983, Riek Machar e seus seguidores descobriram um poderoso aliado: Muammar Kadafi. Nacionalista convicto, o líder líbio apoiou diversos grupos rebeldes na África ao longo de seu governo. No início daquele mesmo ano, o presidente americano Ronald Reagan o havia chamado de “o cachorro louco do Oriente Médio”. Kadafi era, contudo, um cachorro louco que dispunha de bilhões de dólares advindos do petróleo. Até os russos, a quem seu regime agradava, hesitavam em se envolver demais com essa figura peculiar.

Kadafi levou Machar e seu pequeno Congresso Revolucionário do Sudão a Adis Abeba, a fim de elaborar, junto a uma equipe de assessores, uma campanha organizada contra o norte. Com promessas financeiras e apoio moral, a reunião convenceu-o a se unir a John Garang. Esse foi o primeiro passo para a criação do Movimento Popular de Libertação do Sudão, grupo nacionalista de resistência com um braço militar. Apoiava-o um estranho grupo de figuras sombrias: Kadafi, o marxista etíope Mengistu Haile Mariam, representantes de Israel que queriam se desfazer de toneladas de armas confiscadas durante a guerra contra o Egito e diversos investidores privados renegados. O acordo logo os conduziu a um objetivo tácito: uma guerra de todas as tribos do sul contra o regime árabe do Sudão, a fim de interromper e tomar do norte o controle das reservas de petróleo recém-descobertas no centro e no sul.

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Naquele mesmo ano, antes do encontro em Adis Abeba, Garang havia persuadido seu 105º Batalhão, um grupo de soldados essencialmente dinkas baseado em Bor, sob comando do governo sudanês, a realizar um motim contra o norte e organizar uma rebelião com base na Etiópia. Os amotinados adotaram o nome Anyanya II e seguiram em direção ao país, lar dos primeiros combatentes anyanya durante a primeira guerra civil sudanesa. Na Etiópia, a política marxista de Garang agradou a Mengistu, que viu nele um modo de controlar as aspirações nuer à independência no oeste do país, perto de Gambela. Mengistu ofereceu-lhe abrigo e permitiu que lá ele estabelecesse a base de suas tropas.

Equipados com armamento russo e treinados na Etiópia, Garang e seus homens retornaram para lutar em sua terra natal, movendo-se ao leste de da região de Equatória. O conflito avançou do leste para o centro do Sudão, tendo como foco os campos de petróleo em território nuer. Foi então que os rebeldes se deram conta de que, se o sul controlasse esta área, teriam poder de negociação com a capital, Cartum  - e com qualquer um que cobiçasse o ouro negro.

Em 1985, após unirem suas forças, Garang enviou Machar a Gambela para estudar táticas militares avançadas. Ao final de seu treinamento, ele comandou uma tropa de três mil homens, com quem marchou desde Gambela cruzando as terras de Cordofão, no Sudão. Estavam acompanhados da comunidade nuba, tribo metida num conflito contra os Bagga-ra, invasores árabes que haviam se infiltrado na região. Após chegar à região, Machar logo conquistou a confiança dos nuba por causa de interesses mútuos: na esperança de alimentar uma guerra que contivesse o avanço dos rebeldes, Cartum armara os bagga-ra, que agora perseguiam os nuba.

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Enquanto isso, as descobertas de petróleo pela Chevron continuavam a enriquecer o Sudão. A multinacional instalou um complexo não muito longe de Leer, cidade natal de Machar. Em 2 de fevereiro de 1984, um batalhão do Anyanya II atacou a filial da companhia em Yoinyang, matando três funcionários estrangeiros e deixando outros feridos. A Chevron suspendeu suas operações, retomando-as parcialmente um mês depois, tendo o governo sudanês garantido que a área estava segura. Mas ele estava muito errado. Em 1986, Machar tomou o controle das áreas petrolíferas, incluindo Leer, e negociou uma trégua com a milícia bagga-ra, impedindo que a Chevron e Cartum explorassem o petróleo.

Desesperado, o presidente do Sudão, Gaafar Muhammad al Nimeiry, recrutou Adnan Khashoggi, empresário saudita e traficante de armas, para restaurar a exploração petrolífera, então abandonada. Nimeiry ofereceu-lhe uma quantia considerável caso ele criasse uma companhia nacional de petróleo e conseguisse tocar os negócios. Khashoggi era um intermediário famoso nos EUA e na Europa, e, eventualmente, levou o presidente a Roland “Tiny” Rowland, polêmico patrocinador e magnata da mineração germano-britânico. Rowland havia feito vários negócios na África com Khashoggi e era conhecido por cobiçar um lugar à mesa de qualquer grupo emergente, rebelde ou não.

Na época, seu currículo incluía a transformação de uma companhia de tabaco rodesiana, da mineradora London and Rhodesian Mining and Land Company e do jornal The Observer em um império multibilionário com investimentos por toda África. (Isso sem mencionar que foi membro da Juventude Hitlerista.)

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Tiny Rowland estudou em Hampshire, Inglaterra, graças a seu pai. Tornou-se soldado do exército britânico e, ironicamente, passou uma temporada em um campo de prisioneiros de guerra porque havia se ausentado sem permissão para libertar sua mãe, holandesa, e seu pai, alemão, de um campo de prisioneiros britânico.

Ele, que já se referiu a Khadafi como seu “amigão”, se tornou amigo do ditador líbio quando os agentes da CIA Edwin Wilson e Frank Terpil usaram a subsidiária Tradewinds, de Rowland, para fornecer armas e modernizar as forças militares líbias. O magnata apresentou Khadafi a diversos jovens revolucionários africanos que patrocinava: Jomo Kenyatta, Robert Mugabe, Jonas Savimbi e outros. Posteriormente, Rowland também se envolveria com tráfico de armas, golpes de Estado e questões políticas obscuras, incluindo o escândalo do caso Irã-Contras.

Muammar Khadafi, líder político e militar líbio, ajudou a organizar a campanha contra o norte. Keystone/Getty Images

Ninguém podia dizer que Rowland não era pragmático ou sintonizado. Ele sabia que eventualmente o Sudão se veria obrigado a resolver os problemas das regiões produtoras de petróleo, o que exigiria financiamento estrangeiro. Em termos mais modernos, tratava-se de uma verdadeira startup. Por estar envolvido com o negócio desde o início (despejando US$ 20 mil no bolso de um líder rebelde), criou a oportunidade de obter um lucro muito maior mais à frente.

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A pedido de Nimeiry, Rowland tentou convencer John Garang a criar um exército mercenário para proteger o petróleo. O presidente do Sud, inclusive, pediu que o magnata oferecesse a Garang o cargo de vice-presidente caso ele conseguisse dar fim à guerra, mas ele o recusou. Garang e Machar tinham seus próprios planos e o MPLS estava se mobilizando.

Machar e sua esposa, Angelina Teny, eram jovens, inteligentes, eloquentes e tinham uma aura de liderança entre os rebeldes. Ele trazia calma e equilíbrio intelectual ao marxismo radical de Garang. Apesar de suas ideias serem consideradas ocidentalizadas demais por muitos chefes da etnia nuer, eles recorreram à visão estrangeira de uma África necessitando desesperadamente da transição do cenário de guerras tribais existente àquela altura para um sistema mais estável, democrático. Talvez mais importante ainda, a nova geração de sudaneses do sul, de pessoas que tiveram acesso à educação, como Machar e Garang, era uma com quem o Ocidente podia fazer negócios. O último tinha formação em agricultura – sua tese, inclusive, foi sobre o enorme projeto do Canal de Jonglei; o primeiro, um sólido conhecimento em negócios e engenharia. Personificavam, assim, o tipo de líder com quem empresários internacionais queriam trabalhar.

Machar e Teny defenderam a independência do sul em diversos artigos, discursos e reuniões, e logo chamaram a atenção de Rowland. Incitado pelo líder insurgente, o magnata financiou o MPLS com uma quantia supostamente milionária. Ao mesmo tempo, Rowland adorou uma posição neutra e pacificadora, emprestando seu jatinho para que líderes se encontrassem e resolvessem suas diferenças.

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Muitas intrigas giram em torno da ligação de Rowland a grupos rebeldes, a Kadafi e a agências de inteligência americanas e britânicas. Independente da natureza dessas ligações, o fato é que o magnata desempenhou um papel essencial na formação da África moderna. Além de sua participação ativa na criação de grupos rebeldes, suspeita-se que tenha utilizado diversas de suas cerca de 800 companhias para influenciar a política externa de diversos países africanos a favor de governos estrangeiros, de seus acionistas e de seus próprios interesses.

Rowland era o arquétipo do qual o governo do Sudão sabia que precisava: um homem que podia comandar planos estratégicos e campos de batalha, separando os negócios sujos da revolução dos negócios ainda mais sujos de investimentos e exploração. O que não se sabe é se ele trabalhava em nome dos Estados Unidos – como o fez ao oferecer treinamento aos guarda-costas de Kadafi e, depois, durante seu envolvimento no caso Irã-Contras – ou se agia por si mesmo. Rory Nugent, jornalista americano que o conhecia, descreveu sua motivação: “Tiny só queria um lugar em toda mesa de pôquer. Se as apostas ficassem muito altas, desistiria da mão, mas não queria nunca estar distante de uma aposta”.

Não tardou para que as cuidadosas conspirações de Rowland, Kadafi, Khashoggi, Mashar e Garang para tomar o controle de Cartum e da produção de petróleo fossem destruídas em um só golpe. Em abril de 1985, durante visita aos Estados Unidos, Nimeiry foi derrubado por fundamentalistas islâmicos. O vencedor das eleições subsequentes foi o religioso Al Sadiq al Mahdi, bisneto do Mahdi, que anos antes havia derrotado o governador britânico colonialista George Gordon e trazido a lei islâmica e a escravidão de volta ao país. (Hassan al Turabi, cunhado de Sadiq, posteriormente reestabeleceria a lei sharia e o domínio árabe no Sudão).

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Devido às condições políticas deterioradas e à crescente influência da Frente Nacional Islâmica, em 1988 a Chevron decidiu deixar completamente o Sudão. No começo da década de 1990, seus bens foram realocados em uma empresa do ramo do petróleo com sede em Cartum por $23 milhões. A querela norte-sul foi substituída com medidas draconianas. O governo sudanês decidiu realizar uma limpeza étnica nas regiões ricas em petróleo, tendo como alvo a comunidade nuer. Foi então que a Etiópia, principal apoiadora do EPLS/MPLS, decidiu abruptamente interromper o financiamento da revolta. Em 1989, o Sudão também perdeu a generosidade da Arábia Saudita, que, instruída por assessores americanos e britânicos, treinava jihadistas para a guerra contra os soviéticos no Afeganistão. A falta de apoio minou a relação entre Garang e Machar, que, na verdade, nunca havia sido boa – o primeiro era a favor de uma federação com base em Cartum, enquanto o segundo queria a independência. As cismas entre os diversos grupos se intensificaram, resultando em uma mudança radical para os rebeldes do sul.

Nada podia salvar o Sudão.

Em 30 de junho de 1989, outro golpe de Estado foi perpetrado com o apoio da Frente Nacional Islâmica, dessa vez liderado pelo marechal Omar al Bashir e Turabi, que derrubou o ineficiente  governo de Sadiq. Bashir logo se viu pressionado por sanções internacionais a chegar a um acordo com o sul, e ele o fez da maneira mais fidedigna possível. Sob a bandeira do islã, seu exército recrutou mais de 150 mil jovens para uma nova milícia de autodefesa islâmica.

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Uma miscelânea de grupos rebeldes controlou a maior parte do sul até 1991, com a queda da União Soviética e a resultante destituição de Mengistu, que apoiava a causa rebelde, na Etiópia.

Em apenas um mês, os recursos dos rebeldes acabaram. Em junho, o norte tomou o controle das áreas produtoras de petróleo do sul. Cartum estava ganhando.

Roland “Tiny” Rowland, patrocinador e magnata da mineração germano-britânico. Frank Tewkesbury/Evening Standard/Hulton Archive/Getty Images

Foi durante essa época que um jovem saudita alto e severo começou a ir até Cartum em seu jato particular. As primeiras aparições do filho mimado de um magnata da construção se deram por volta de 1989. Osama bin Laden dizia ter sido responsável pela expulsão dos soviéticos do Afeganistão. Com o Sudão sob novo comando, foi convidado a Cartum, assim como diversos outros grupos islâmicos violentos.

Na sequência de seu sucesso com os mujahidins do Afeganistão, Bin Laden foi renegado pelos sauditas. Em vez de aceitarem sua proposta de apoio por meio de sua rede de combatentes, eles se aliaram a forças americanas para expulsar Saddam Hussein do Kuwait durante a guerra do Golfo. Simpático ao novo governo islâmico e interessado pelo fato de nada além de caos e guerra estar acontecendo no Sudão, Osama bin Laden decidiu investir no país.

Em dezembro de 1991, Bin Laden havia transferido família, assessores e equipe de segurança do Paquistão para uma casa cor-de-rosa de três andares na rua Al Mashtal, em Al Riyadh, um bairro exclusivo de Cartum. Embora sua terra natal não mais o quisesse, Osama bin Laden era exatamente o que esse novo governo procurava.

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As estratégias que o esguio saudita desenvolveu no Afeganistão eram frugais, mas eficientes: consistiam no recrutamento em massa e a baixo custo de homens sem treinamento, porém dispostos a lutar por uma ideologia. O fato de ser filho de um magnata saudita implicava que bin Laden detinha valiosos conhecimentos técnicos e de negócios, algo que interessava as lideranças do Sudão. Ele enxergou em seus anfitriões, ricos e teologicamente afins, um grande potencial.

Por meio de uma série de doações e subornos políticos, os sudaneses forneceram a Bin Laden passaportes e passagem livre para o fluxo de combatentes islâmicos que ele havia começado a importar e treinar em cerca de 20 campos próximos a Cartum. Ele também iniciou a construção de uma estrada ligando Cartum a Porto Sudão. As coisas estavam finalmente andando. A empresa de investimento do saudita empregou 400 sudaneses, sua construtora empregou outros 600 e suas empresas logo incluiriam um ramo comercial, um banco e projetos agrícolas. Estima-se que bin Laden tenha investido entre US$ 20 e US$ 50 milhões em infraestrutura. Turabi, por sua vez, fomentou uma hibridização entre a Al-Qaeda, o Hezbollah, Abu Nidal e Carlos, o Chacal, contribuindo para que o Sudão estabelecesse a sua reputação como a capital do terror.

Bin Laden, após importar seus mujahidins do Paquistão e do Afeganistão, enviou-os ao sul para lutar contra as etnias nuer e dinka. Quando eu estive nos campos de batalha com combatentes nuer em 1996, o local ainda estava coberto de esqueletos esbranquiçados, decorados com chapéus típicos de Candaar, escovas de dente e exemplares do Corão. Esse conceito de utilização de uma turba suicida, armada e predominantemente sem treinamento era algo que incomodava os dinka e nuer, pois com isso não havia discurso político: apenas um enorme derramamento de sangue.

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A relação entre Garang e Machar já estava azedando quando bin Laden chegou. O embargo do petróleo por parte de Cartum e o desaparecimento de dinheiro soviético, vindo de simpatizantes como a Etiópia, significavam que, se não encontrassem outra maneira de financiá-la, a revolução logo chegaria a um fim. O socialismo manifesto de Garang soou vazio sem o sucesso militar para respaldá-lo. Machar, tomando uma decisão que refletiria em suas ações duas décadas mais tarde, decidiu agir por contra própria.

Não muito antes de Bin Laden se tornar residente do Sudão, Machar cometeu o que talvez tenha sido um dos maiores erros de sua carreira: iniciou um relacionamento com Emma McCune, uma estudante de artes britânica e fumante compulsiva que havia sido inspirada pela repentina moda que a salvação da África havia se tornado. McCune, que assistiu aos vídeos e shows do Live Aid em meados da década de 80, queria desesperadamente se engajar em trabalhos de caridade. Enquanto trabalhava para uma ONG, chegou até Machar em uma conferência em Nairóbi, em 1990, com a intenção de repreendê-lo pelo uso dos campos de refugiados no recrutamento das crianças-soldado. Em vez disso, de alguma maneira, passaram a noite juntos e se tornaram inseparáveis.

E foi assim que, enquanto Machar se apaixonava por sua namorada branca e exótica, se distanciava de Garang. Na época, ele insistia para que o MPLS se unisse a Cartum, permitindo a conversão do sul em uma região autônoma, independente. Garang não lutaria numa guerra para acabar recebendo ordens de árabes. O problema consistia em uma dinâmica que, outrora, era a fonte do poder da dupla: Garang era militar e Machar, acadêmico. Com os gastos de uma guerra sem financiamento, ambos os lados afundariam em uma matança de etnias, e a fome, que McCune tanto queria combater, logo seria usada por ela como uma terrível arma nessa guerra mortífera.

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Em 28 de agosto de 1991, Machar e outros dois comandantes nuer publicaram um panfleto contra Garang. O líder organizou um golpe utilizando-se de palavras, em vez de armas.

A Declaração de Nasir, como ficou conhecida, acusava Garang de ditatorialismo e conclamava parte do Sudão do Sul à autodeterminação, sentimento em ressonância com líderes nuer, que se sentiam marginalizados pela equipe essencialmente dinka de Garang. O panfleto em questão foi escrito de tal maneira que contrastava com o habitual estilo suave de Machar, e logo começaram a circular rumores de que havia sido redigido em parte por uma jovem mulher branca que vivia com Machar enquanto planejava tomar o poder em Nasir: McCune. Garang, acreditando que ele não cumpriria sua ameaça de golpe, cometeu o erro tático de ignorar em grande medida a postura política dos nuer. No entanto, Salva Kiir, segundo na linha de comando e sucessor de Garang, se mostrou cauteloso e nunca esqueceu a traição e suas declarações ameaçadoras.

Não conseguindo muita atenção da população local ou da mídia internacional com seu manifesto, Machar e dois de seus leais comandantes se deram conta de que precisavam de um impulso nas relações públicas. Foi então que entraram em contato com a rede britânica BBC de seu quartel-general em Nasir para declarar que haviam tomado o controle do EPLS. Isso foi novidade para Garang, que se viu obrigado a levar a sério seu antigo aliado e sua facção recém-formada, o EPLS-Nasir.

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Alguns sul-sudaneses ainda culpam a influência de McCune sobre Machar pela separação repentina e pelos eventos sangrentos que se seguiram, como o Massacre de Bor, que, de acordo com a Anistia Internacional, resultou na morte de cerca de dois mil dinkas pelas mãos dos nuers de Machar. Outros culpam sua decisão de eliminar os comandantes nuer do SPLA, através de assassinato. McCune parecia tê-lo enfeitiçado de tal maneira que os seguidores de Garang começaram a chamar a separação e a violência dela resultante de “a Guerra de Emma”.

Foto: Tim Freccia

Foi através de um documentário transmitido pela rede britânica ITV Yorkshire que o público conheceu a jovem McCune, que aparecia passeando pela savana com um enorme chapéu e elegantes roupas ocidentais. Em meio às sombras se espreitava Machar, “o senhor da guerra”, com seus olhos e dentes brancos brilhando sob uma boina vermelha. O que outrora havia sido uma feroz causa rebelde estava reduzido a um bizarro romance de fantasia. Enquanto isso, a pior catástrofe humanitária da história do Sudão estava para acontecer: a fome, de proporções ainda maiores que as crises ocorridas na Somália e na Etiópia.

No segundo semestre de 1992, o Sudão foi paralisado pela guerra, limpeza étnica e transferência populacional em massa. O plantio não havia sido realizado no começo do ano, e centenas de milhares de pessoas sobreviviam graças e exclusivamente a doações vindas de organizações de caridade. No total, 8 milhões de sudaneses seriam afetados pela seca e mais de 150.000 morreriam de fome. Isso é o que se presume – ninguém sabe com precisão quantas pessoas morreram no país.

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McCune, que tinha vindo à África motivada pela canção do Band Aid (que, por sua vez, foi inspirada em uma reportagem da BBC sobre a Etiópia) e pelo interesse social na salvação do continente, encontrou uma maneira de conseguir atenção na televisão.

Na época estava na moda a expressão “efeito CNN”, que consistia na ideia de que uma simples história, se transmitida repetidamente na televisão, incitaria o governo a agir, assim como o documentário sobre a Etiópia que inspirou Bob Geldof quase uma década antes. A cobertura na Somália havia sido eficaz, com os Estados Unidos ameaçando enviar tropas a Mogadíscio para confrontar senhores de guerra e levar ajuda às áreas mais remotas e desventuradas. McCune armou um plano quando soube que a CNN estava enviando um correspondente a Waat para cobrir o conflito que ela havia ajudado a provocar: diria às pessoas enfermas e subnutridas do lugar que o avião trazia comida. Ela teria seu momento na mídia, ou, pelo menos, assim ela pensou. Apesar de suas ações serem a epítome da hipocrisia, dados os motivos que a fizeram ir até a África, em primeiro lugar.

Por fim, apesar de iludir cruelmente os locais, a reportagem da CNN teve pouco impacto.

No começo de 1993, as tropas de Garang partiram com a missão de caçar e matar Machar, acreditando que sua facção, o EPLS-Nasir, estaria desfeita em sua ausência. Ainda sofrendo pelo massacre dos dinka comandado pelos nuer de Machar em Bor, em 1991, as forças dinka de Garang assassinaram, queimaram e saquearam os nuer indiscriminadamente.

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Rory Nugent foi um jornalista que decidiu entrar no sul do Sudão nessa época, depois de ver uma brevíssima nota no jornal The New York Times, no final da página 13: “85.000 mortos nos últimos dois meses no sul do Sudão.” Nugent ficou perplexo: “A ONU podia calcular com precisão as mortes na Somália”, disse, “mas não tinha ideia do que estava acontecendo no Sudão.”

Durante o jantar, em Nova York, um amigo sugeriu que procurasse por Emma McCune. Sem número e sem endereço.

Nugent localizou-a em Nairóbi, e foi com surpresa que descobriu que McCune era a secretária de imprensa oficial da facção. “Ninguém havia escrito sobre ela”, ele me conta. “Aqui está esta filha de colonizadores brancos, que se casa com um senhor da guerra bem dotado e diz: ‘O sexo é fantástico’.” Todavia, McCune pediu-lhe que não escrevesse sobre ela. O jornalista concordou. “Ela não fazia parte da história. Isso foi muito fácil.”

Nugent disse que ela era “apaixonada pela causa. Meio romântica, meio pragmática. Era uma garota de escola de freiras apanhada no fervor dos tempos.” E foi impedida de embarcar em voos da ONU porque foi pega contrabandeando armas.

 “Quando fui a Nairóbi, descobri que os jornalistas não iam ao Sudão porque tinham que pagar pelo avião”, relata. O jornalista convenceu outros seis colegas a fretar um avião por $2.000 e deixou uma caução de $500. “Disseram-nos que o avião havia colidido. Tiveram que deixá-lo no sul do Sudão.” Nugent descobriu que o avião (um Cessna Caravan) estava sendo entregue a um novo dono e o piloto estava ficando com o dinheiro.

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No Sudão, Nugent encontrou o apocalipse. “Era um cenário totalmente fodido. Esqueça uniformes. Metade do exército não tinha nem roupas. Eram nuer desnudos, com paus gigantes, vestindo apenas bandoleiras de munição. Eu pensei: ‘Caralho!’.”

Ao chegar ao lugar, o chefe de segurança da ONU disse aos jornalistas para irem embora. Nugent se recusou e permaneceu por seis semanas. O momento foi perfeito: no dia anterior, Garang havia ordenado que Kiir atacasse Machar.

Na época, disse Nugent, Garang estava bebendo uma garrafa de uísque por dia. O líder dinka havia se tornado paranoico e isolado. Os nuer organizaram uma conferência em Kongor para convencer os dinka a abandonar Kiir e Garang e se unir a Machar. Eles declararam como oficial a facção deste do EPLS.

Enfurecido pela atenção que Machar estava recebendo da mídia, Garang colocou um preço no “jornalista americano”. “Eu valia cerca de US$ 25. Machar valia dez vezes mais”, conta Nugent.

Soldados do EPLS posam com artilharia em 13 de novembro de 1993, no sul do Sudão. Foto: Scott Peterson/Liaison

Em meados de 1993, McCune estava grávida de Machar, e o perigo se tornou grande demais. Ela foi aconselhada a se mudar para Nairóbi, para uma casa que Rowland havia alugado. Então, em 24 de novembro, aos 29 anos de idade, foi atingida em seu Land Rover por um ônibus matatu em alta velocidade. McCune e seu bebê, que ainda estava por nascer, morreram no hospital, e seu corpo foi enterrado em Leer, povoado natal de Machar.

Foi durante esse período sombrio da história do sul do Sudão que Machar utilizou-se do violento grupo nuer conhecido como Jiech-Mabor ou Exército Branco. Desordenado e, em grande medida, descentralizado, o Exército Branco – assim batizado devido à prática de seus membros espalharem cinzas brancas em seus corpos para repelir insetos – foi formado mais ou menos em 1991 com o suposto propósito de combater o roubo de gado por parte dos dinka e murlee. Machar, no entanto, usou o Exército Branco para penetrar em áreas controladas pela etnia dinka e matar indiscriminadamente mulheres, crianças, velhos e enfermos.

As promessas vazias de democracia e direitos humanos vindas de Machar foram invalidadas pelo rastro de cadáveres que ele havia deixado para apodrecer ao sol. Assim como Osama bin Laden, sua estratégia consistia em manipular grandes grupos de voluntários armados e sem instrução para lutar em uma guerra sem causa, exceto a sua. Também como bin Laden, foi explorando os temores  e crenças religiosas da população que o líder conseguiu dominá-los.

Feito o trabalho sujo, o Exército Branco desapareceu. Repudiados por Machar e seus simpatizantes, foram acusados de ser uma tropa independente e comandada por civis completamente desvinculada do mais bem-organizado EPLS-Nasir. Enquanto isso, Machar supostamente negociava com Cartum a divisão das futuras receitas de petróleo em troca de seu controle indiscutível da região.

A mando do governo de Cartum, Rowland voltou à cena no fim do ano, numa tentativa de negociação de paz entre Garang e Machar. O magnata chegou a declarar publicamente sua adesão de longa data ao EPLS. Viajou em missões diplomáticas por sua própria conta a Teerã, Londres, Nairóbi, Cartum, sul do Sudão, Nigéria e Líbia, fazendo o possível para conseguir que todas as partes concordassem em sustentar a paz na região. Por fim, as coisas ficaram tão ruins que os Estados Unidos, no momento totalmente envolvidos e sobrecarregados com sua missão na Somália, convidaram Machar para ir até Atlanta, mas não conseguiram chegar a um acordo.

Machar estava perdendo. Kiir continuava a empurrá-lo até que ele ficasse encurralado contra a fronteira etíope em Akobo. “Foi quando as coisas mudaram”, relatou Nugent. “No final de abril de 2013, chegaram aviões e suprimentos. Começaram a chegar caminhões de Malakal enviados de Cartum.”

Sem dinheiro e sem opções, Machar se viu obrigado a se render a Garang ou se aliar a Cartum. A segunda guerra civil sudanesa havia se prolongado por dez anos. Ele havia perdido Garang, McCune, seu filho, a moral e qualquer controle sobre seu país. Até os etíopes enviaram uma brigada para evitar que rebeldes de Machar cruzassem a fronteira. Dois milhões de sudaneses haviam morrido e havia pouca esperança para o futuro. Encurralado, em Akobo, Machar chegou a um acordo secreto com Cartum para conseguir dinheiro, armas e treinamento para sua facção nuer. Em questão de dias, suprimentos começaram a fluir da base do exército sudanês em Malakal.

Para os ocidentais, os eventos ocorridos no sul do Sudão foram ofuscados pela queda do helicóptero Falcão Negro, em 1993, na Somália. A região, no entanto, forneceu algumas das imagens mais brutalmente devastadoras da fome e do horror jamais registradas. Em março daquele ano, o fotógrafo africano Kevin Carter capturou a imagem talvez mais icônica da fome da história. Ele e um grupo de fotógrafos chegaram ao sul do Sudão em um avião de ajuda humanitária da ONU que lançava comida às famílias famintas. Aterrissaram em Ayod, Jonglei, e tiveram 30 minutos para fotografar o lugar: o tempo que demorava para que a comida fosse entregue. Foi nesse momento que Carter fotografou uma cena que seria impressa em diversas publicações mundo afora: um menino esquelético caído de bruços enquanto, no fundo, um urubu está à espreita.

Profundamente atormentado por sua estada no sul do Sudão, Carter cometeu suicídio em julho de 1994, três meses após ter sido premiado com o Prêmio Pulitzer. Não houve show, canção ou retribuição pelos estimadamente 300.000 civis que haviam morrido aquele ano no sul do Sudão. Havia apenas essa foto e outras como ela.

Em trecho de sua carta de suicídio, o fotógrafo escreveu: “Eu sinto muito, muito, mesmo. A dor da vida supera a alegria a ponto de a alegria não existir… deprimido… Estou atormentado pelas vívidas lembranças dos assassinatos e cadáveres e ódio e dor… de crianças famintas ou feridas, de loucos dispostos a disparar, frequentemente a polícia, de assassinos.”

Nugent se lembra dessa época: “A guerra foi brutal. Eu vi, pessoalmente, 20 mil pessoas morrerem. Garang atacou a base da ONU em Ayot, queimou-a por completo… refugiados nuer gritavam lá dentro. O cheiro de 3.500 corpos queimando é uma coisa que gruda em você.”

Eu pensei: isso é o horror.

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Tradução: Flavio Taam