Homem carrega flores na cabeça
Foto: Tatiana Azeviche/Setur via Flickr

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Entrevista

Por que é importante ensinar conteúdo afro-brasileiro em sala de aula

Socióloga fala sobre o papel dos pais e dos professores para que a educação antirracista comece na escola.

Volta e meia é possível ver episódios em que pais e setores sociais conservadores lamentando porque acham um absurdo os filhos aprenderem o básico sobre cultura e história afro-brasileiras. Parece ser um capítulo de um desses livros sobre futuro distópico, mas o lance é real. Em junho deste ano, uma professora foi denunciada por ter mostrado para os alunos do 6º ano o filme Besouro, que conta a história de um capoeirista nos anos 1920, no qual elementos da religião afro-brasileira foram abordados.

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Não está contente? Tome este suco de chorume made in Brazil: em março deste ano, pais de alunos do 3º ano do Sesi, em Volta Redonda (RJ), tentaram boicotar a obra Omo-Oba - Histórias de Princesas, pois não curtiram muito ver os filhos terem contato com, bem, cultura africana. Para completar, os feras do Escola Sem Partido e afins, que veem doutrinação em tudo o que não gostam, são adeptos da linha de que cidadão de bem deve estar livre do “marxismo cultural” e devem ter contato com coisas que não atentem contra Deus – mas existir uma faculdade do partido da Igreja Universal está de boas.

Contudo, falar sobre cultura afro-brasileira em sala de aula é lei, não opção: a Lei 10.639, de 2003, estabelece a obrigatoriedade do ensino de cultura afro-brasileira e africana nas escolas. Ainda, a Lei 11.645, de 2008, aumenta o guarda-chuva para o ensino de história e cultura indígena. Pois é, cultura não é apenas o que rola na Europa ou poder comprar armas nos EUA para dar uns tiros.

Em entrevista à VICE, Edilza Correia Sotero, mestre em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo) e doutora em sociologia pela mesma instituição, falou a respeito da importância do ensino de cultura e história afro-brasileira – e indígena como consequência – para a formação de uma sociedade mais plural, e como essa já era uma demanda antiga do movimento negro, quais são os desafios estruturais.

VICE: Como a Lei 10.639/03 foi fundamental para a instituição do ensino de história e cultura africana nas escolas?
Edilza Correia Sotero: Deve-se pensar que o conteúdo da lei, sobre o que é colocado como obrigatório, foi construído, em especial no âmbito do movimento negro, desde pelo menos a década de 1980. Pudemos ver, por exemplo, a atuação de Abdias do Nascimento durante os mandatos dele como senador, em que propôs leis muito parecidas com a que passou, inclusive mais avançadas; e as atuações de Benedita da Silva e outros deputados e senadores, especialmente negros. Já havia práticas que conhecemos hoje como integrantes da Lei 10.639 sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira, especialmente engendrada por organizações e lideranças negras, que formavam professores, em particular os que participavam de movimentos negros, engajados em introduzir conteúdos e perspectivas afro-brasileiras e africanas em sala de aula.

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O que muda é a obrigatoriedade do ensino, o que nos garante pensarmos no currículo no que diz respeito à diversidade, multiculturalidade e às diferentes contribuições na formação da sociedade brasileira e de estudantes, assim como ao se pensar na escola. E é isso o que muda drasticamente, desde 2003. Estamos falando de 15 anos: trata-se de algo muito amplo, mas ainda lento, garantindo mudança na LDB [Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional].

Trata-se de uma legislação que garante entrada na LDB, de 1996, e se torna um dos pilares da educação enquanto lei. A prática deve ser discutida bastante, pois é necessário haver mudanças na formação inicial de professores para eles conseguirem introduzir perspectivas não apenas em termos de conteúdo, pois essa é uma questão que envolve sensibilidade e olhar crítico para entender que a sociedade brasileira nunca foi homogênea em termos culturais e raciais.

"A sociedade brasileira nunca foi homogênea em termos culturais e raciais"

Portanto, é necessário introduzi-la sob perspectivas diferentes na formação, ao se pensar com sensibilidade e olhar crítico sobre o que pode ser positivo na introdução de história e cultura afro-brasileira na escola e a respeito dos conteúdos necessários para se pensar em currículo que se aproxime da história diversa como é a do povo brasileiro. Isso é necessário para pensar que se trata de algo positivo apenas para a comunidade negra ou para a promoção de autoestima apenas da criança negra, mas sim para toda a sociedade ver o quão diversa é.

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No caso, é uma queda do paradigma eurocêntrico, que norteia o sistema educacional?
Trata-se de um paradigma eurocêntrico baseado na ideia de que a contribuição válida para a produção de conhecimento e de comportamentos aceitáveis no ambiente escolar têm base eurocêntrica. Isso é fruto da crença de que a Europa é o centro da civilização e de que as contribuições indígenas e negras foram ínfimas na base cultural, o que é reproduzido na base escolar.

Isto é causado pela ignorância de quem desconhece as histórias africanas e indígenas, e a história diversa do mundo, o que é refletido na lógica de ignorar isso no currículo. Deve-se pensar em como desconhecer a história, não apenas como disciplina, tem impacto em diferentes áreas do conhecimento, como física, matemática, língua portuguesa, arte, enfim. O que aparece no currículo escolar… não se compreende a diversidade do que foi produzido ao longo da história da humanidade. Não se trata de algo apenas para a disciplina de história, como por algum tempo foi uma dúvida.

Hoje há compreensão de que a lei existe para ser introduzida no currículo escolar, pensando sob a perspectiva da história da humanidade e sobre o que se construiu nas diferentes áreas do conhecimento. Mas é possível pensar os conteúdos e a Lei 10.639 impactando o currículo de diferentes áreas tanto para elencar contribuições de pessoas não brancas – negras ou de diferentes povos – na construção desses campos do conhecimento, quanto para pensar que há outras perspectivas além da apresentada na escola, ou seja, outra forma de pensar que não seja a forma como a gente aprende na escola, e que também são válidas.

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É um pouco disso que consiste em um grande debate sobre a lei 10.639. Mas, indo além, é necessário pensar em termos da construção do respeito às diferenças de educação mais justa e igual, que embasará no cumprimento da lei da escola.

"A educação antirracista dá margem à percepção de que o conhecimento não é prisioneiro de um corpo branco"

A educação antirracista dá margem à percepção de que o conhecimento não é prisioneiro de um corpo branco ou de um corpo específico, pois é parte da experiência humana. Portanto, precisamos dar margem a pessoa em processo de escolarização ver que o conhecimento é parte da experiência humana e que há diferentes formas de conhecimento e que existem diferentes experiências construídas a partir de diferentes culturas desenvolvidas na sociedade. Essas culturas estão em constante transformação e é necessário aprender tais mudanças no espaço escolar.

Dentro desse cenário, como a formação e a sensibilização de professores são necessárias e estratégicas para o ensino sobre cultura afro-brasileira ser bem-sucedido na escola?
A Lei 10.639/03 foi modificada em 2008 e passou a ser a Lei 11.645, que também introduz a cultura e a história indígena. Esse é um grande desafio, pois estamos falando também de cultura e história indígena sob a perspectiva da diversidade. A diversidade não é apenas uma área ou outra, ou o que é eleito como estranho: isso tudo é a base da existência de uma sociedade multirracial, multiétnica e multicultural, como é a sociedade brasileira.

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A formação de professores é um desafio, pois para a lei estar de fato introduzida no espaço escolar, é necessário haver mudança de postura na cultura organizacional em vários níveis na gestão da escola, quanto ao planejamento escolar, sobre o que se pensa ser a educação. Isso vale também para o cotidiano escolar e à formação do professor, no que diz respeito à preparação dele para poder atuar em sala de aula. Há, nesse contexto, diferenças entre as formações inicial, que abrange a graduação, e a continuada, que complementa possíveis déficits que não foram explorados durante a graduação.

Por algum tempo, especialmente quando a lei é instituída, compreende-se a educação para relações étnico-raciais como algo próprio de formação continuada, pois tinham muitos professores que não haviam visto quase nada sobre esses conteúdos durante a formação inicial. Isso acontecia, na maioria das vezes, dentro da lógica do capacitismo, que consiste capacitar o professor para atuar em sala de aula, o que é muito criticado se pensarmos na formação de forma integrada e articulada ao saber instituído no ambiente da formação.

Contudo, ainda há um problema de formação inicial, e a gente vê, mais de uma década e meia após a instituição da Lei 10.639/03, muitos currículos não introduzirem tais debates e temas em qualquer nível de licenciatura, seja nos cursos de pedagogia, com pessoas formadas para atuar na educação infantil, como os cursos de educação em geral, que trabalham com pessoas em formação para atuarem em toda a educação básica.

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"Professores alegam que não conseguem falar sobre tais temas em sala de aula por não terem formação adequada"

Pesquisas e investigações, que não estão colocadas em âmbito de pesquisa acadêmica, apontam para a baixa introdução destas questões ao longo da formação dos professores. Tanto que foi instituída, em 2015, a resolução nº 2, que abrange os professores em formação e em atuação, no que diz respeito à formação para relações étnico-raciais, que incluem gênero, diversidade religiosa e outros conteúdos que eram necessários. Isso obrigou haver reformulação curricular de muitos cursos, pois muitos não haviam introduzido-os como disciplina e correspondente curricular.

Trata-se de um desafio, pois os professores alegam que não conseguem falar sobre tais temas em sala de aula por não terem formação adequada. Ainda, ao levar em consideração os materiais didáticos que a escola tem como base, por diversas vezes é uma tarefa docente encontrar caminhos e espaços para pensar em outras perspectivas sobre o ensino das relações étnico-raciais – uma educação antirracista, que busca pensar em sociedade mais justa e igual, com menos produção sistemática de perspectivas racistas.

Isto é necessário para o professor estar apto a atuar em situações de racismo, para poder não silenciar os alunos e para pensar na formação deles. Sem haver formação prévia é muito difícil o professor conseguir fazê-lo. Isso pode ser às vezes possível, pois é importante um professor pesquisar para encontrar soluções para o ensino. Mas, ao mesmo tempo, não é possível colocar sobre ele o peso do cumprimento da legislação. É necessário haver engajamento da gestão da escola e da educação em termos de poder público na formação de professores e na produção e reprodução de materiais para uso em sala de aula.

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"É importante um professor pesquisar para encontrar soluções para o ensino. Mas, ao mesmo tempo, não é possível colocar sobre ele o peso do cumprimento da legislação"

Um ponto que sempre vem à tona é como a sociedade civil lida com o ensino de cultura e história afro-brasileira. Volta e meia há episódios em que pais tentaram boicotar obras sobre cultura afro-brasileira. Como o racismo estrutural influencia isso?
O racismo estrutural opera em diferentes esferas no espaço da escola: há silenciamento sobre em episódios de discriminação ocorridos no cotidiano escolar, em que as pessoas não se sentem preparadas para atuar e preferem o silenciamento. Essa é uma esfera recorrente que faz parte das lembranças de crianças negras no ambiente escolar.

Isto está presente também quando vemos poucos docentes negros no espaço escolar e o estranhamento do corpo negro como um corpo que pode ensinar. Isso é constante na formação, especialmente quandos os níveis de escolarização aumentam: as presenças de negros nos ensinos médio e superior é vista como algo estranho. Idem quando pensamos em currículo, em relação ao lugar no qual a cultura está, e ao pensarmos em religião e liberdade religiosa, quanto ao que as pessoas aceitam sob a perspectiva da tolerância ou intolerância.

Outro aspecto a ser citado diz respeito à face moderna da escolarização, sobre a relação próxima da escola com a família, que tenta influenciar no espaço escolar e sobre o que deve ou não fazer parte de lá, e em como a escola olha para a família como um espaço de possível intervenção. Esse é um conjunto do que está colocado na escola sobre os desafios para o enfrentamento do racismo.

Há resistência, sim. Mas, como vencê-la se pensarmos em episódios como o que houve no Rio de Janeiro e em outros casos cotidianos de crianças e famílias se negando a cumprir a fazer atividades propostas nas escolas, pois entendem que isso interfere em religião? É necessário trabalhar no espaço escolar sob a perspectiva da informação, e a formação da comunidade escolar é tarefa da escola. Não digo que a escola resolverá o problema, pois se trata de uma questão proposta para pensarmos sobre o que é cultura afro-brasileira e como ela é pensada e percebida. A mesma coisa vale para como as diferenças de percepção de culturas de outras matrizes geográficas, como as europeias, e a maneira como isso é assimilado no ambiente escolar e no espaço público.

A recusa ao livro que retrata orixás e símbolos de cultura africana diz respeito a pensar experiências culturais como válidas e que precisam ser respeitadas. O debate precisa ser muito mais amplo e, obviamente, atuar nesses eventos só será possível com mudança de perspectiva do que são as culturas africana, afro-brasileira e indígena, e o quanto o desrespeito à cultura é algo que vai contra a perspectiva do direito aos povos de existir, aspecto mais amplo para se pensar em direitos humanos.

Quão nocivas são iniciativas como o Escola Sem Partido em termos de diversidade e para o cumprimento da lei?
É difícil falar de forma muito genérica. Pensamos em um campo que entrou na perspectiva da política. Há legisladores que pretendem seguir com esta proposta e fazer as adaptações sob as suas perspectivas sociais, e há o movimento social, em âmbito nacional, que tem suas suas filiais. O desafio é pensar o que está sendo proposto. O que é ideologia no espaço da escola? Como isso é construído? É necessário desafiar tais ideias: o que é colocado enquanto doutrinação? Como se produz isso? A base da educação e da escolarização deve ser o respeito às diferenças. Como isso pode ser construído? O que guia a nossa sociedade, que deve, inclusive segundo a Constituição, reduzir desigualdades, respeitar diferenças, não levando em consideração o credo, religião, gênero e raça.

É necessário haver debate a respeito e, mais do que isso, ser terminantemente contra ideias e propostas para redução ou marginalizar povos com base apenas em perspectivas de grupos, ou com base religiosa. É pensar a sociedade e o respeito à diversidade, que é algo posto na legislação, mas é publicamente advogado em diversos setores da sociedade. Como a gente pode transformar isso em ação? O desafio é cotidiano no espaço escolar. A escola está formando pessoas diariamente, não só nos estudos, mas nas atitudes. Isso tem impacto tão grande quanto o conteúdo passado para formação.

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