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Por que os debates presidenciais dos EUA foram tão escrotos

No último embate entre Trump e Clinton antes da eleição ficou ainda mais evidente a atual divisão ideológica entre 300 milhões de norte-americanos.

Espectadores assistem ao debate num bar em Manhattan. (Foto por KENA BETANCUR/AFP/Getty Images).

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US.

O que a corrida presidencial norte-americana tem mostrado é que não existem dois Estados Unidos. Nem um Estados Unidos só. São 318 milhões de Estados Unidos, uma dentro da cabeça de cada norte-americano, e é incrível e assustador descobrir como cada um desses Estados Unidos pode ser diferente. Eles têm aparecido nas redes sociais, em comícios, em protestos e contraprotestos desde o começo do ciclo eleitoral, um vasto mar de Estados Unidos espumando, gritando e cobrindo o chão de vômito.

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O trabalho dos candidatos à presidência é descrever o atual Estados Unidos — o país físico, os shoppings, linhas de força e pontes — de um jeito que se encaixe, mais ou menos, com o país pessoal de um número suficiente de eleitores. Você sente que aquele cara ou aquela mulher entende você, que ele/a também odeia impostos ou que protege os direitos das minorias, aí você vai lá comprar aquelas plaquinhas de jardim "VOTE EM".

O problema com o debate final à presidência na noite da última quarta (19) — e em todo esse embate entre Clinton e Trump — é que os países que eles descrevem são impossíveis de reconciliar. A América de Trump está perdendo para o Estado Islâmico, desmoronando economicamente, tem uma força militar sucateada, líderes pobres e talvez até uma eleição fraudada. A oponente dele mente, suas obras de caridade são um escândalo. Mas na América de Clinton e sua obra de caridade faz um trabalho maravilhoso com portadores do vírus HIV. As coisas estão melhorando para os americanos, o Estado Islâmico está gradualmente sendo controlado, o terrorista mais famoso dos EUA levou um tiro de soldados de elite enquanto ela assistia a operação dentro de uma sala de guerra.

O que as pessoas querem dizer quando falam que esses debates são péssimos é que eles não são realmente debates. Debates envolvem argumentos, e você não pode argumentar sem um conjunto padrão de fatos para basear suas discordâncias.

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Deu para ver isso claramente no último debate, porque esse foi o mais coerente. Seja porque os dois candidatos se acostumaram com o formato e um com o outro, ou porque o moderador Chris Wallace fez um ótimo trabalho fazendo com que eles respondessem pelo menos na direção das suas perguntas.

Veja a parte sobre direitos de aborto, na qual Trump disse: "Se você seguir o que Hillary está dizendo, em nove meses você poderá arrancar o bebê do útero da mãe logo antes do parto".

Clinton: "Bom, não é isso que acontece nesses casos. E usar esse tipo de retórica de medo é muito infeliz".

Em se tratando do famoso muro de Trump, Clinton disse: "Quando se trata do muro que Donald fala em construir, ele foi para o México, ele teve um encontro com o presidente mexicano. E nem sequer mencionou isso. Ele engasgou e depois fez uma guerra no Twitter porque o presidente mexicano disse 'não vamos pagar pelo muro'".

Trump: "Eu tive uma boa reunião com o presidente do México. Um homem muito legal". (O relato de Clinton do que aconteceu está basicamente correto.)

Quando a conversa se voltou para bombas atômicas, Clinton disse que Trump "defende que mais países as tenham: Japão, Coreia, até a Arábia Saudita".

A réplica de Trump: "Olha, ela já se mostrou uma mentirosa de muitas maneiras. Essa é apenas outra mentira". (Depois ele sugeriu que podia ser a favor desses países terem armas nucleares, depois de negar que disse isso e voltar atrás.)

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Trump de novo: "Agora ela quer assinar a Parceria Transpacífico".

Clinton: "Sou contra esse acordo agora. Serei contra depois da eleição. Serei contra quando for presidente". (Ela elogiou a PTP no passado, mas é contra há algum tempo, parcialmente porque muitos membros da coalizão democrata são contra.)

O que trocas como essas soam para os quase míticos eleitores indecisos? Nenhum dos candidatos parecia estar pensando muito nessa porção do eleitorado. Esse debate foi tipo uma compilação dos melhores momentos de Trump e Clinton, os dois basicamente pregando para seu próprio culto.

Clinton acusou Trump de "um padrão divisivo, de uma visão sombria e em muitos sentidos perigosa do nosso país, com a qual incita violência e aplaude as pessoas que estão socando e empurrando em seus comícios". Mais tarde, ela fez talvez seu ataque mais conciso sobre o hábito de Trump em humilhar mulheres: "Donald acha que menosprezar mulheres faz dele alguém maior. Ele ataca a dignidade delas, sua autoestima e acho que não tem uma mulher aqui que não sabe como é isso".

Trump, claro, tinha trazido sua própria munição, culpando Clinton e seus agentes por desencadear violência em seus comícios (apesar de não explicar se isso era uma referência a um vídeo feito pelo controverso ativista James O'Keefe, que conseguiu filmar ativistas democratas dizendo coisas bastante incriminatórias e idiotas). Ele trouxe de volta a história dos e-mails: "Ela mentiu centenas de vezes para o povo, para o Congresso e para o FBI". Mais tarde ele retornou ao tema: "Ela não deveria estar concorrendo. Está errado… Ela é culpada de um crime muito, muito sério".

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O que você achou dessa luta de boxe depende muito de qual desses candidatos você desgosta menos. Clinton com certeza é mais preparada que Trump, capaz de contornar as perguntas sobre o favorecimento de doadores da Clinton Foundation enquanto ela era secretária de Estado (ela preferiu elogiar o trabalho da fundação, mesmo que o histórico da instituição esteja longe do imaculado). Quando Wallace fez uma pergunta sobre as acusações de que Trump teria abusado sexualmente de mulheres, que incluía um aparte sobre o comportamento de Bill Clinton, a democrata evitou abordar essa parte da pergunta. E quando Wallace mencionou o Wikileaks, Clinton preferiu criticar o ataque hacker vindo da Rússia.

Trump, sendo Trump, causou algum estrago para si mesmo apesar de ter mantido os ataques à confiabilidade de Clinton. Ele conseguiu elogiar Vladimir Putin e Bashar Al-Assad, repetiu a ideia de que EUA e Rússia deveriam ser mais amistosos — sem afastar muito a acusação de que ele é um "marionete" da Rússia — e, ah, é mesmo, ele disse que talvez não reconheça o resultado das eleições em novembro.

"Há uma tradição neste país — na verdade, um dos maiores orgulhos desse país — de uma transição pacífica de poder e que não importa quão dura tenha sido a campanha, que no final o perdedor vai conceder a vitória ao vencedor", disse Wallace. "Você está dizendo agora que não está preparado para se comprometer com esse princípio?"

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"Estou dizendo que vou te dizer quando for a hora", disse Trump. "Vou manter o suspense, OK?"

Não há dúvidas de que os Estados Unidos particulares que vibram com esse tipo de frequência, imaginando que forças obscuras, quaisquer que sejam, precisam de uma enorme conspiração para impedir Trump de chega à Casa Branca. Essas Américas — e americanos — vão continuar aqui depois que Trump se for, ainda com raiva. Quer Trump conceda graciosamente a vitória ou não, a eleição de Clinton não vai unificar o país, e no momento parece que nada vai. A minha América, pelo menos, preferia menos suspense.

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Tradução: Marina Schnoor

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