Um papo sobre fanatismo religioso com a especialista em seitas de 'Far Cry 5'

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Um papo sobre fanatismo religioso com a especialista em seitas de 'Far Cry 5'

Falamos com o diretor do jogo, Dan Hay, e a documentarista Mia Donavan sobre como o game da Ubisoft irá tratar de religião, comunidade, raça e mais.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

Quando me sentei para jogar algumas horas de Far Cry 5 no começo desse mês em uma sessão de imprensa, eu não consegui tirar da cabeça o pitch inicial que a Ubisoft fez para o jogo no ano passado.

O pitch deles era assim: Jogos passados da série se expandiram pelo globo, levando a exploração de mundo aberto e um formato de jogo de tiro em primeira pessoa que se passa em locais “exóticos”, onde você explodia tudo com a desculpa de derrotar os vilões. Agora, a ação volta para “casa”, para um condado fictício no estado norte-americano de Montana, onde você se junta a pessoas comuns para encarar uma seita apocalíptica nefasta chamada Project at Eden's Gate. Esse é um grupo liderado por um homem que se posiciona em frente a bandeira americana, com um carisma quase sobrenatural, comandando as forças fervorosas de seus soldados leais, pregando sobre fé, liberdade, armas e o fim do mundo.

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Mas esse pitch não existe num vácuo. Ele é modificado pelo contexto. Quatro anos se passaram desde o impasse da milícia de Clive Bundy em Nevada, dois anos desde que os filhos dele fizeram algo similar no Oregon, e sete meses depois da violência em Charlottesville. Esses (e outros) eventos sempre dar um contexto específico pro jogo, mesmo se o pitch inicial de Far Cry 5 não invocasse explicitamente comparações com os movimentos de milícia de Bundy.

Depois de uma sessão de três horas com o jogo, pude me encontrar com Dan Hay, diretor de Far Cry 5, cuja voz profunda se espalha numa cadência quase profética, falando com uma certeza seca sobre seus próprios momentos de crise. Também falei brevemente com Mia Donovan, diretora do documentário Deprogrammed e consultora do jogo, cuja paixão e conhecimento ficaram óbvios em sua disposição para cavar mais fundo no material complexo à mão.

Waypoint: Quando vocês estavam falando sobre o jogo para juízes pré-E3, você deu essa noção de “a pressão”, algo pra que vocês deram bastante peso. A ideia era que vivendo em lugares assim, há essa sensação constante de que as coisas podem desmoronar a qualquer momento… que você tem que estar sempre de guarda.

Como isso se mostra aqui? Como você coloca essa sensação num videogame que as vezes é engraçado e vago, e tem coisas físicas engraçadas acontecendo. É imprevisível.
Dan Hay, diretor de Far Cry 5: Entendi a pergunta. Como você racionaliza os tons, os múltiplos tons.

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Sim, e especificamente a ideia da “pressão”, a noção de se sentir vulnerável.

OK. Acho que não há dúvida de que quando você está jogando co-op, ou jogando com alguém do mais bombástico Guns for Hire, você vai esquecer. Sabe, é fácil esquecer a seita, é fácil esquecer alguns dos momentos mais fervorosos.

Mas temos momentos onde essas coisas se juntam. Você sabe que vai encontrar um Arauto [um dos tenentes do líder da seita], você vai compartilhar a experiência de sentar numa cadeira e encarar a questão de se você está sendo programado ou não. Na verdade você está preste a experimentar isso, se voltar e jogar agora.

“A palavra-chave é comunidade.” – Dan Hay, diretor de Far Cry 5

Tem pontos onde você vai encontrar personagens que são muito difíceis de lidar. Eles têm suas crenças. Eles são fanáticos. Mas também vai poder brincar com o Cheeseburger [o urso]. Você pode fazer tudo isso.

Então, acho que a chave para nós era: tudo começa com o Pastor, e o conceito de pressão. Ele acredita absolutamente que o final dos dias está chegando. Ele recruta pessoas, elas querendo ou não. E ele tem controle absoluto de seu ambiente. Então ele coloca essa pressão no mundo, e aí te damos a habilidade de escolher as ferramentas [para enfrentá-lo].

Mas há momentos em que parece que você foi tomado, quando parece que você está nas mãos da seita. E esses momentos te lembram da pressão. Estávamos tentando fazer isso ser algo orgânico.

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Então, falando da natureza orgânica de tudo isso… Uma das maneiras que seitas e milícias agressivas como essa funcionam, é que eles usam o medo das pessoas e dividem as pessoas. Temos uma visão muito específica aqui: Você tem o padre imediatamente dizendo “Eles estão vindo para tirar suas armas, para tirar sua fé, eles estão vindo para acabar com seu modo de vida natural”.

Em Far Cry 5, vamos ver o jogador construindo coalizões, formando pontes entre tipos diferentes de pessoas para resistir a esse tipo específico de pregação de medo? Se sim, isso é mais que só explodir santuários da seita e resgatar pessoas de perigo imediato? Tem essa ideia de juntar grupos disparatados sob uma ideia compartilhada?
Eu diria que sim, mas não especificamente como você está fazendo a pergunta. A palavra-chave aqui é “comunidade”. Há um senso de comunidade no jogo? Acho que sim, de um ponto de vista que realmente construímos três comunidades separadas, certo?

No sul você tem o Pastor Jerome e Mary tentando trazer de volta Fall's End, e essa é uma comunidade em si.

E eles parecem o tipo de “pessoa comum”…
Eles são. Pessoas comuns. Eles não são militantes, não são treinados. Você sabe, eles são só pessoas normais que você encontrou. Mas você também tem a comunidade de pessoas que você escolhe como seus mercenários. Seu grupo.

No norte você já tem uma comunidade existente. Com Eli, Tammy, e você ainda não encontrou essas caras.

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São a Milícia Whitetail?
Sim, eles são muito específicos. Eles têm sua própria coisa rolando, suas próprias crenças. Basicamente, eles estão nessa situação e dizem “Você quer se juntar a nós? Quer ser parte disso?”

E aí, numa região de que não posso falar, tem outra comunidade. E provavelmente é o grupo mais misto.

Queríamos garantir que essas comunidades fossem diferentes. Você tem duas pessoas que se conhecem no sul. Você tem três pessoas que se conhecem há muito tempo no norte, e aí você tem esse grupo de pessoas que acabaram juntas – eles não se dão bem necessariamente, e acreditam em coisas diferentes.

Você vai ter… tipo, temos pessoas que gostam muito de sair por aí e encontrar mercenários aleatórios. Só gente normal, certo?

Sim, eles são muito engraçados na verdade. Tem um certo charme neles comentando sobre os eventos ao seu redor que você não esperava. É uma boa surpresa.
É.

Uma das coisas que apareceu nas primeiras coberturas do jogo, alguns meios de comunicação disseram “esse tópico é muito sério ou muito real”, o que me pareceu estranho no começo – porque isso também é verdade para os Tigres Tamil ou conflitos no Pacífico ou nas nações africanas. Essas coisas acontecem.

Estou curioso sobre respostas internas para comentários assim.

Também estou curioso sobre essas conversas que surgiram antes no desenvolvimento, quando vocês ainda estavam tentando descobrir qual o tópico seria. E como vocês abordariam isso de uma maneira bem considerada e educada.
Essa é a grande questão, vou tentar dividir os componentes.

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Esses comentários nos afetaram e nos fizeram pensar assim? Claro. Você me acusaria de ser mentiroso se eu não te dissesse essa verdade, então, sim, claro que isso nos afetou.

Quando você vê um jogo como esse passado na América e as pessoas têm a primeira visão dele, todo mundo olha por sua própria lente. E o ponto é, por isso ficamos felizes em trazer as pessoas aqui para jogar, para ver o que isso é.

Quando falamos sobre a questão do tom, dissemos “Olha, sabemos que é bombástico. Sabemos que é sério”. E sabemos que temos essas duas coisas juntas, e achamos que isso ainda forma uma coisa ótima para os jogadores poderem descobrir e jogarem como quiserem. Te dar as ferramentas para montar sua própria narrativa, claro.

“…não é sempre necessário ter um deus, mas é sempre necessário ter um inimigo.” – Mia Donovan, especialista em seitas e consultora

Os videogames chegaram num ponto onde estão maduros o suficiente para poderem, no mínimo, abordar a superfície disso? Explorar isso? Acho que sim.

Isso significa que precisamos lidar com isso de um único jeito nesse momento? Não. Podemos simplesmente ter uma história sobre uma seita. E podemos ter uma história que não é só sobre os EUA.

É sobre o estado do mundo agora, onde todo mundo sente que estamos um pouco mais perto do precipício do que deveríamos. E talvez precisamos dar um passo atrás. Talvez haja um momento em que precisamos pensar.

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As pessoas podem tirar qualquer coisa disso… Sabe, claro que é um jogo Far Cry, é uma fábrica de anedotas. Você tem um monte de coisas para fazer e pode jogar como quiser e pode montar a história como uma coisa “escolha sua própria aventura”, certo?

Mas o que você tira disso?

Acho que você pode tirar que estamos no limite. E que é preciso pensar um pouco mais nisso. É preciso… O que aprendemos? Como lidamos com isso no mundo real?

Então uma coisa que surgiu… na verdade duas coisas, mas dois lados da mesma moeda: Primeiro, acho que as pessoas vão gostar muito da customização. Essa é a primeira vez que os jogadores vão poder jogar como uma mulher no Far Cry. Você pode escolher o rosto e a cor de pele do seu personagem, o que é incrível. Como um jogador negro, é muito legal poder jogar como um personagem negro uma série que sempre gostei.

Ao mesmo tempo, uma das questões que surgiram é que, quando você olha para seitas reais religiosas nos EUA – mesmo nessa área geográfica – o que você vê é, bom, principalmente brancos. Você vê muita pureza étnica nesse espaço.

(Isso não quer dizer que não haja, raramente, pessoas não brancas nesses espaços. Na verdade, o apresentador do podcast Haven's Gate é um homem negro que cresceu numa seita evangélica apocalíptica. No quarto episódio da série, ele fala sobre como era estranho ser o único cara negro na seita, sobre como ele não conseguia namorar quando era adolescente porque a regra naquela seita era que você só podia namorar pessoas da sua raça, e a outra pessoa negra da idade dele era uma garota de etnia mista que morava longe e que estava tentando ser considerada branca.)

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O que quero dizer é que raça é um grande componente dessas seitas, ou que identidade é um grande componente de seitas e que raça é um vetor através do qual essa identidade é formada.

Então, estou curioso: Por um lado você tem esses grandes exemplos de representação na customização dos personagens, mas o que entrou na decisão de que essa seita deveria ser multiétnica? A seita tem várias pessoas não brancas desde a sequência de abertura. O que entrou para fazer o Project at Eden's Gater não ser um grupo nacionalista branco ou algo similar às seitas que já vimos historicamente?
Acho que pode ter a ver com idade. Quando eu era garoto e estava pensando nisso, fui informado pelas seitas dos anos 70. Lembro desse conceito de inclusão. Lembro da ideia de “nos traga todo mundo”. E para mim era aí que queríamos chegar.

A seita sempre foi sobre… e isso volta para o líder Joseph, e “a pressão” – ele acredita mesmo que o fim do mundo está chegando e acredita que vai salvar todo mundo. Ou quantas pessoas ele puder. E ele simplesmente diz “Traga todo mundo”.

“…há muita fascinação com seitas porque acho que as pessoas têm dificuldade para entender como alguém pode entrar para esses grupos e se conformar ao extremo.” – Mia Donovan

E então de um ponto de vista de uma questão sobre raça ou especificamente que visões religiosas, fomos bem sinceros desde o começo dizendo “Caras, essa é uma seita de inclusão”. Essa é uma situação onde eles pegam coisas diferentes de várias religiões. E criam sua própria versão.

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E esse é o nosso culto, sabe? O colocamos em Hope Montana, um lugar que não existe, porque queríamos ter alguma liberdade criativa. E também queríamos ter certeza que essa é a nossa seita. Então procuramos uma especialista e dissemos “Fale sobre tudo que aconteceu nos anos 70 e 80. Fale sobre as diferentes doutrinas e nos deixe compor com isso”.

E quando pensamos em algumas delas… você não pode usar exemplos específicos, eu queria, mas não podemos.

Mas quando penso em gente que é muito boa em atrair pessoas e entrar na cabeça delas, e construindo sobre algumas memórias que eu tinha quando criança sobre seitas, elas eram inclusivas. E era incrível como elas conseguiam fazer pessoas cultas de grupos disparatados acreditarem na mesma coisa. Isso é poderoso.


Mia, você já estudou amplamente seitas. Você dirigiu Deprogrammed, um documentário sobre um “desprogramador” de seitas controverso que trabalhou dos anos 70 até o começo dos 90.Como consultora, como você ajudou a equipe a representar uma seita sem “reduzir” isso a uma coisa de mercado de massa?
Mia Donovan, consultora: Isso é interessante, porque é algo que sempre tive em mente. Sempre que me encontrava com eles numa reunião criativa, era interessante ver como os roteiristas estavam interessados em psicologia. Mas eles também diziam “OK, esse também é um jogo Far Cry, então…”

É muito interessante, essa fascinação com seitas. Acho que o que eles queriam era o cerne disso: “Como você cria uma lógica geral no jogo que faça sentido se alguém juntar todas as peças”.

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Crescemos numa sociedade tão focada em individualidade e livre arbítrio. E acho que essa fascinação por seitas existe porque as pessoas têm dificuldade para entender como alguém pode entrar para esses grupos e se conformar ao extremo.

Para mim, isso ficou ainda mais interessante quando comecei a entrevistar pessoas de seitas. Eu pensei “Eles não são zumbis, são pessoas normais”. Mas seus pensamentos foram reformados para refletir a ideologia de seus líderes.

Então a ideia era mostrar isso nos retratos da seita no jogo?

Bom, era importante fazer eles entenderem que a seita está no seu cérebro, não só no ambiente físico. E como essas ideias são reforçadas mesmo quando você não está necessariamente preso numa cela. Não é só que o controle do ambiente é físico. É mais que isso. Tentei explicar para eles sobre o uso da linguagem nas seitas, que enfatiza essa divisão entre “nós” e o “resto do mundo”. Você toca nisso logo no começo do jogo.

Uma citação que ficou na minha cabeça e que ex-membros de seita sempre mencionam é do escritor Eric Hoffer, um psicólogo social. Ele escreveu sobre “movimento de massa” antes da palavra “seita” entrar no jogo, e ele tem essa declaração forte: “A força de um movimento de massa é proporcional a vividez e tangibilidade de seu mal”.

Então não é preciso necessariamente ter um deus, mas é preciso ter um inimigo.

Como forças opostas que nos definem negativamente?
Sim, exatamente.

Tinha alguma outra coisa que você queria garantir que eles retratassem corretamente, considerando as forças e fraquezas dos videogames em geral?
Entendo as restrições. Tentei trabalhar num projeto de realidade virtual sobre doutrinação e foi muito difícil. É difícil simular interações sociais reais com tecnologia, mesmo que Far Cry 5 tenha chegado perto, porque a maioria das pessoas com quem falei foram doutrinadas em ambientes muito sutis de pressão social. Vivendo sob manipulações muito sutis.

Que é diferente de “Vou colocar esse óculos e mergulhar nisso”.
Sim! E tipo, as pessoas falam sobre “bombardeamento de amor”, onde você entra num ambiente e todo mundo te banha com amor, atenção e interesse. Logo essas pessoas são seus melhores amigos, sua família. E amizades reais levam tempo para se desenvolver. É uma tática enganosa e pouco autêntica de manipulação, que muitos ex-membros de culto lembram de terem feito, mas lembram de sentir que precisavam fazer isso para salvar a pessoa.

É algo muito internalizado, muito complexo.

Passei muito tempo falando com a equipe de desenvolvedores sobre isso, e acho que eles fizeram um ótimo trabalho tocando nesse assunto. Você ainda não passou pelo processo todo, mas vai ver diferentes maneiras como eles conseguiram criar sua visão sobre isso.

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