O que esperar depois do Brexit
Imagem principal: Manifestante na Praça do Parlamento, Londres. Foto por David Mirzoeff/PA Wire/PA Images

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análise

O que esperar depois do Brexit

Esta quarta (29) pode ser o começo do fim do Reino Unido que conhecemos.

(Uma manifestante na Praça do Parlamento, Londres. Foto: David Mirzoeff/PA Wire/PA Images.)

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK .

Às 12h30 desta quarta (29), o representante permanente do Reino Unido na União Europeia entregou uma carta ao presidente do Conselho Europeu, notificando a intenção do governo de deixar a UE. Essa troca diplomática vai desencadear o Artigo 50 do Tratado de Lisboa, e começar um processo de dois anos de negociação para finalizar os termos da saída do Reino Unido da União Europeia.

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Ainda estamos longe da cena final do Brexit — esse é só o final do primeiro ato.

O presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, deve fazer um pronunciamento depois de receber a carta, antes de publicar um esboço das diretrizes de negociação da UE. Uma reunião será convocada no dia 29 de abril para ministros de cada país-membro da UE, menos Reino Unido, para aprová-las. As negociações só começam mesmo no meio de maio, mas a contagem regressiva de dois anos começou.

Como negociadores experientes apontaram, dois anos é muito tempo, especialmente levando em consideração o seguinte: primeiro, as reuniões iniciais provavelmente vão discutir quantas reuniões deverão ser feitas, quem estará presente, que assuntos serão discutidos e em qual ordem. Isso em si já será controverso, já que os dois lados têm prioridades diferentes. Segundo: a Alemanha, membro-chave da UE, tem eleições federais em setembro, o que provavelmente vai atrair toda atenção, assim como qualquer outra crise da UE que acontecer nos próximos dois anos. Terceiro: foi sugerido que o acordo final do Brexit precisa ser aprovado pelo parlamento de cada estado-membro, o Parlamento Europeu e a Câmara dos Comuns, num período de dois anos.

Na prática, provavelmente serão menos de 18 meses de negociação, durante os quais o governo britânico — otimista e delirante como sempre — espera minimizar sua conta do "acordo de divórcio" e ter definido um acordo de livre comércio que garanta os mesmos benefícios de ser membro do Mercado Único. Mas como a retirada do Reino Unido vai ter um custo para a União Europeia — o Reino Unido contribui com 12,5% do seu orçamento —, a Comissão sugeriu que não vai discutir arranjos de livre comércio até que tenha lidado com a conta de divórcio, ou pode acabar com um déficit financeiro em 2019.

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A conta está estimada em €60 bilhões pelo Chanceler Australiano. Isso provavelmente é baseado em estimativas de débitos e obrigações para coisas como pensões de empregados da UE e projetos com gastos fiscais que o Reino Unido assinou antes do referendo do Brexit, apesar de David Davis, secretário do Brexit, dizer que não viu trabalhos que expliquem o número. Em seu discurso em Lancaster House em janeiro, Theresa May disse: "Os dias em que o Reino Unido fazia enormes contribuições para a União Europeia todo ano vão acabar". Isso, tecnicamente, deixa espaço para um pagamento final, ou pagamentos parcelados ao longo de anos, mas essa nuance provavelmente vai se perder entre Brexiteers e o partido Tory de direita. Eles esperam um "rompimento claro". Pagar uma conta enorme será politicamente desastroso para o governo inglês.

Theresa May assinando a carta do Artigo 50, enquanto se prepara para dar início à retirada formal do Reino Unido da União Europeia. Foto: Christopher Furlong/PA Wire/PA Images.

Se a Grã-Bretanha sair sem um acordo de transição depois de dois anos — "Nenhum acordo é melhor que um acordo ruim", foram as palavras infames de May —, o país será obrigado a respeitar as regras da Organização Mundial de Comércio, o que terá desdobramento nos impostos instantâneos de exportadores britânicos. Essa é uma das muitas razões para a UE levar vantagem nas negociações. Apesar de o Reino Unido poder usar o acesso à Cidade de Londres — um ponto central do capitalismo europeu — e o valor de seus gastos de defesa contra os europeus, é difícil ver como o país pode ter uma posição forte de barganha.

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Outra razão para a UE ter vantagem é uma questão administrativa: os negociadores europeus são famosos por serem implacáveis e perspicazes. Muitos deles estudaram na rigorosa escola francesa de governo Ecole national d'administration, onde absorveram um conhecimento íntimo da burocracia da União Europeia. Margaret Thatcher, outra primeira-ministra conservadora que tentou forçar interesses britânicos no supranacionalismo europeu, tinha bastante consciência disso. Durante negociações com a União Europeia nos anos 80 sobre integração monetária, ela confidenciou que os negociadores franceses da Comissão Europeia eram de uma "astúcia sobrenatural", "mas inteligentes que nós" e que iam "passar os anéis ao redor [do Reino Unido]".

E as circunstâncias tornaram esta uma semana não muito auspiciosa para dar início ao Artigo 50. Os diálogos de divisão de poder entre Sinn Fein e o DUP (o Partido Unionista Democrático da Irlanda) em Stormont desmoronaram, e "não há apetite" para outra eleição. Isso significa que um comando direto, governar a Irlanda do Norte de Westminster com contribuição de Dublim, é possível se os partidos não conseguirem formar um governo próprio nas próximas três semanas. A última vez que o comando diretor foi introduzido em 2002, isso durou cinco anos. O que não era tão problemático porque Reino Unido e Irlanda eram membros da União Europeia — hoje, o Reino Unido está a dois anos de se retirar.

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O Parlamento Escocês também escolheu fazer dessa semana um presságio. O parlamento sancionou um segundo referendo de independência, de acordo com a promessa do Partido Nacional Escocês de outra votação no caso de "uma mudança significativa nas circunstâncias que prevaleciam em 2014, como a Escócia ser retirada da UE contra sua vontade" – colocando outro ponto de interrogação na integridade territorial do Reino Unido.

"A classe governante inglesa não tem a capacidade criativa de pensar num novo substituto imperial para a vida depois da UE. Como fica claro por todas essas conversas nostálgicas sobre 'Império 2.0' e comissão para um novo iate Britannia."

O Brexit produziu uma variedade de sintomas mórbidos; as antigas desigualdades entre Inglaterra e nações periféricas estão se inflamando como uma alergia no corpo político. Como já escrevi antes para esta coluna, a causa de longo prazo do que parece ser desintegração política é a perda nunca resolvida do Império Britânico, a coisa que manteve o show na estrada por 300 anos.

Em seu livro de 1977 The Break-Up Of Britain, o historiador Tom Nairn, que previu o "neonacionalismo" da Escócia pesando sobre a unidade frágil do Reino Unido, argumenta que foi o "sucesso externo" do Império Britânico que manteve Inglaterra, Escócia e País de Gales unidos sob a constituição arcana de Westminster. Essas nações se tornaram "importantes subcentros" da economia imperial vitoriana, e "ao redor de seus grandes centros urbanos, como Belfast, Cardiff e Glasgow, evoluíram classes médias e trabalhadoras que, consciente e indiscutivelmente, deram sua aliança política primária ao estado imperial".

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Enquanto o estado imperial decaía durante o século 20, o mesmo aconteceu com a "razão de ser" do Reino Unido. Nairn afirma que o desenvolvimento da Cidade de Londres como um "núcleo do capitalismo mundial" e a decisão de se juntar à Comunidade Econômica Europeia (mais tarde União Europeia) eram "substitutos imperiais". Mas nada reprimiu tão bem as divisões internas do Reino Unido quanto o Império.

Até o final do século 20, a mistura fatal da desindustrialização de Thatcher e rompimento dos laços com a classe trabalhadora; a dependência excessiva destrutiva da economia do capitalismo financeiro da Cidade de Londres; e as ilusões de grandeza imperial na classe média, conspiraram para criar uma demografia forte o suficiente para votar no Brexit. A classe governante inglesa não tem a capacidade criativa de pensar num novo substituto imperial para a vida depois da UE. Como fica claro por todas essas conversas nostálgicas sobre "Império 2.0" e comissão para um novo iate Britannia.

Então, quando o embaixador inglês entregar o Artigo 50 hoje, ele pode estar não só inaugurando o fim do começo do Brexit, mas o começo do fim do Reino Unido como conhecemos, um estado unitário formado por quatro nações. Se a coisa não fosse tão real — se pudéssemos assistir tudo da cadeira do espectador, longe das consequências materiais e ideológicas do Brexit — provavelmente seria divertido. Há algo historicamente incrível nisso: o Maior Império da história criando as condições para sua própria queda. Claro que acabaria assim.

@Yohannk

Tradução: Marina Schnoor

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