Por que a descriminalização das drogas na Costa Rica não deu certo?

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Por que a descriminalização das drogas na Costa Rica não deu certo?

O crime organizado do país mantém um forte mercado ilegal de drogas e a violência nas periferias das grandes cidades teve um aumento histórico.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE Canadá .

No Canadá, enquanto pessoas continuam morrendo diariamente devido a proliferação do potente opioide fentanila, políticos começam a discutir a descriminalização do uso de drogas em resposta. O país também tem uma posição única em relação à legalização e regulamentação da cannabis (programada para julho de 2018). Quando o Canadá legalizar a maconha, isso será um experimento que pessoas envolvidas com legislação de drogas pelo mundo vão acompanhar. Um modelo de sistema legalizado e regulado para essas substâncias é a panaceia que pode significar o fim da guerra às drogas; a descriminalização, por mais progressista que seja, só trata um lado da equação, ainda deixando o mercado ilegal sob o comando de quem fornece.

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Leia também: " Como seria um mercado legal de drogas recreativas no Reino Unido"

Portugal é frequentemente citada como principal exemplo de descriminalização. O país descriminalizou todas as drogas, de cannabis à heroína, para uso pessoal em 2000, mas não é a única nação que experimentou uma política similar. Em 1988, a Costa Rica colocou em vigor uma política de descriminalização para o uso de todas as drogas. Enquanto o modelo Portugal é elogiado (e por boas razões: ele resultou na queda de infecções por HIV e em mortes por overdose), o jeito como a descriminalização se desenrolou na Costa Rica é um estudo de caso de como esse tipo de política de drogas pode ser prejudicial à sociedade.

Numa manhã de terça-feira em San José, capital da Costa Rica, o especialista latino-americano em política de drogas Ernesto Cortés me levou para uma área da cidade que os locais chamam de "la Zona Roja", uma espécie de cracolândia costa-riquenha. Aqui, pessoas sem-teto nas calçadas usando abertamente crack — uma pedra custa menos de $1. Na Zona Roja, Cortés me levou por uma escadaria estreita até o único abrigo oficial para pessoas em situação de rua do país, que aloja essas pessoas por uma noite depois que elas passam por uma revista.

Por dentro do único abrigo oficial para pessoas em situação de rua, em San José.

A falta de recursos dedicados a ajudar aqueles sofrendo com o vício nas ruas é um dos exemplos de como a política de drogas da Costa Rica não conseguiu abordar questões sociais importantes relacionadas ao consumo de drogas. Por volta de 2010, os EUA fizeram do Caribe um dos seus alvos principais na guerra às drogas, devido ao papel da região no comércio de cocaína, e uma mudança ocorreu aqui. A América Central, incluindo a Costa Rica, começou a ter um papel maior nesse cenário fazendo a ponte para as drogas irem da América do Sul até a América do Norte. É importante lembrar que a Costa Rica é um dos países mais progressistas da América Latina: o país pretende neutralizar sua emissão de carbono até 2021, o sistema educacional é impressionante, e o país se livrou de seu exército em 1949. No entanto, desde 2010, a Costa Rica vive um pico preocupante de violência relacionada ao comércio ilícito de drogas.

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"Apesar da descriminalização do uso de drogas, na última década, a população prisional cresceu pelo menos 50% na Costa Rica."

De 2013 a 2014, a taxa de homicídios na Costa Rica subiu 30%, uma alta histórica. "Estamos vendo coisas que nunca vimos antes… pessoas baleadas na cabeça em carros estacionados", disse Cortés. Apesar da descriminalização do uso de drogas, na última década, a população prisional cresceu pelo menos 50%. Em 2004, a Costa Rica fez uma emenda para suas políticas de drogas, derrubando multas associadas com posse de quantidades para uso pessoal. Apesar da mudança mais recente na política ter afetado a população prisional feminina, hoje, as cadeias da Costa Rica continuam superlotadas — principalmente devido em relação ao número de homens encarcerados.

Para Randal Morice, um psicólogo de San José que trabalha numa clínica de vício em drogas, os efeitos da falha política costa-riquenha o afetaram de imediato.

"Tenho um amigo preso por isso agora… Você está prendendo pessoas envolvidas no comércio local e em relação direta com o consumidor para 'protegê-lo', mas não está indo atrás dos caras realmente maus", disse Morice à VICE. "Os players internacionais, que trazem tudo isso para o país, esses são os caras perigosos."

Morice, que também costumava trabalhar numa firma de advocacia, disse que a polícia na Costa Rica não tem um treinamento correto para lidar com o alcance do crime organizado que o comércio ilícito apresentou ao país, e que os policiais são mal pagos. "Vi algumas coisas muito assustadoras… A polícia está muito frustrada por não conseguir derrubar a criminalidade ou lutar contra o crime organizado, então eles procuram bodes expiatórios para melhorar sua autoestima."

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Bill Bogart, que escreveu um livro pedindo a legalização das drogas no Canadá, disse que a principal questão da descriminalização em vez da legalização e regulamentação de substâncias é que, como no caso da Costa Rica, o lado do fornecimento continua intocado. "Um dos objetivos centrais da legalização e regulamentação é se livrar da miséria que a proibição causa… Esse é um mercado ilícito comandado por foras da lei; se legalizamos e regulamentamos, confrontamos esse tipo de mercado", disse Bogart à VICE.

Pobreza é uma questão social que está intimamente interligada à complexa relação do país com as drogas, com a polícia em ação nas áreas pobres dos centros urbanos prendendo pessoas por tráfico. "Se você é um garoto rico que cheira cocaína, ninguém se importa… você tem dinheiro para ir a festas e raves. A pobreza aprofunda e piora [o problema das drogas] por causa do contexto dessas comunidades e das famílias que vivem isso", disse Cortés.

"A polícia não pode perseguir grandes traficantes, então vão atrás dos peixes pequenos, e agora temos um sistema carcerário lotado com garotas que estavam vendendo 20 pedras de crack."

Morice falou também que as táticas da polícia estão "criminalizando a pobreza" e que as autoridades não conseguem ver quando indivíduos são vítimas do sistema.

"Eles não podem perseguir grandes traficantes, então vão atrás dos peixes pequenos, e agora temos um sistema carcerário lotado com garotas que estavam vendendo 20 pedras de crack… Mas eles estão dizendo 'Olha, pegamos essa pessoa! Temos sucesso!"

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Apesar das multas terem sido retiradas para posses de pequenas quantidades, consideradas para uso próprio, a polícia é obrigada por lei na Costa Rica a confiscar as drogas e oferecer tratamento voluntário para qualquer um pego com essas substâncias. Uma única organização do governo, a IAFA, controla as instalações de tratamento de drogas no país. Dentro desse sistema, pacientes internados são a norma e pacientes externos [que recebem tratamento sem serem internados] são uma prática incomum. Apesar de hoje trabalhar para a ONG ACEID (Associação Costa-riquenha de Estudo e Intervenção em Drogas), Cortés trabalhou para o governo de 2010 a 2014, mas se demitiu por "ética pessoal". Ainda assim, recentemente, o governo aprovou um modelo de política de redução de danos em que a ACEID está envolvida.

Na Costa Rica, a lei permite tratamento compulsório para menores de idade, o que pode incluir confinamento solitário. Cortés disse que há um mecanismo no governo para prevenir tortura, e que sua organização está tentando fazer com que as autoridades investiguem como o tratamento de drogas funciona para menores de idade no país. "Eles não têm protocolos de tratamento, eles não sabem o que estão fazendo. Esses garotos são complicados: eles vêm dos guetos, eles foram expostos à violência. Precisamos de um lugar para eles, mas não esses lugares."

Outra faceta da relação da Costa Rica com as drogas é que entre as gerações mais velhas, é normal não ver diferença entre o nível de dano causado pela cannabis versus a cocaína. Cortés diz que pais costa-riquenhos típicos achariam um baseado no quarto da filha adolescente e achariam que ela é viciada em drogas, estragariam a vida dela e a mandariam para a rehab. Em parte, ele diz, isso é um indicador sério de divisão geracional. Apesar de ter 36 anos, ele diz que pessoas com mais de 30 geralmente têm a mente mais fechada sobre drogas do que os jovens do país.

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Héctor Montiel, um fotógrafo e estudante de 27 anos de San José, que trabalhou como voluntário em grupos de redução de danos em festivais de música, disse que também observou essa divisão geracional forte quando o assunto é drogas. "As pessoas da minha geração têm a mente mais aberta sobre uso de drogas, mas nossos pais ou pessoas de gerações passadas ainda têm tabus; eles ainda têm medo e vergonha de falar sobre isso." Montiel diz que a presença da Igreja Católica no país impactou a criação dessa dinâmica. "É uma loucura ver a diferença entre meus pais, eu e meus amigos; tanta gente fuma maconha hoje, usa cocaína, e MDMA, LSD é muito, muito popular."

Mais de 70% da população costa-riquenha é católica. O Dr. Ruben Baler, que trabalha para o Instituto Nacional de Abuso de Drogas (NIDA em inglês) nos EUA, explicou como o fenômeno da afiliação religiosa pode criar um estigma para usuários de drogas. "Há um aspecto metafísico no cérebro que comanda todos esses aspectos que você não pode medir como vindos de deus ou outra entidade. É daí que vem o estigma. E em países com uma história e tradição religiosa muito pesada… É uma parede com que as pessoas topam ao tentar acabar com o estigma da questão."

"Ninguém nos EUA se importa em regularizar a cocaína porque eles não produzem cocaína… Como vamos lidar com países de trânsito como a Costa Rica?"

Para Cortés, essa é uma questão que afeta seu trabalho. A Costa Rica é um dos únicos países onde a igreja católica é literalmente parte do governo. "Quando entrei para o governo, eu achava que seria o melhor lugar para se estar… mas descobri que é muito difícil mudar as coisas de dentro."

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Cortés diz que o sistema legal de maconha em que o Canadá está prestes a embarcar provavelmente não vai acontecer na Costa Rica nas próximas décadas. "Se legalizarmos a maconha, não vamos parar a violência e os assassinatos, porque isso tem mais ligação com o tráfico internacional de cocaína." Ele elogiou uma campanha que pede a legalização e regulamentação da cocaína, que poderia significar o fim dos problemas sociais de seu país e de outros da América Latina.

Apesar de o sistema português ter derrubado o número de mortes por overdose e a incidência do HIV, as questões manifestadas na América Latina como resultado da guerra às drogas são completamente diferentes. "Ninguém nos EUA se importa em regularizar a cocaína porque eles não produzem cocaína… Como vamos lidar com países de trânsito como a Costa Rica? São os países de origem e de trânsito que ficam com as mortes, e essa é uma grande questão", disse Cortés. "Se queremos parar a violência, precisamos começar a pensar em legalização."

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Tradução do inglês por Marina Schnoor.

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