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análise

'Ghetto' é branquitude irritantemente sem noção

Composta por uma “cantora de folk ioga”, a música e o clipe são piores do que você pode imaginar.
Lia Kantrowitz
ilustração por Lia Kantrowitz
Screenshot do vídeo "Ghetto" de Ashlee K. Thomas.

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .

Alguns dias atrás, cruzei com o clipe da música "Ghetto" da "cantora de folk ioga" Ashlee K. Thomas. A "canção de amor ao gueto" da moradora de East Nashville, na cidade de Nashville, nos EUA, começa com a frase (em tradução livre): "tiros e sirenes são a música da quebrada". Depois ela conta sobre como "se mudou do subúrbio pra cá" e "comprou uma casinha" entre esse povo, que tem "calotas brilhantes e low-riders" e "busca confusão".

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A faixa tem uma batida ligeiramente reggae, e o vídeo vai além, mostrando Thomas em becos "barra-pesada" de East Nashville, fazendo uma pose desconjuntada de ioga atrás da outra. Mas palavras não conseguem descrever esse vídeo. Então pare o que estiver fazendo agora e observe você mesmo:

Thomas diz ter composto seu novo hino de branquitude sem noção no balanço na varanda de sua casa em East Nashville — East Nashville é um bairro que já foi um dos mais distante do centro da cidade. Mas hoje em dia, East Nashville é tema de matérias do New York Times que podem conter mais de seis menções à palavra "hipster" ao analisar a nova cena gourmet da cidade.

Como alguém que já morou em East Nashville, quando ouço Thomas cantar sobre como ela está "vivendo bem no gueto", com mendigos pedindo um dólar com um "assovio ou um grito", fico imaginando se moramos realmente no mesmo CEP, ou até na mesma dimensão. Porque hoje, East Nashville dificilmente seria considerado gueto por qualquer pessoa com o mínimo conhecimento de mundo.

Por volta de 1990, quando eu tinha 20 anos, passei um ano em East Nashville. A lenda do country rock Steve Earle ajudou minha mãe e meu padrasto, então roadie dele, a comprar uma casa perto de Shelby Park. Naquele ponto, eu não tinha visto minha mãe por mais do que algumas horas desde 1978. Eu estava ansioso para reatar minha relação com ela e meus irmãos. Ela supostamente era uma mulher mudada, depois de trocar a heroína e codeína por metadona. Me mudei para o apartamento em cima da casa dela e ajudei com o aluguel. (Quando saí de lá alguns anos depois, minha mãe teve uma recaída, se divorciou, abandonou meus irmãos e morreu na Interestadual East Nashville. Ela foi atropelada tentando ganhar uma corrida valendo um litro de goró.)

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Naquela época East Nashville era bem diferente. Os conjuntos habitacionais ali tinham uma população quase exclusivamente afro-americana, com as pequenas casas nas ruas sendo o lar dos brancos do Kentucky e Appalachia. Mas havia um elemento do Wonderful Whites of West Virginia também. O bairro era cheio de metanfetamina, opiáceos, alcoolismo e violência. Na minha primeira reunião com a minha mãe, tivemos todos que deitar no chão porque a casa do lado foi atingida por tiros de espingarda de um carro que passava. "Os moleques de Northcutt estão aprontando de novo", a polícia explicou.

Eu era mais ou menos um turista ali — apenas de passagem. Mas minha irmã Peggy Morgan foi moldada pelo lugar. Mandei o clipe "Ghetto" para ela e perguntei se ela lembrava daquele tiroteio. Desse não, ela me disse, mas lembrava de muitos outros, como um em que seu tio de classe média foi o único a se jogar no chão quando o barulho de tiros começou. "Dava para saber que eles estavam atirando no outro quarteirão", disse Peggy. "A gente sabia medir a distância dos tiros pelo som, então só ele foi pro chão."

Minha irmã mais nova, que agora mora em Olympia, Washington, não ficou impressionada com a música exatamente por essa razão. Muitos dos comentários abaixo de "Ghetto" no YouTube são da variedade WTF, apontando que o East Nashville moderno, como a usuária Dominque Burkes colocou, "é a parte mais gentrificada da cidade".

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Uma reação negativa do mesmo tipo começou, como geralmente acontece, pelas redes sociais. "Você devia deletar esse clipe", diz o primeiro comentário abaixo do vídeo, e a coisa só vai ficando mais feia depois. O comentarista Black Matters Mastering resumiu a coisa de modo sucinto: "A típica pessoa que se muda com uma onda de recém-chegados, muito depois que o bairro já mudou para algo do seu gosto, e ainda assim tenta se agarrar a aura de 'bairro barra pesada' de que você não fazia parte. Eca".

Perguntei a Langston Collins Wilkins, PhD em etnomusicologia e folclore, e que trabalha em East Nashville como gerente de programas do Humanities Tennessee, o que ele achava da música e do clipe. "É uma representação surda do deslocamento em East Nashville, e [Thomas] apresenta uma dissonância cognitiva em questões muito, muito sérias", ele disse. "Ela transforma afro-americanos em objetos e nossas experiências em cenário para sua história em particular. Então, de certa maneira, posso dizer que ela nos demoniza."

"Eu entendo que não entendo; como é crescer na pobreza, ou como uma minoria."

Thomas, claro, discorda. E como informou o Tennessean, não pensa em apagar o clipe. "Defendo essa música e esse vídeo", ela comentou no YouTube. "Fora me mudar do subúrbio, essa música não é sobre mim. Essa música é uma observação do que vi em Nashville, Memphis, Índia, América do Sul e outros lugares onde estive. Faço ioga no vídeo, porque ioga me ajuda a viver melhor onde quer que eu esteja."

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"Você tem que entender que para nós, nativos de Nashville, que assistimos a cidade ser vendida debaixo dos nossos pés, esse clipe é difícil de engolir", escreveu Leah Slider na página do Facebook do produtor do clipe, Bart Mathew (numa atualização que agora ele deixou visível apenas para amigos). "[O vídeo] parece explorador e basicamente embala tudo de escroto sobre a gentrificação num bonito presente", ela continua antes de comentar sobre sua própria infância em Nashville. "Queria que você tivesse andando pelo bairro em 1985. Caramba, 1995. Até 2005. Era um lugar muito diferente na época. Os nativos se sentiam expulsos e marginalizados por recém-chegados ricos, tentando capitalizar com nossa cultura enquanto matavam sua autenticidade. É péssimo que artistas pobres não possam mais morar na 'cidade da música'. Sei que não é culpa sua, mas você se tornou o garoto propaganda de tudo que dói nos nativos. É basicamente isso: é doloroso e triste ver seu lar desaparecer."

Peggy também detestou a música, dizendo que Thomas "é tudo que há de errado com os EUA hoje". Não é difícil ver por que ela e outros nativos de East Nashville não ficaram contentes com a "homenagem".

Da parte de Peggy, meu padrasto acabou perdendo a custódia dos filhos (que acabaram num lar adotivo) e a hipoteca da casa. Aí, em abril de 1998, um tornado F3 passou por East Nashville, danificando ou destruindo 300 casas. Peggy lembra que aquela tempestade foi o ponto de guinada do bairro: moradores de áreas mais ricas, como Green Hills e Belle Meade, compraram propriedades danificadas, reformaram, ofereceram para pessoas de outros bairros e boom, o que continua até hoje. Todos os antigos amigos dela do bairro estão sumidos, na cadeia, ou mortos.

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Então, sim, "Guetto" de Thomas é pessoal para mim, mas muito mais para pessoas com raízes mais profundas naquele lado da cidade, como minha irmã.

Compartilhei boa parte da minha história de família em East Nashville, e a reação de Peggy, com Thomas. Ela foi educada o suficiente para me responder por e-mail. Ela disse que sentia muito pelo que passamos e que não conseguia imaginar como era crescer assim etc.

"Eu entendo que não entendo; como é crescer na pobreza, ou como uma minoria. Só testemunhei isso num grau menor, tanto dentro quanto fora deste país", ela escreveu. "Uma coisa com que todos podemos concordar é que não escolhemos o lugar de onde viemos."

Ela continuou dizendo que sente compaixão, e entende a dor e a reação negativa que a música e o clipe provocaram, e se desculpou pela dor e mágoa "no coração dos humanos".

"Se você quer conhecer meu coração e minha intenção, isso está na música que compus e coloquei no mundo", ela escreveu antes de se despedir. "Paz, amor e obrigado por entrar em contato."

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Tradução: Marina Schnoor

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