Morte e vida no Iraque pelas lentes de um brasileiro

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Entrevista

Morte e vida no Iraque pelas lentes de um brasileiro

O fotógrafo paraense Gabriel Chaim presenciou alguns dos principais combates contra o Estado Islâmico e conta como é trabalhar e sobreviver em meio a violência extrema.

Médico voluntário lutando ao lado de tropas curdas presta auxílio a civis fugindo do EI próximo a Bashiqa, no curdistão iraquiano. Foto: Gabriel Chaim

Run. Shoot. Hide (correr, atirar, se esconder). As três palavras de ordem em combate viraram também piada, me conta o fotógrafo brasileiro Gabriel Chaim, 35, entre os soldados na guerra da Síria ao dizer que esta é a principal prática "esportiva" em uma zona conflito. Com a câmera, Chaim faz sua própria versão do tal "exercício", uma vez que "shoot" também pode ser traduzida como "bater uma foto" ou "filmar".

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E é nessa peleja que o fotógrafo passou os últimos nove meses entre o Iraque e o Curdistão iraquiano (região de maioria curda localizada ao norte do país), e mais uma vez compartilhou a prática do correr, fotografar e se esconder com os soldados que estão lutando para retomar o controle do território — atualmente sob o domínio do Estado Islâmico. "Eu nunca fiquei tanto tempo assim em campo, normalmente as coberturas são de três meses", me conta Chaim, já de volta a São Paulo, sentado em um banco de madeira nos fundos da DOC Galeria — que representa seu trabalho no Brasil —, enquanto acendia mais um cigarro.

Em sua cobertura anterior, ainda no ano de 2015, ele participou da ofensiva na cidade de Aleppo e mostrou a destruição que a guerra causou a cidade de Kobani, próxima da fronteira entre Síria e Turquia. Na época, chegou a ser preso pelas autoridades turcas atravessando ilegalmente a fronteira daquele país e chegou a dividir cela com membros do Estado Islâmico.

Tropas curdas revistam civis que fogem do Estado Islâmico para prevenir a prática de enviar homens-bomba em meio aos refugiados. Foto: Gabriel Chaim

De volta ao Brasil desde o último dia 25 de janeiro, Chaim diz que ainda está se ambientando com o ritmo longe do front. "Não é fácil botar a cabeça imediatamente em um local diferente e equilibrar as coisas, minha cabeça está muito lá [na guerra] ainda. Estou tentando me colocar um pouco no agora", comentou o fotógrafo que é pai de dois filhos. "Eu saí de uma zona de guerra para entrar em um conflito diferenciado, que é um conflito interno, em casa, a rotina."

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Neste curto período no Brasil, Chaim também tem ajudado a divulgar o programa Zona de Conflito, que estreou no último sábado (4) no History Channel.  O programa que conta com sua apresentação, mostra seu trajeto e a vivência durante essa sua última visita ao front. A repercussão do programa de TV e uma possível fama, no entanto, não o preocupam. "Eu não sou estrela, eu não tenho que ser maior que o meu trabalho, nem maior do que o que eu retrato."

A realidade que Chaim deixou para trás, inclusive, não tem nada de glamurosa. "Não é um conto de fadas, mesmo vivendo em contexto que não deveria ser real, pois na guerra tudo é muito surreal", diz. Apagando um cigarro e pegando uma xícara de café — sem açúcar, "amargo, como a vida" brinca —, ele relata lances como um ataque no qual um caça do exército norte-americano bombardeava bastante perto de onde ele estava próximo ao rio Tigris, em Mossul, a poucos metros de um tanque que atirava contra posições do EI, em uma cena "igualzinha a filmes de Hollywood, mas ali a parada é real, você morre se vacilar."

Em uma de suas matérias que foi ao ar na televisão brasileira é possível ouvir reação de Chaim quando o zunido de um tiro passa bastante perto de sua cabeça, "aquele tiro teria me matado se tivesse me atingido, mesmo protegido com o capacete e colete a bala teria varado", contou.

"São coisas que você tem que aprender a lidar. É guerra. Pessoas morrem, pessoas matam."

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"Se eu estou vivo hoje não é porque eu sou um cara bom ou porque eu sou gente boa, é porque eu tive sorte. Tenho sorte de estar vivo. Só isso. Não foi o meu dia, ainda", contou o fotógrafo que viu um amigo ter um destino diferente. Saman Duski, com quem Chaim passou sete meses antes da operação nos arredores de Mossul, era um amigo bastante próximo. "Passamos vinte dias dormindo no mesmo local, na terra ou em qualquer outro lugar onde fosse possível durante a operação que retomou Bashiqa e outras duas cidades. Comíamos juntos, fazíamos tudo junto nesse tempo."

Dois dias após o final da ofensiva, já com o EI expulso da região, Saman e mais dois soldados inspecionavam uma casa quando o carro blindado que ele conduzia passou por cima de uma mina terrestre. A explosão em si não seria o suficiente para destruir o carro, mas como o automóvel carregava munição, o estouro desencadeou uma outra explosão dentro do veículo, que acabou matando Saman. Ele morreu dois dias antes de tirar férias, deixando uma filha recém nascida de três meses. "São coisas que você tem que aprender a lidar. É guerra. Pessoas morrem, pessoas matam."

Selfie feita por Saman Duski, amigo de Gabriel Chaim que faleceu aos 27 anos, dois dais antes de tirar férias do front.

Chaim relata que mesmo em momentos de descontração, nos intervalos dos ataques ou mesmo mais distante da zona de conflito, se desligar de fato não é algo que consiga fazer. "Até hoje eu ainda não consegui relaxar. Eu acordo todos os dias às 4 horas da manhã e não consigo dormir direito, mesmo esquecendo tudo, eu não consigo dormir direito.".

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Ainda que relaxar não seja uma possibilidade na guerra, em vários momentos arrumar alguma distração é necessário. Conforme contou Chaim, a maior parte do tempo nas operações militares que participou não é de combate e sim de espera. Tempo este que ele aproveita para se exercitar e ler. Um dos títulos que leu durante a última visita ao front foi o livro Ligeiramente Fora de Foco, no qual Robert Capa conta como foi sua cobertura durante a Segunda Guerra Mundial. "As coisas não mudaram muito na guerra desde a época do Capa", observou.

Ele se impressionou bastante com as semelhanças entre o que estava vivendo no Iraque mais de 60 anos depois do relato no livro. "O Capa falava que tinha esperado 15 dias pra pegar uma liberação do exército e que usava roupas militares, eu também estava usando roupa militar, esperando por uma liberação". E rindo completa, "eu olhava e pensava, o cara escreveu isso pra mim. Sabe os livros de auto-ajuda? A experiência de ler foi tipo essa."

Soldados do exército erguem a bandeira do Iraque após retomar margem leste da cidade de Mossul, que é dividida pelo rio Tigris. Foto: Gabriel Chaim

Segundo Chaim, uma das coisas que a guerra faz com quem a vivencia é "cegar" para a realidade passada. "Você se desprende de tudo, se entrega ao momento que está vivendo e aquela é a única realidade que você tem". Durante sua permanência nos conflitos ele evita carregar coisas que lembrem sua casa e o que deixou para trás no Brasil, e assim viver o momento em que está inserido, pois as distrações podem matar.

É com esse foco que ele produz as reportagens que foram exibidas em canais como a CNN e o Der Speigel. O material também foi ar no Fantástico, da Rede Globo, tudo seguindo o formato de trabalho em que mais acredita: aquele com tempo para contar a história e mostrar um quadro mais completo, mais próximo do real.

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Para Chaim, a cobertura jornalística que tem o foco maior no factual, apenas reportar sem nenhum envolvimento, é como "urubu em cima da carniça, os repórteres vão querendo o conteúdo e vão embora, não se importando quem tá lá, fazem isso sem respeitar a cultura de ninguém". Vários dos jornalistas que vão até a área de conflito passam poucos dias ou poucas horas e vão embora, conta o fotógrafo. "Tem situações em que vários jornalistas fotografam a mesma cena, todos fazendo a mesma imagem, a mesma encenação."

Fumaça de blindado destruído próximo a posição do fotógrafo no centro de Mossul. Foto: Gabriel Chaim

Sua abordagem durante a cobertura é diferente. Criar uma relação de confiança com os que estão no local é parte do trabalho. "Geralmente quando eu vou cobrir uma batalha, gosto de chegar bastante tempo antes, interagir com os soldados e com a população para que eles sintam confiança em mim e que eu sinta confiança neles", comentou.

Essa forma de trabalhar abre portas e possibilita entrar em contato com histórias que não são de fácil acesso. "Quando você se propõe a doar o seu tempo para algo, as pessoas sabem que você não é qualquer um, que você está deixando parte de sua vida no seu país de origem e está alí, então eles acreditam no que você está fazendo", Chaim também atribui a abertura, a recepção e a ajuda que recebeu durante suas coberturas à cultura local, "os árabes geralmente, quando confiam em você, te ajudam, então a relação de confiança tem que rolar dos dois lados", observou.

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"É surreal, hoje você ainda tem gente brigando pra construir muros,  quando a briga deveria ser para levar comida"

A confiança, porém, é algo relativo numa zona de conflito. "Todo mundo mente para você, o bonzinho é um filho da puta e o mal é bonzinho", diz Chaim. "Então não dá pra acreditar em ninguém, mas você precisa confiar. Se não você não faz nada, você não vai pro front.".

Este tipo de abordagem, aliado a uma postura de assumir riscos que outros fotógrafos muitas vezes não estão dispostos a correr, abre espaço e possibilita que Chaim possa escolher quais são os veículos que exibirão suas histórias. Hoje em dia são poucos os jornalistas que acompanham soldados na linha de frente durante as batalhas.

"Uma das vantagens de ir e fazer a cobertura sozinho, sem uma equipe, é que assim você consegue lugar dentro dos blindados", conta Chaim sobre como é difícil conseguir lugares dentro desses veículos. Mas nem sempre é possível conseguir esta carona protegida, "eu já fui junto dos soldados sentado em cima do blindado, eles falavam que eu ia morrer, mas não tinha lugar dentro e eu precisava acompanhar a operação."

Civis fogem para a margem leste de Mossul, controlada pelo exército Iraquiano. Foto: Gabriel Chaim

Em uma das matérias de Chaim exibida no Fantástico é possível vê-lo fora dos veículos acompanhando a travessia de civis por uma ponte destruída, dentro da cidade de Mossul. No vídeo, o fotógrafo chega a carregar uma mulher que passa mal durante a caminhada rumo a área segura, já controlada pelo exército Iraquiano.

"Esta foi uma das poucas vezes que eu tive vontade de chorar, eu nunca tinha visto um caos como aquele e não conseguia acreditar que em pleno século 21, em 2017, eu veria gente desesperada fugindo por uma ponte quebrada", nas imagens registradas por ele é possível ver crianças, idosos, mulheres e cadeirantes. Mesmo em meio a indignação e revolta, Gabriel Chaim seguiu fazendo o seu trabalho. "São nesses momentos eu agradeço por ter forças pra seguir em frente."

É com esta força  que ele pretende voltar pelo menos mais uma vez para a cobertura da guerra contra o Estado Islâmico. "Não sei quando, nem como ainda, mas quero voltar para a região de Aleppo, na Síria. Ainda estou negociando". Depois de fechar esta etapa, este ciclo no Oriente Médio, os planos de Chaim são outros. "Pretendo fazer alguma coisa na África, nada mudou lá. Há quantos anos não vemos filmes e reportagens sobre aquele continente", comentou entre indignado e triste. "É surreal, hoje você ainda tem gente brigando pra construir muros,  quando a briga deveria ser para levar comida", concluiu.

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