A filósofa Judith Butler
A filósofa Judith Butler. Foto via Wikimedia Commons

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Politică

“A resistência ainda é uma opção”, diz Judith Butler sobre Bolsonaro

Entrevista exclusiva com a inimiga pública número um da discussão histérica sobre "ideologia de gênero".

Jair Bolsonaro (PSL) é um candidato declaradamente misógino. Entre inúmeros exemplos do que pensa, um dos mais contundentes foi quando, em 2014, disse à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) que não a estupraria “porque ela não merece”. Mas, hoje, o papel fundamental na escolha pelo próximo presidente do país é das mulheres, já que elas são 52,5% do eleitorado brasileiro e os homens, 47,5%. E o significado disso é gigante: mulheres, que até 1932 não podiam sequer votar, podem decidir essas eleições.

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O que parece passar incólume a boa parte dos eleitores, causa repulsa. Para a filósofa americana Judith Butler é preciso reagir. “A resistência ainda é uma opção”, diz a professora da cadeira Hannah Arendt na European Graduate School (EGS), na Suíça, e uma das maiores especialistas no mundo em questões de gênero. “Acompanho a política brasileira a distância e entendo que Bolsonaro ganhou apoio. Mas é espantoso que esse homem, cuja misoginia, homofobia descarada e transfobia atraia tantas pessoas no Brasil”, fala em entrevista exclusiva à VICE. Butler se tornou a inimiga pública número um da discussão histérica sobre "ideologia de gênero".

"Mulheres, que até 1932 não podiam sequer votar, podem decidir essas eleições"

A três dias das eleições do segundo turno, o Datafolha mostra Bolsonaro com 42% dos votos das mulheres e Haddad com 41%. Os dois também têm o mesmo índice de rejeição entre elas, de 49%. “É crucial que um homem tão ignorante e perigoso [como Bolsonaro] não seja eleito”, afirma Butler.

Mas não se pode analisar o papel decisivo das mulheres numa eleição de alguém que abomina tanto o gênero feminino sem a luz da história. A despeito de terem conquistado o direito a votar no Brasil há quase nove décadas – em 1932, apenas 13 anos depois das americanas, por exemplo –, somente nas eleições de 2002 as mulheres passaram a compor a maior parte do eleitorado (homens eram 49% do eleitorado, e mulheres somaram 51%).

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Embora a presença majoritária de eleitoras no processo se mostre um fenômeno expressivo, é evidente o distanciamento das mulheres da política partidária. Elas sempre compuseram a maior parte do eleitorado que anula o voto, fenômeno mostrado desde o início das pesquisas eleitorais de 2018 – a três dias do segundo turno, elas seguem como a maioria indecisa.

Mulheres também se candidatam menos que os homens (a cada 10 candidaturas nas eleições de 2018, apenas três são de mulheres, exatamente o percentual mínimo estabelecido por uma lei eleitoral de 1997, que determina a partidos e coligações que respeitem cota mínima de 30% de mulheres na lista de candidatos). A consequência é que elas ocupam menos cargos políticos.

“O feminismo, como a democracia, é uma luta constante”

E ainda assim, quando uma mulher ocupa espaço dentro da política, não é incomum que seja ridicularizada. Quando Dilma Rousseff era presidente, por exemplo, esteve no centro, muitas vezes, de insultos que atacam a imagem dela enquanto mulher e não enquanto pessoa política. Como a vez em que adesivos que simulavam a petista com as pernas abertas foram vendidos para serem aplicados em tanques de gasolina dos carros como um “protesto” ao aumento do preço do combustível.

Dilma, a primeira mulher na história do Brasil a ocupar a presidência, também não terminou seu segundo mandato. Ela foi definitivamente afastada da presidência no dia 31 de agosto de 2016.

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Juristas como o ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil Marcello Lavenère e os professores de direito, Geraldo Mascarenhas Prado e Ricardo Lodi Ribeiro são categóricos em afirmar, ao portal de notícias do Senado, que não houve crime de responsabilidade nos decretos de suplementação orçamentária ou nos repasses no Plano Safra que justifiquem o impeachment da petista. Para Judith Butler, estes desdobramentos são grandes indícios sobre as dificuldades de uma mulher na política. “É bastante revelador de uma sociedade quando as mulheres são retiradas do poder ou se tornam objeto de desprezo quando são eleitas.” E como a própria Dilma disse ao jornal britânico Financial Times, em dezembro de 2016: “Uma mulher exercendo autoridade é considerada dura, enquanto um homem é chamado de forte”.

Em entrevista exclusiva, a filósofa contemporânea especialista em feminismo, teoria queer, política e ética, Judith Butler, da Universidade da Califórnia em Berkeley, faz uma análise, por meio de uma entrevista, sobre o reflexo de movimentos feministas e do eleitorado feminino no cenário eleitoral brasileiro de 2018. Leia a entrevista abaixo:

VICE: O feminismo falhou? A porcentagem de mulheres que ocupam o parlamento nos principais países da América Latina é, em média, menos de 50% em comparação aos homens. O sufrágio ficou limitado apenas a conquista do voto?
Judith Butler: O movimento feminista não falhou. Mas toda vez que damos um passo à frente, buscando estabelecer a igualdade econômica, a autodeterminação política, os direitos reprodutivos, os direitos contra a violência, há uma reação. E agora estamos vivendo em tempos reacionários. Mas lembre-se: o ativismo feminista mais poderoso do mundo emergiu da América Latina: Ni Una Menos. Que outro movimento levou milhões de pessoas às ruas para lutar pela igualdade, contra a violência e pela liberdade sexual? Esse movimento está longe de terminar e terá seus efeitos na política eleitoral e nos sindicatos. O feminismo, como a democracia, é uma luta constante. Mas isso não é fracasso: é o caminho difícil para um futuro diferente.

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"A educação sexual não instrui os alunos sobre como fazer sexo ou se masturbar"

A questão da educação sexual nas escolas encontra uma relutância no Brasil e é algo que o Bolsonaro prometeu banir nas escolas caso seja eleito. Como trabalhar essas questões de discussão de gênero e educação sexual nas agendas políticas em um país conservador como o Brasil ?
Meu entendimento é que há uma oposição religiosa reacionária ao ensino de educação sexual e até mesmo ao conceito de gênero, porque é visto como uma espécie de doutrinação. Mas a educação sexual ajuda os jovens a entender como cuidar de seus próprios corpos, a encontrar e a viver seu próprio desejo e a viver em um mundo com liberdade e proteção contra a violência ou a gravidez indesejada.

A educação sexual não instrui os alunos sobre como fazer sexo ou se masturbar, mas permite uma discussão aberta sobre a variação do desejo humano e do gênero. Ela é orientada para permitir que os jovens façam escolhas embasadas, o que significa uma investigação aberta que busca apoiar a autonomia e o conhecimento. Da mesma forma, gênero é um conceito que simplesmente reconhece que as normas sociais e históricas em transformação governam nossa compreensão do que é ser um homem ou uma mulher, ou compreender a si mesmo em categorias externas a elas. Descreve o que é a complexidade de quem somos, e oferece uma compreensão das diferenças humanas que podem ajudar a criar uma relação mais afirmativa com o gênero e as minorias sexuais – uma que é a favor do conhecimento e se opõe à violência.

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Bolsonaro, um candidato declaradamente misógino e sexista, já deu declarações do tipo: “mulheres devem ter um salário menor, pois engravidam”, que sua filha mulher nasceu por conta de uma "fraquejada” sexual e que “não existe feminicídio no Brasil”. E mesmo com o Brasil tendo um eleitorado majoritariamente feminino, aparece como favorito, inclusive com apoio de mulheres. Há também uma questão do pouco envolvimento feminino nos assuntos políticos, aqui as mulheres também compõem a maior parte do eleitorado que anula o voto. Você acha que essa situação reflete a cultura patriarcal ou existem outros fatores ?
A situação deve ser entendida à luz das taxas de feminicídio no Brasil e, de fato, em toda a América Latina. A violência contra as mulheres e a resistência reacionária às causas feministas de igualdade e liberdade revelam um compromisso com a dominação e brutalidade masculinas. Eu posso entender que muitas pessoas agora sentem que não há alternativa desde que o Lula foi proibido de concorrer. Mas a resistência ainda é uma opção, e é crucial que um homem tão ignorante e perigoso não seja eleito.

Você acredita que o gênero deva ser um fator decisivo nas questões políticas ? Por exemplo, mulheres votarem mais em mulheres.
Nem sempre é o caso de mulheres candidatas representarem bem as mulheres; algumas delas não são feministas; algumas podem ser reacionárias. Por isso, é importante perguntar qual candidato, independentemente de seu gênero, se oporá ao feminicídio, a violência contra as mulheres, trans e travestis, se oporá à estratificação racial no Brasil. Mas é claro que é importante ter mais mulheres eleitas para estabelecer a igualdade de gênero no campo político. Então sim, o gênero é um fator, mas não é o único.

Gostaria de deixar um recado para as mulheres e pra comunidade LGBTQ que estão se unindo contra essa figura do retrocesso ?
O movimento LGBTQ no Brasil tem minha mais profunda admiração. Elas e eles são corajosos, bonitos e sua luta pela justiça é afirmada em todo o mundo. Eles devem manter suas redes abertas, se opor aos hackers que buscam fechá-las, aliar-se ao feminismo e à esquerda democrática, e fazer uso de redes regionais e internacionais de solidariedade. Acredito no futuro deles e envio-lhes minha solidariedade.

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