Por que a mulher ainda precisa da autorização do marido para fazer uma laqueadura?
Karine Reis

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Por que a mulher ainda precisa da autorização do marido para fazer uma laqueadura?

Passados 20 anos da atualização da lei de planejamento familiar no Brasil, a mulher ainda depende da assinatura do cônjuge para poder ter o direito de não ter mais filhos.

Ilustração por Karine Reis

Tente imaginar: uma mulher, casada, resolve fazer uma laqueadura — aquele procedimento de ligar as trompas de Falópio que a impede de ter filhos. A mulher, porém, recorre ao recurso cirúrgico sem a autorização do marido. O marido, por sua vez, fica sabendo da laqueadura e processa a mulher. Absurdo? Pode até ser. Mas hoje, de acordo com a nossa Constituição Federal, uma mulher casada que resolva fazer uma esterilização sem o aval do cônjuge pode ser criminalizada por uma decisão que, supostamente, deveria ser apenas dela.

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No texto da lei que regula como e quando uma mulher e um homem podem encarar um processo de esterilização para não ter mais filhos, há o aviso: "Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges". É aí que o problema do direito sobre o próprio corpo começa.

Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.

A advogada Renata Vilhena da Silva, especialista em direito à saúde, acredita que a lei "faz sentido" ainda hoje e explica que casar — aos olhos da lei — é um negócio, e por isso você fecha com seu parceiro um contrato no qual subentende-se que: "Um dos objetivos do casal é ter filhos, formar uma família". Por isso, segundo Renata, uma mulher pode ser processada pelo marido ao fazer uma laqueadura sem o consentimento do parceiro. "O marido pode pedir uma indenização por danos morais, e talvez caiba até anulação do casamento".

E o que pode parecer uma injustiça é assim, na lei, desde sempre. Quando eu nasci, em 1986, por exemplo, minha mãe continuou deitada na sala de parto. Ela, uma dona de casa de 36 anos, se viu sozinha, luzes apagadas no centro cirúrgico, à espera de uma assinatura. Desconfortável e cansada depois do esforço que um parto normal exige, minha mãe esperou cerca de uma hora pela chegada do meu pai — o único que poderia dar a ela o direito de não ter mais filhos. Isso aconteceu há 30 anos.

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Nos anos 1980, para ligar as trompas no Brasil era preciso a autorização do cônjuge e o procedimento era feito apenas em hospitais particulares da rede de saúde do país. No Brasil recém aberto à democracia, a taxa de natalidade, por sua vez, era alta — segundo o IBGE, a taxa era de 4,4 filhos por mulher no país naquela época. Minha mãe, por exemplo, teve quatro filhos. E mesmo com a entrada cada vez maior da mulher no mercado de trabalho e com o crescente acesso a meios anticoncepcionais, para a Organização das Nações Unidas (ONU), a forma mais eficaz de combater o crescimento da população era uma só: acesso a informação sobre anticoncepção via um sistema de saúde pública.

A decisão pela esterilização parte da mulher, mas sem a assinatura do parceiro fica difícil conseguir o direito ao procedimento.

Foi assim que dez anos depois do meu nascimento, em 1996, a Constituição Federal, na Lei 9.263, passou a garantir o planejamento familiar como um direito de todos, fazendo com que cirurgias de laqueadura e vasectomia fossem realizadas no Sistema único de Saúde (SUS). De acordo com a lei, há igualdade no tratamento de gênero quando o assunto é esterilização. Tanto mulheres quanto homens têm o direito de optar pelo procedimento — laqueadura para as mulheres e vasectomia para os homens — bastando ter mais de 25 anos ou pelo menos dois filhos vivos.

Campanhas de saúde pública com foco na contracepção, no entanto, e o barateamento da pílula anticoncepcional são medidas que só começaram a rolar no Brasil efetivamente a partir de 2007.

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Hoje, em 2016, há campanhas do governo sobre anticoncepção que vão além da distribuição de camisinhas durante o Carnaval. Dr. Geraldo Maurício de Nadai, obstetra e coordenador geral da ginecologia do Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, explica que anualmente são feitas cerca de 120 laqueaduras no hospital que comanda, mas a ideia é que a mulher possa escolher por métodos anticoncepcionais reversíveis, preferencialmente a pílula ou o DIU (dispositivo intra-uterino).

O parágrafo 5º da lei, que fala sobre a autorização do cônjuge diante da vontade da mulher pela laqueadura, está em questionamento no Supremo Tribunal Federal.

Caso a mulher escolha pela laqueadura como método anticoncepcional, Dr. Geraldo explica que ela será submetida a uma palestra para ser informada, entre outras coisas, sobre a condição irreversível do procedimento. Na conversa que tive com o médico, porém, ele lembra que a decisão pela esterilização parte da mulher, mas sem a assinatura do parceiro fica difícil conseguir o direito ao procedimento.

Questionado sobre a obrigatoriedade da assinatura do homem nos casos de esterilização feminina, o médico desconversou e acabou se referindo às taxas de arrependimento de mulheres que optaram pela laqueadura, lembrando-se de uma pesquisa publicada em 2004 pela UNICAMP, na qual 10% das mulheres diziam se arrependem de ter feito o processo.

Para Janaína Penalva, professora de Direito da Universidade de Brasília (Unb), a lei da laqueadura como está disposta hoje na Constituição Federal "atenta contra a autonomia sobre o corpo e contra o direito a um planejamento familiar livre e incondicionado". Segundo Penalva, inclusive, o parágrafo 5º da lei, que fala sobre a autorização do cônjuge diante da vontade da mulher pela laqueadura, está em questionamento no Supremo Tribunal Federal.

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A esterilização como método contraceptivo se traduz em falta de escolha, imposta pelas circunstâncias vividas.

E ainda que a lei garanta um tratamento igual entre os gêneros, Penalva lembra que quem gera um filho é a mulher. "Leis que reduzem a autonomia sobre o próprio corpo de homens e mulheres violam mais os direitos das mulheres porque a reprodução social é uma tarefa dada a elas, toda e qualquer definição reprodutiva sempre as onerará em demasia".

Ainda hoje, o Brasil é um dos países campeões em laqueaduras no mundo — os outros são Índia e China. E nos seu trabalho intitulado de 'História reprodutiva de mulheres laqueadas', a pesquisadora Ana Izabel Oliveira Nicolau, com mestrado em Enfermagem pela Universidade Federal do Ceará, traçou retrato das mulheres, em Fortaleza, que buscam a esterilização como método contraceptivo: elas têm entre 36 e 45 anos, se submetem ao procedimento depois de ter entre dois e quatro filhos, tendo a maior parte delas parado de estudar no ensino fundamental.

Em resumo, como aponta Ana Izabel em seu trabalho, a mulher não escolhe a laqueadura. "A esterilização como método contraceptivo se traduz em falta de escolha, imposta pelas circunstâncias vividas e pela indisposição de continuar a contracepção de forma solitária, sem a colaboração do parceiro". É como a minha mãe. A família, com quatro filhos — um deles com necessidades especiais — precisava parar de crescer. O marido jamais faria algo para cessar seu poder de reproduzir, a não ser assinar um papel que garantia o direito da minha mãe parar de ter filhos.

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