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Falamos com os Torcedores que Roubaram a Escavadeira em Istambul Sobre Seu Papel no Levante Turco

Um papo com os caras do Çarşı, torcedores do Beşiktaş de Istambul, “o time do povo”.

Fotos por Ekin Özbicer

Pode-se afirmar sem medo que aquele vídeo no YouTube de um grupo de caras usando máscaras cirúrgicas e capacetes de segurança, perseguindo a polícia em cima de uma escavadeira que eles tinham acabado de “pegar emprestada”, é uma das imagens mais duradouras — e certamente a mais divertida — do que viria a se tornar semanas sombrias de agitação social na Turquia.

O grupo responsável por esse protesto de vanguarda é chamado de Çarşı, torcedores do Beşiktaş de Istambul, “o time do povo”. Na maior parte, os membros do Çarşı compartilham uma ideologia anarquista e antirracista, bem como o amor pelo que é considerado o terceiro time de futebol mais proeminente depois dos rivais Galatasaray e Fenerbahçe de Istambul. Na noite de 2 de junho — no terceiro dia de uma guerra entre polícia e manifestantes — membros do Çarşı fizeram uma ligação direta numa escavadeira que tinha sido deixada do lado de fora de um campo de obras nos arredores do Estádio Inönü do  Beşiktaş, e usaram a máquina para empurrar os canhões de água da polícia para longe de sua vizinhança.

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“Diga pra todo mundo que também somos contra a demolição do nosso estádio — essa é outra razão pela qual aquela escavadeira foi roubada naquela noite”, me disseram Ayhan Güner, Cem Yakışkan e Kemal Ulhal, membros antigos do Çarşı, quando perguntei por que os torcedores do Beşiktaş decidiram emprestar aquela máquina. “O dono da escavadeira acabou virando nosso amigo, sabe? Ele veio até nós e disse: 'Irmãos, eu vi que vocês pegaram minha escavadeira.'”

O Çarşı pilota sua escavadeira pelas ruas de Istambul.

Quarta passada, no Miraç Kandili — uma das cinco noites sagradas para os islâmicos — os membros do Çarşı organizaram um evento no mercado central de Beşiktaş (e que dá nome ao grupo de torcedores), o Çarşı. Lá eles entregaram bagels Kandil (um tipo especial de bagel em miniatura feito para as noites do Kandil) e declararam publicamente que são contra a violência, segurando um cartaz com um bagel no formato do símbolo da paz onde se lia “Que Alá aceite sua resistência”. Um movimento muito bem pensado depois das acusações do governo de que todos os manifestantes são “marginais, saqueadores, extremistas” — ou, no léxico do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan e seus partidários — “ímpios”.

Apesar de ainda se recusarem a falar com a mídia turca, querendo permanecer reclusos, consegui falar com alguns membros do Çarşı por Skype um dia depois desse evento. Esperei do lado de cá da minha webcam enquanto todos tomavam seus lugares: Ayhan, Cem e Kemal se sentaram no meio, cercados pelos seus “iguais” menos antigos (pra que eles não se sentissem de fora) — uma organização de assentos que eles consideraram imperativo para manter os costumes do Çarşı.

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Membros do Çarşı entregando os bagels da paz no Kandil.

Logo descobri que os membros do Çarşı estavam muito bem preparados para essa revolta social sem precedentes. Eles já tinham bastante familiaridade com gás lacrimogêneo e várias outras técnicas de opressão da polícia. “Temos experiência com gás lacrimogêneo, sabe?”, eles me disseram. “É por isso que conseguimos ficar nas linhas de frente com as nossas faixas. Comemos gás lacrimogêneo pelo menos duas vezes por semana. Tomamos gás lacrimogêneo em jogos fora de casa, em jogos de handebol, em jogos de basquete…”

O último enfrentamento entre torcedores e a polícia aconteceu apenas algumas semanas atrás, antes do último jogo da temporada, quando a polícia cobriu as comunidades da vizinhança do Çarşı com gás lacrimogêneo. Para distanciar torcedores rivais e prevenir o caos em torno das catracas antes do jogo, a polícia turca atirou cartuchos de bombas de gás em qualquer um usando uma camiseta de time, como se estivesse tentando matar um enxame de vespas com uma lata de Raid. “Spray de pimenta é o perfume dos torcedores do Beşiktaş”, os membros do Çarşı me disseram, sorrindo com orgulho.

A malícia envolvendo o incidente da escavadeira não foge muito do personagem do Çarşı, ou dos torcedores do Beşiktaş no geral. Insultos divertidos e espirituosos contra os outros times são frequentemente grafitados nas faixas nas arquibancadas do Estádio Inönü. Numa certa ocasião, antes de um jogo entre o Beşiktaş e o Fenerbahçe, torcedores disfarçados do Beşiktaş abordaram alguns torcedores do Fenerbahçe do lado de fora do estádio. Eles disseram que tinham feito uma faixa para Ariel Ortega — o principal jogador do Fenerbahçe — mas que não tinham conseguido ingressos para entrar no jogo. Então eles pediram para os torcedores do Fener para segurar a faixa deles durante a partida, e eles concordaram.

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Minutos depois do pontapé inicial, a faixa foi desenrolada na arquibancada do Fenerbahçe. Demorou alguns bons minutos até que os torcedores do time percebessem que a faixa dizia “Cobarde Gallina Ortega” (“Covarde Galinha Ortega”). A faixa tinha conotação política e criticava a confissão de Ariel Ortega de que voltaria para a Argentina se uma guerra estourasse em algum dos países vizinhos da Turquia — um medo revelado por ele em fevereiro de 2003, logo antes das tropas aliadas invadirem o Iraque.

Em outra faixa do grupo, logo após a morte de Michael Jackson em 2009, eles escreveram: “Àquele que viveu metade da sua vida preto e a outra metade branco, ao grande torcedor do Beşiktaş, Michael Jackson. Que sua alma descanse em paz”. Essa, caso você não esteja muito por dentro dos uniformes dos times de futebol turcos, comparava as duas fases de raças diferentes de Michael Jackson com as cores preta e branca do time Beşiktaş.

Mas, por baixo do senso de humor do Çarşı, se esconde uma ligação romântica com seu amado time, que é frequentemente expressa em forma de poesia. Num de seus hinos há o trecho “Veremos dias bonitos, crianças; veremos dias ensolarados”, que é uma citação do poeta Nazim Hikmet, que passou a maior parte da vida ou na cadeia ou no exílio por suas crenças políticas. E, eles me contaram, que seu amor pelo Beşiktaş é baseado na ideia de que “amar é mais elegante do que ser amado”.

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Fundado em 1982 por “Optik Başkan” (pseudônimo de Mehmet Işıklar) e Cem Yakışkan no centro da cidade de Beşiktaş, o Çarşı tem sua origem entre a classe trabalhadora, esquerdistas e socialistas. O membro com quem conversei falou de Optik Başkan — “O Último Hoologan”, que faleceu em 2007 — com muito carinho e reverência. Başkan foi um esquerdista que se tornou professor de história em Ancara depois da faculdade, antes de eventualmente deixar seu posto por não conseguir ficar longe de seu amado Beşiktaş.

No final dos anos 70, quando o Estádio Inönü era a casa coletiva do Beşiktaş, do Galatasaray e do Fenerbahçe (os dois outros times estavam tendo seus estádios reformados), Optik Başkan fez parte do grupo de torcedores do Beşiktaş que passava noites inteiras nos arredores do Inönü numa tentativa de proteger os melhores lugares nas arquibancadas — um período extremamente violento que ficaria conhecido como “A Guerra do Inönü”. Depois do golpe militar de 1980, a violência se intensificou até que os três times decidiram chegar a um entendimento. “Fizemos uma trégua entre os times em 1995”, o Çarşı me disse. “Não tivemos problemas desde então — é a mídia que faz parecer que ainda existe uma briga. Trocamos a violência pelo humor agora.”

E mesmo existindo certa agressividade nos dias de jogo, as pessoas começaram a associar o grupo com algum nível de ternura. É uma sensação de segurança que se manifesta em piadas como: “Ah, tem algo errado na vizinhança? Não chame a polícia, chame o Çarşı”.

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Essa atitude decorre da insegurança de povos que vivem em democracias disfuncionais, aonde as normas de direito nem sempre se aplicam. Em casos assim, a liderança é procurada em outro lugar — e uma masculinidade intensa e protetiva, como é evidente no Çarşı, pode ser um recurso muito atraente. Ironicamente, há uma lógica semelhante por trás de Ergoğan, saudado como líder carismático pelos muçulmanos que o apoiam — os mesmo cidadãos que foram oprimidos pelas elites seculares no passado. Mas o Çarşı é demasiado autoconsciente para se deixar levar pelo poder concedido pelos cidadãos, bem como do fato de que suas tendências socialistas os impediria de agir assim.

Pelo Skype, ele me disseram: “Temos essa mesma atitude há muito anos: 'O Çarşı é contra tudo'. Aí decidimos que o Çarşı é contra si mesmo, porque queremos mostrar — e provar a nós mesmos — que temos uma forte democracia interna. Somos contra nós também”. É essa atitude modesta que levou ao desmantelamento temporário do grupo em 2008, quando eles sentiram que sua popularidade crescente e o interesse nos combates do Çarşı estavam eclipsando o time de futebol que tanto amam.

Eles alegam não se ligar a nenhuma agenda política em particular, mas o Çarşı é sem dúvida politicamente consciente. “Não temos uma posição política, não somos afiliados a nenhum partido político; nossa posição é ser Beşiktaşlı”, eles me disseram. “E o que significa ser Beşiktaşlı? Protegemos os oprimidos, aqueles que precisam ter suas vozes ouvidas. Apoiamos a juventude, nos esforçamos para construir uma democracia mais moderna, uma democracia mais forte.”

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Um artigo da New Yorker de 2011 cita uma manchete que apontava a arquibancada do Beşiktaş como “o único lugar onde o problema armênio foi resolvido” — uma declaração fazendo referência ao estereótipo de que “armênios na Turquia [dois países que não tem exatamente a melhor história em comum] torcem para o Beşiktaş”. Perguntei aos membros sobre a imagem pluralista do Çarşı, já que um dos membros mais proeminentes, Alen Markaryan, é de descendência armênia. “Essa é a mensagem”, eles responderam. “Nossa dinâmica interna é muito forte. Somos o time do povo; nossos esquerdistas são populistas, nossos nacionalistas são populistas, nossos islâmicos são populistas — você não vai encontrar extremistas no Çarşı. Nossos membros apoiam e protegem as pessoas e o Çarşı é como um guarda-chuva sob o qual todo mundo é incluído.”

Mas o que o envolvimento deles com a resistência revela sobre o grupo? Primeiramente, essa não é a primeira vez que o Çarşı expressa sua opinião sobre a “renovação urbana”, como os planos para o Parque Gezi foram rotulados. Em 2007, eles protestaram contra a demolição de outro marco de Istambul: o cinema Muhsin Ertugrul. Antes, durante a temporada de 2005/2006, eles colaboraram com o Greenpeace na oposição a construção de uma usina nuclear em Sinop (uma cidade turca perto do Mar Negro), participando de manifestações e realizando shows no Estádio Inönü. Sendo assim, a presença deles nesse novo protesto não foi uma grande surpresa.

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O envolvimento deles num estágio inicial tão crucial — e o envolvimento de torcedores de outros times e de vários grupos socioeconômicos — também confirmou que esse movimento busca ser um movimento do povo, uma resistência inata secular pedindo por liberdade e direitos básicos, livre de uma visão política maior. O que separa isso de, digamos, as alianças nacionalistas-secularistas do passado.

O envolvimento do grupo contribuiu para o status cívico e democrático desse movimento urbano, que tem como objetivo unir as pessoas de várias origens com o interesse em comum de proteger um espaço público cultural compartilhado (é interessante notar que o envolvimento do Çarşı não começou quando a polícia chegou ao Beşiktaş. No primeiro dia de protestos, alguns torcedores do time foram até a Taksim para salvar as árvores do Parque Gezi).

Esse movimento parece um fenômeno de raiz, impossível de reduzir e confinar num corpo político, dificultando o entendimento por parte dos partidos e dos próprios políticos. E a voz única do Çarşı no movimento é considerada imperativa para alguns. O que talvez explique por que Cem Yakışkan e outros 23 membros do grupo foram presos na manhã de domingo.

Eles foram detidos pela polícia por estarem “organizando uma baderna” e “cometendo crimes com a intenção de saquear”. O grupo imediatamente organizou uma manifestação pacífica, dizendo a seus membros para usar o bom senso e não confrontar a polícia — a continuação de uma atitude não-violenta e conciliatória que eles têm mantido desde o primeiro dia. “Enquanto tivermos um forte senso de humor, não deixaremos de existir, vamos prevalecer”, os membros me disseram antes de desligarmos. “Este é o movimento do povo; queremos dizer alguma coisa, queremos mostrar como lutar sem violência, como contra-atacar com humor.”

Siga a Esra (@esragurmen) e o Ekin (@eqopeqo) no Twitter, e veja mais do trabalho do Ekin aqui.

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