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Porque é que o Festival da Eurovisão deste ano é tão controverso

Israel está a postos para receber o concurso contra um pano de fundo de protestos, boicotes e propaganda política.
fãs da Eurovisão
Fotos por Chris Bethell.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE UK.

Há quase um ano, encontrei-me com Noel Curran - Director Geral da União Europeia de Radiodifusão, a organização que produz o Eurovision Song Contest - num pátio nos bastidores da Altice Arena em Lisboa, onde decorreu a edição de 2018 e explicou-me porque é que achava que a competição era tão importante. "Basta assistires ao espectáculo no sábado à noite - vê como é que os artistas interagem uns com os outros", disse. E acrescentou: "Quando uma música corre bem, vira-te e vê o que os concorrentes na sala verde estão a fazer. O facto de haver países que estão literalmente em guerra a cantarem no mesmo espaço, com as delegações juntas na mesma sala, é uma afirmação em si mesma".

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A sua mensagem era simples: a Eurovisão une a Europa através da música. E dado o quão dividido o Mundo pode muitas vezes parecer, a união e a solidariedade são tão importantes hoje como quando a competição começou, em 1956. Seja qual for o país que leve a coroa na noite de sábado, 18 de Maio, parece improvável que, desta vez, a Eurovisão alcance esse objectivo grandioso - parece mais o contrário. Não só este ano não está sequer a ser realmente realizado na Europa, como está a acontecer em Israel, tornando-o já num dos eventos culturais mais divisivos do ano.


Vê: "Devoção, entusiasmo e loucura. Um documentário sobre o que é ser fã de música"


É a regra da Eurovisão que o país vencedor receba o concurso no ano seguinte. Portanto, desde o momento em que foi anunciado no evento de 2018 que Israel tinha conseguido o maior número de pontos com "Toy" - uma música kitsch, contagiante e francamente louca - era óbvio que o concurso deste ano ia ser controverso. Para alguns, celebrá-lo em Israel vai mais além do que continuar uma tradição - de acordo com mais de 100 celebridades signatárias de uma carta aberta, incluindo Stephen Fry, Sharon Osbourne, Kiss Gene Simmons e Peter Gabriel, é uma oportunidade para o poder unificador da Eurovisão construir pontes. Outros vêem a coisa de forma diferente [em Portugal vários artistas assinaram uma carta em que pediam a Conan Osíris, representante português no Festival para boicotar o evento, tendo Roger Waters também pedido ao músico para reconsiderar a participação].

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"Em Maio, a BBC pretende transmitir o Eurovision 2019 de Israel", escreveu outro grupo de artistas, incluindo a actriz Maxine Peake, Vivienne Westwood e a banda Wolf Alice numa carta aberta muito diferente, "a Eurovisão pode ser entretenimento leve, mas não está isenta de considerações em relação aos direitos humanos - e não podemos ignorar a violação sistemática de Israel dos direitos humanos palestinianos". Os signatários argumentavam ainda que as emissoras estatais têm o compromisso de proteger a liberdade de expressão e que o evento de 2019 devia ser transferido para um país onde "crimes contra essa liberdade não estejam a ser cometidos".

A pressão pública forçou algumas cedências, mais notavelmente a transferência do Eurovisão de Jerusalém para Tel Aviv. Mas, está claro que os críticos mais contundentes de Israel se oporiam a sediar o evento em qualquer lugar que seja dentro das fronteiras do país, argumentando que isso maquilha as acções de um estado que, regularmente, viola as convenções da ONU com a sua ocupação de territórios palestinianos e cuja resposta dura aos protestos que começaram na fronteira de Gaza no ano passado já deixou nove mil feridos e 183 mortos.

Enquanto apenas 50 quilómetros separam Tel Aviv e Jerusalém, no que diz respeito à óptica política a diferença é enorme. Poucas pessoas que reconhecem o Estado de Israel refutariam que Tel Aviv é parte de Israel, mas a questão de quem é o dono de Jerusalém é um pouco mais contestada - tanto palestinianos como israelitas afirmam que é a sua capital.

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É por isso que a maioria dos países-membros da ONU tem as suas embaixadas em Tel Aviv e é por isso que a decisão de Trump no ano passado de mudar a embaixada dos EUA para Jerusalém foi recebida com tanta raiva e protestos que deixaram 59 palestinianos mortos a tiro. É também por isso que Netanyahu - cujo governo de direita não é conhecido por ser conciliador em relação ao povo palestiniano - estava tão interessado em realizar o evento em Jerusalém; teria sido outro sinal para o Mundo de que Jerusalém pertence a Israel.

Mas, em Junho passado, Bibi e os seus ministros concordaram em não interferir e deixar Tel Aviv ser o palco de toda a acção. A cidade costeira é a capital LGBTQ de Israel, o coração da cena musical e nocturna do país - e não o centro de uma das disputas internacionais mais complexas do Planeta. Realizar ali o concurso é um caso muito mais fácil de defender.

Tradicionalmente, apoiar os palestinianos ao boicotar bens, produtos e serviços israelitas tem tido um impacto limitado na economia israelita - embora, internacionalmente, seja uma medida popularmente adoptada. Mas, os boicotes culturais causaram particular preocupação às autoridades israelitas. Quando grandes artistas anunciam concertos na Terra Santa, muitas vezes há pedidos para que cancelem os espectáculos, ou que sejam acusados de "lavagem artística".

Lana Del Ray desistiu de tocar num festival em Tel Aviv no ano passado ; Lorde fez o mesmo. Muitos músicos continuam a tocar em Tel Aviv, mas o impacto de cada artista que se recusa a tocar é muito maior do que uma pessoa comum que decide não comprar mais laranjas israelitas. A organização do Eurovisão por parte de Israel é uma enorme perda para aqueles que boicotam, assim como o facto de Madonna actuar na final da noite de sábado, apesar dos esforços para a convencer a desistir. No entanto, há relatos dos media israelitas que sugerem que as suas escolhas de músicas podem ser politicamente inadequadas e que ela gravou uma espécie de mini campanha política que poderá "causar controvérsia".

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Apesar de tudo isso, em Tel Aviv as engrenagens da máquina do Eurovisão já estão em acção. O evento anual do tapete vermelho (que será laranja este ano) que dá início às festividades acontecerá no domingo, 12 de Maio, na Praça Habima; os ensaios para as eliminatórias já começaram e os fãs estão quase a aterrar no Aeroporto Ben Gurion para a sua peregrinação anual à competição mais camp do Mundo. No sábado à noite, 200 milhões de pessoas em todo o Planeta vão estar sintonizadas.

Tudo isso acontecerá frente a um cenário político inseguro. Na terça-feira, foi reportado que qualquer activista que as autoridades israelitas acreditem que possa "perturbar" a Eurovisão terá a entrada recusada na fronteira. "Não queremos proibir a entrada no Estado de Israel às pessoas. Mas, por outro lado, se tivermos a certeza de que são pessoas activistas anti-Israel e cujo único propósito é perturbar o evento, então usaremos os instrumentos legais que temos em relação à entrada no país", garantiu o porta-voz do Ministério das Relações Externas, Emmanuel Nahshon. Interpreta como quiseres, mas tendo em conta que em 2018 o Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel publicou uma lista de 20 ONGs cujos funcionários seriam proibidos de entrar no país - incluindo o comité nacional do BDS -, aquilo que pode ser considerado "uma perturbação" permanece incerto.

Apesar de nenhum artista ter desistido do evento devido à localização do mesmo, os performers "anti-capitalistas bondage" da Islândia, Hatari, já irritaram algumas pessoas de direita ao dizerem numa conferência de imprensa que queriam "acabar com a ocupação". Um pouco mais tarde, comentaram a visita que fizeram a Hebron - uma cidade palestiniana - numa entrevista e falaram abertamente sobre "o apartheid" que testemunharam. "Podemos consciencializar [sic] sobre a situação aqui, com o nosso poder de passar uma mensagem e definir uma agenda", salientou um membro da banda. E é claro que existem tentativas de outros protestos dentro e fora do palco. No ano passado, um invasor de palco agarrou o microfone da concorrente britânica, SuRie, a meio da actuação.

Tudo isto representa apenas uma parte da história política do Festival da Eurovisão. A lenta e desordenada tentativa da Grã-Bretanha de deixar a União Europeia será, sem dúvida, um ponto de discussão durante o espectáculo, assim como o facto de a representante da Ucrânia se ter retirado em Fevereiro, depois de uma tensão com a Rússia a ter feito sentir-se uma "ferramenta política". Para além disso, com o estado cada vez mais volátil da política israelita - esta semana, tanques e aviões atingiram 350 alvos em Gaza, deixando 25 mortos, enquanto mais de 700 rockets e projécteis foram disparados contra Israel e os políticos ultra-religiosos fizeram uma pausa nas negociações, porque estão aborrecidos com o facto de haver ensaios no sábado (Sabbath) -, acabamos por questionar, afinal, o que é que vai ser o centro das atenções no Festival da Eurovisão 2019: o espectáculo ou a política?


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