Música

O herói da música valenciana que criou o jingle do Mercadona

Lluis Miquel Campos​ explica pela primeira vez como criou o jingle publicitário mais famoso de Espanha.
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Foto à esquerda, cortesia Mercadona. Foto à direita, cortesia Lluis Miquel Campos.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.

A música do Mercadona. A canção feliz do Mercadona. É certamente o jingle mais trauteado da história recente de Espanha, pelo seu poder inexplicável de, involuntariamente, o deixarmos entrar no cérebro para lá ficar durante horas, sem qualquer escapatória. Soa-te familiar, certo? Grande parte da culpa, para não dizer toda, recai sobre o seu criador anónimo. Anónimo até agora [Nota do editor: o Mercadona acaba de abrir o seu primeiro estabelecimento em Portugal e, de acordo com os responsáveis pela comunicação da empresa no nosso País, contactados pela VICE, o jingle será o mesmo e vai poder assim cruzar a fronteira e ocupar o lugar que merece no imaginário popular].

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Lluis Miquel Campos nunca falou com a comunicação social sobre isto. Pioneiro no sucesso do que ficou conhecido como "Nova Cançó del País Valencià", nos anos 60, com o seu grupo Els 4 Z, este valenciano de 74 anos co-fundou e dirigiu o mítico estúdio de gravação Tabalet de Alboraya, Valencia, local de culto da cena musical valenciana, que conta também com uma longa história na criação de jingles publicitários. É aqui que entra o Mercadona, mas tudo a seu tempo.

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Lluis Miquel (segundo a contar da esquerda) partilhou palcos e amizades com os artistas espanhóis mais célebres das últimas décadas.

Depois de uma importante série de e-mails trocados com várias pessoas com o objectivo de o encontrar, consegui contactá-lo para que me explique como é que foi forjado um trabalho tão maravilhoso e que tipo de repercussão teve a música - A MÚSICA - na sua vida, tanto a nível pessoal, como profissional. Prepara-te, porque o que vem a seguir é uma história memorável com o Mercadona como co-protagonista.

VICE: Olá Lluis Miquel. Como é que um músico que produz e cria música da Nova Cançó del País Valencià tem a ideia para o jingle do Mercadona?
Lluis Miquel: Montei os estúdios Tabalet em 1977 com um amigo de Barcelona, porque não havia estúdios de gravação no País Valenciano e, para gravar os álbuns da minha banda, Els 4-Z, tínhamos sempre de ir aos estúdios da EMI-Odeon, na cidade condal.

Metemos mãos à obra e transformámos uma casa no campo no nosso estúdio. Como estudei Belas Artes e estava no mundo da publicidade, comecei a angariar clientes da zona para ganhar dinheiro. Um dos meus primeiros clientes, em 77 ou 78, foi a rede de supermercados Doña Amparo, também criada por Juan Roig [o fundador do Mercadona]. Fizemos-lhes um jingle, os primeiros anúncios de rádio e algumas outras coisas. Logo depois, a rede Doña Amparo desapareceu e criou-se o Mercadona. Aconteceu a mesma coisa: faltava-lhes algo para os altifalantes das lojas e anúncios para a rádio e assim. Foi aí que criei o (famoso) jingle.

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Os estúdios Tabalet foram os primeiros estúdios de gravação da comunidade autónoma de Valência e o primeiro sítio em que fizeram a dobragem de um filme para valenciano.

E como foi o processo criativo?
O célebre "Mercadoooona, Mercadona" ocorreu-me quando estava sozinho no escritório. Tivemos um mês para fazer a encomenda inteira, que entre outras coisas incluía criar um jingle para o spot publicitário. Normalmente, quando compões, pegas no piano e começas a testar, mas dessa vez foi diferente. A melodia veio-me à cabeça. Cantarolei-a várias vezes e, em seguida, acrescentei-lhe o nome da marca. Há momentos em que uma música se compõe em cinco minutos sem querer e outras a que dás mais importância e demoras vários anos.

De seguida subi ao estúdio onde estava o músico e cantei novamente o "Mercadooona, Mercadona". Tínhamos a parte central, o motor, mas depois foi complicado, porque tivemos que fazer uma peça de 30 segundos, outra de um minuto e outra de dois minutos. Para o fazer foi necessário um desenvolvimento musical completo.

Foi logo a cantora que todos conhecemos quem gravou a música nos Tabalet no final dos anos 70?
No princípio cantei-a eu, para a maquete que apresentámos ao cliente. Uma vez aprovado, tínhamos um coro e todo um grupo para gravar a harmonia. Quanto ao refrão, que é a parte famosa da música, tenho quase a certeza que é o mesmo que gravámos no princípio. Depois fizemos uma versão da Páscoa, outra do Verão, coros com crianças para o Natal, com ondas do fundo do mar: muitas versões da música original.

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Em 1967 Lluis Miquel foi detido por cantar em público em valenciano. Até 1975 não voltou a cantar, ano em que criou com outros músicos a banda Els 4 Z.

E foi Juan Roig quem te encomendou a música?
Não, foi alguém da sua equipa. Os escritórios do Mercadona ficavam muito perto de Alboraya, em Tabernes Blanques. Como trabalhávamos para eles, tinha lá algumas pessoas para tratar da publicidade. Mas, olha que com Juan Roig falei muitas vezes, em eventos culturais, por exemplo.

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A cadeia de supermercados Mercadona registou a música a 12 de Novembro de 2014. Tu recebes royalties?
Não, nada. Mas, não tenho nenhum tipo de remorsos, embora seja difícil de acreditar. Naquela época tinha muito trabalho, porque começámos a gravar com muitas bandas de música, rock ou folclore e, simplesmente, não registei a música. Acho que o Mercadona pensou: "Ui, não temos este jingle registado". Parece-me normal. A sério, não estou chateado, nem acho que fui roubado. Acho que eles não me avisaram, porque talvez nem soubessem quem era o criador.

Sabes o que é… eu conheço o Juan Roig desde os tempos do Doña Amparo e acho que ele é uma excelente pessoa que faz muitas coisas por Valência. A sua mulher também, que criou uma fundação para a recuperação de obras artísticas. E a questão do dinheiro nunca me incomodou muito. Quem me conhece sabe que eu não sou o tipo de pessoa que só pensa em dinheiro. Por outro lado, também fizemos os jingles de tudo o que dizia respeito aos brinquedos Famosa, Licor 43, ou Nenuco. A canção “Los juguetes de famosa van camino del portal” foi criada em Tabalet, assim como a canção do navio pirata da Playmobil. E nesses projectos tínhamos os direitos de autor e de criação artística.

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Lluis Miquel foi também um grande impulsionador de artistas que não tinham meios para gravar música de estúdio, como por exemplo o cantor Francisco, depois de o ver a actuar na rua.

E quanto é que te pagaram na altura?
Não me lembro, mas, não sei, umas 100 mil pesetas - ou seja 600 euros. Talvez esteja enganado, mas seria algo por aí. Não penses que possa ter sido muito mais. Além disso, a nós interessava-nos era trabalhar, portanto éramos muito abertos. Logo a seguir a isso começaram a vir muitas marcas que queriam trabalhar connosco.

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Imagino que sintas um certo orgulho por teres criado a "Macarena" dos jingles publicitários.
Sim. Há muitos anos que amigos e conhecidos se lembram de mim por causa da música. As pessoas daqui normalmente sabem que esse jingle foi feito em Tabalet. Fico feliz que tenham descoberto que fui eu que a fiz, é um tipo de trabalho "escondido", que normalmente não é reconhecido. Por exemplo, não sei quem fez o jingle da Coca-Cola nem qualquer outro conhecido.

Mas conto-te uma coisa: quando saiu a notícia que o Mercadona tinha registado o jingle, aí já punham o meu nome. Diziam que tinha sido o Lluis Miquel a fazê-la nos estúdios Tabalet. Fiquei surpreendido, porque nunca tinha dado nenhuma entrevista sobre isso. Esta é a primeira vez que falo com um meio de comunicação sobre a música. Em 2014 não fiz declarações.

Tens uma grande relação com a cadeia de supermercados. Fazes lá as compras?
Sim, tenho um perto de casa, o que é muito conveniente. Podia ir a qualquer outro, porque é uma das poucas liberdades que nos resta, mas faço lá as compras. Além disso, encontrei lá o Juan Roig uma ou outra vez.

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Lluis Miquel foi uma referência da Nova Cançó valenciana.

E tens algum produto preferido do Mercadona, como o famoso hummus ou o guacamole?
Não, por acaso não me vem nenhum produto concreto à cabeça.

Para terminar: o que é que aconteceu aos míticos estúdios Tabalet? Quando comecei a investigar sobre o tema li que tinham fechado, mas que depois voltaram a abrir.
Em 2010, o Canal 9 devia-nos entre 300 a 400 milhões de pesetas - entre 1,8 e 2,4 milhões de euros - relativos a serviços de dobragem. Há cerca de três ou quatro anos que não nos pagavam, ou que pagavam só parte e um negócio como este tem um monte de despesas, porque tinhas que pagar a directores de dobragem, aos actores que as fazem, aos técnicos e assim por diante. Eles estrangularam-me até eu ter que declarar falência e fechar com uma dívida da qual nunca recuperei.

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Era um estúdio que funcionava muito bem. Chegámos a ser 26 pessoas, mais músicos e colaboradores. Estávamos ao nível de Barcelona e Madrid. Fechei por causa deles, mas quando vês o que foi feito com o dinheiro público na visita do Papa, ou na F1… Como sempre, os trabalhadores é que pagam, tal como pagaram os 1.800 funcionários do Canal 9 que trabalhavam na televisão da região autónoma. Há uns anos, o espaço foi reaberto como estúdio de gravação e dobragem por César Lechiguero e agora chama-se Alboraia Art Studio.

Muitíssimo obrigado, Lluis Miquel. Foi um prazer conhecer a tua história.
Eu é que agradeço.


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