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Entrevista

“A aposta na cultura é a aposta inteligente de futuro”

Manuel Halpern, escritor e editor no Jornal de Letras, Artes e Ideias, fala dos desafios que se colocam ao jornalismo no mundo das fake news e dos “factos alternativos” e do panorama literário nacional
Manuel Halpern. Foto por Jacinto Silva Duro

Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.

Jornalista e crítico do Jornal de Letras, Artes e Ideias, Manuel Halpern é autor da crónica O Homem do Leme e dos livros O Futuro da Saudade – O Novo Fado e os Novos Fadistas (2004); O Segredo do Teu Corpo/Palco (peça encenada em 1999 e 2006) e Fora de Mim (ficção, 2008). Nascido em Lisboa há 43 anos, é um dos fundadores da revista literária A Morte do Artista.

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Licenciou-se em Comunicação Social, pela Universidade Católica Portuguesa, com pós-graduação em Crítica de Cinema e Música Pop, na Faculdade Ramon Lull de Barcelona e foi bolseiro da FLAD (Washington, 2013) e da Fundação Gabriel García Márquez (Cartagena de Índias, Colômbia, 2014). Membro da Federação Internacional de Críticos de Cinema, frequentou quatro cursos de escrita para cinema de Robert McKee e integrou o júri de vários festivais e prémios.

Diz que, com as redes sociais digitais, o público pede novas coisas do jornalismo: "Não quer saber o resultado do futebol, porque tem acesso à informação por outras fontes. Quer as histórias à volta do jogo. É cada vez mais difícil ter um 'furo' jornalístico. As pessoas interessam-se por uma boa história assinada, bem escrita e com boas fotografias".


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JORNAL DE LEIRIA: Recentemente, juntamente com outros autores, entre eles o leiriense Firmino Bernardo e Mário de Carvalho, lançaste a revista literária A Morte do Artista. Como surgiu esta publicação?

Manuel Halpern: Uma das peças teatrais do Firmino ganhou um prémio na Sociedade Guilherme Cossoul e a sociedade promove anualmente uma espécie de feira de editores independentes, chamada Reverso. O Firmino teve a ideia de nos desafiar a fazer qualquer coisa a partir dos nossos livros para apresentar nessa feira. Fizemos a selecção e ele articulou e compilou os textos para uma leitura encenada a que chamámos A Morte do Artista. Como ficámos satisfeitos com o resultado, e como havia a ideia do João Eduardo [Ferreira] de dar um prémio simbólico a um escritor, lembrei-me de fazemos uma revista. Foi uma coisa meio disparatada, lançada num jantar, mas eles levaram aquilo tremendamente a sério…

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Escrevemos e escolhemos textos, elegemos as pessoas que queríamos desafiar a participar, falámos com o Mário de Carvalho, que escreveu um texto para a revista, o André Ruivo cedeu algumas ilustrações e o Paulo Romão Brás fez o trabalho gráfico. Partimos para isto de forma amadora, sem qualquer preparação… Pensámos que íamos vender apenas nos lançamentos e, quando as livrarias começaram a pedir para lá irmos, chegámos à conclusão de que nem sequer tínhamos base legal para lá deixar a revista e, muito menos, uma margem de lucro para elas, porque quisemos fazer o preço mais baixo possível para que ninguém deixasse de comprar A Morte do Artista.

O titulo que escolheram é curioso. Bastas vezes, é a "morte do artista" que torna a sua obra conhecida…

Uma das coisas boas desse título são as várias leituras possíveis. A ideia apareceu na leitura encenada na Guilherme Cossoul, porque nós vendíamos os nossos próprios livros. Quando um autor vende e tem de fazer publicidade a si próprio, é "a morte do artista".

Actualmente, os escritores têm, cada vez mais, de fazer essa auto-promoção. Alguns, como Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe ou José Luís Peixoto são uma espécie de estrelas pop, como se fossem uma banda chamada Os novos escritores portugueses. Porém, é um grupo restrito para o qual há já algum tempo que não têm aparecido novos talentos. Concordas?

Tens alguma razão no que dizes. A nova geração faz auto-promoção sem pudor. Estive há pouco no I Festival Literário do Sal, em Cabo Verde, com curadoria do José Luís Peixoto, onde ele falou disso abertamente. "Há escritores que têm pudor em quererem ser lidos e há outros que querem ser lidos. Se querem ser lidos, têm de fazer por isso e, como tal, não devem ter receios". Chegou a dizer que foi a uma zona do Brasil, a sul, onde andou a distribuir livros em Português e Espanhol pelas aldeias. Voltando à tua pergunta, na nova geração, identifico a Ana Margarida de Carvalho, que começou a publicar mais tarde do que os nomes de que falaste, e vai aparecendo um nome ou outro, mas dá a ideia de que a anterior geração de escritores ainda não encontrou a geração seguinte.

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E a ligação ao Brasil? Os nossos escritores costumam fazer digressões por lá, mas não parece ser muito comum os autores brasileiros virem a Portugal.

De facto, não há muitos autores brasileiros a darem-se a conhecer em Portugal. A nossa ligação com o Brasil é especial… Conhecemos muito do país através das novelas e da música, mas há um preconceito de que "o Brasil é bom é para a festa". Como a literatura parece ser uma "coisa séria" e "o Brasil é bom é para festa", olha-se para os escritores brasileiros com desconfiança. Nas nossas universidades, entre um livro em Inglês e a sua versão brasileira, prefere-se a inglesa.

Por outro lado, se temos preconceito em relação ao Brasil, temos paternalismo para com os países africanos. O preconceito não se coloca, até porque, em termos ortográficos, antes do Acordo Ortográfico, fazíamos todos parte do mesmo grupo, embora haja, agora, três grupos, quando havia apenas dois. Além disso, em África, a referência editorial é sempre Portugal, coisa que não acontece no Brasil. Espanha soube liderar o processo da língua com as suas antigas colónias. É a mãe da língua e os restantes países têm de seguir essa regra, com eventuais adaptações. No nosso caso, o Brasil é tão grande que se está a marimbar para Portugal.

A existência de um Jornal de Letras, num País onde se diz que se lê pouco, é uma boa notícia… ou é mau sinal haver só um jornal de letras?

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Acho que não é nada mau haver um JL. É um caso raro, independentemente do País de que se esteja a falar. Em Espanha, há várias revistas literárias, mas jornal, penso que não há. O Jornal de Letras é um caso raro e especial e é um milagre ter durado todos estes anos. O mérito é quase todo do director, José Carlos de Vasconcelos, que faz uma ginástica incrível para que a publicação resista, usando como pilares a literatura e a Lusofonia, dando prioridade ao que é português e não indo atrás de modas.

É estranho, mas segundo os dados que avaliam os índices de leitura em papel, entre as publicações nacionais, no ano passado, todas as audiências baixaram à excepção das do JL. Não foi um crescimento significativo, mas é curioso. Talvez haja nos nichos um caminho para o jornalismo não digital. Talvez uma publicação ligada à cultura tenha mais possibilidade de resistir em papel. A seguir à Bola, é o jornal português que chega a mais sítios no Mundo, com as devidas ressalvas em termos de números. Onde há um Leitorado Português, há um exemplar do JL, que é lido por muita gente.

Como é ser-se jornalista cultural em Portugal?

Antes de tudo, é ser-se jornalista. Na redacção, recebemos estagiários das licenciaturas de Comunicação e outros da Faculdade de Letras e, normalmente, preferimos os primeiros. Estamos mais próximos do que se faz no Correio da Manhã do que na Colóquio/Letras. A base de tudo é o jornalismo. Temos as mesmas dificuldades que se encontram noutros jornais: as redacções são cada vez mais pequenas e cada vez se exige mais de quem fica. Trabalhamos para a edição em papel e para o site e, ao mesmo tempo, despedem-se pessoas. Quando fui para o JL, há quase 20 anos, éramos 15, agora somos muito menos. Já não há tempo para ir às coisas, nem para as reportagens que gostávamos de fazer. Ficamos demasiado presos à agenda e é raro conseguir-se fazer um trabalho de fundo. A oferta cultural aumentou em todo o País, mas, infelizmente, não conseguimos ir a todos os sítios onde gostaríamos.

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Fora de Lisboa e Porto, que coisas interessantes há a acontecer?

Em Leiria, há um festival de música muito antigo… Em Gouveia, há um festival de rock progressivo muito bom. Esteve lá, há dias, o Rick Wakeman, da Viagem ao Centro da Terra. Há 20 anos que acompanho o festival de curtas-metragens de Vila do Conde, que fez agora 25 anos e é o mais importante certame de cinema nacional, apesar de o Indie ter ganhado bastante importância. O interior do País também tem uma boa quantidade de festivais literários e há a Póvoa e as Correntes d'Escritas, Óbidos e Cascais a trazerem nomes importantes da literatura.

No entanto, os festivais a que tenho ido no interior, muitas vezes, têm falta de público local e funcionam em círculo fechado. A maioria das pessoas que estão na audiência também vai estar no lado de lá, no palco, daí a umas horas. Há casos notáveis de esforço, como o Festival de Cinema Ambiental de Seia e, em Lisboa e Porto, é incrível a quantidade de oferta, sempre com salas cheias. Recordo-me de quando havia pouca coisa e Portugal não fazia parte do circuito europeu. Há um boom turístico em Lisboa e Porto e há turismo cultural, embora haja muita coisa que continua a não passar por cá. A aposta na cultura é a aposta inteligente de futuro e não pode ser vista como produtora de contrapartidas a curto prazo.

Já não somos o País dos três F?

Substituímos o Fado pelo Festival da Canção… Estou a brincar, pois não se pode fazer essa comparação com o Estado Novo. No entanto, são coisas que exacerbam o orgulho nacional… o Campeonato Europeu de Futebol, o Festival da Canção, Fátima… talvez Fátima não, mas foi bom para o turismo! Sonhámos tantos anos com uma proeza no futebol e conseguimos, mesmo com a Selecção a jogar pior naquele Europeu do que noutros, ou até na recente Taça das Confederações. Já o Festival da Canção, foi extraordinário. Aquela canção, que é uma balada jazz, não é a melhor que já se fez em Portugal, mas é diferente do estilo do festival. Há muito que não via a Eurovisão e fiquei admirado com a falta de qualidade. À excepção de uma ou outra canção, aquilo era simplesmente horroroso. Ter ganhado uma música simples, cantada de forma tão singela, com um estilo jazzístico não muito português, mas em Português, é motivo de orgulho.

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"Os ronaldos e os salvadores sobral do cinema também andam aí".

O cinema ainda é a tua grande paixão?

Será sempre. Claro que se perde alguma inocência quando se tem de ver muitos filmes numa perspectiva de análise. Este ano, tivemos o filme do João Pedro Rodrigues, O Ornitólogo, que tem um universo especial, muito interessante e bem feito. Depois, houve o São Jorge, que fala do recente cenário da crise. O Marco Martins tem, nesse filme, todos os ingredientes para o sucesso. É acessível e toca as pessoas. Tenho curiosidade pelo novo da Teresa Vilaverde, que também fala sobre a crise e que deverá estrear em Setembro, e pelo Fábrica do Nada, que passou no Indie e é bastante militante. Fala de uma luta operária numa fábrica, misturando documentário com ficção.

Este ano, em Vila do Conde, a competição nacional foi extraordinária e mostrou que, no cinema, há toda uma geração que já vem do Miguel Gomes e do João Salaviza que tem um talento incrível. É um fenómeno novo. Tivemos vários realizadores que se destacaram ao longo das décadas, como o Pedro Costa, ou o Manoel de Oliveira, mas nunca houve uma geração inteira, um grupo grande como agora. Portugal foi o País com mais curtas em competição em Cannes. Os ronaldos e os salvadores sobral do cinema também andam aí.


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Para um jornalista, como é ser-se escritor, não obstante os vícios de escrita promovidos pela profissão?

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O José Manuel Fajardo, que é jornalista de profissão e escritor, disse, numa entrevista, que "o jornalismo é um grande ginásio para a escrita". Já o José Carlos de Vasconcelos garante que a coisa mais difícil de escrever são as breves, onde há um rigor absoluto na economia das palavras. É difícil e obriga ao domínio linguístico. Não estou a dizer que jornalismo é literatura, porque não é. Há uma graduação nos artigos, onde a liberdade estilística vai aumentando e, inevitavelmente, há sempre uma limitação que constrange a "outra" escrita, porque o jornalista escreve a pensar no mínimo denominador comum.

Mesmo no JL, não podemos assumir que o leitor já sabe tudo e que já leu as obras completas de Saramago. Nos meus textos sobre cinema e nas crónicas Homem do Leme misturo algumas coisas que escrevo fora do JL, com um estilo que deixa de ser puramente jornalístico e tomo algumas liberdades. Isto não quer dizer que o esforço linguístico de escrever artigos para jornais não seja útil para um escritor.

Notícias falsas, "factos alternativos", pós-verdade são alguns dos desafios que se têm colocado aos jornalistas e à sociedade nos últimos tempos. Por que razão é mais fácil ao ser humano acreditar na mentira fabulosa do que na simples verdade?

Em parte, é uma questão de educação. A geração mais velha habituou-se a confiar nos jornais e não concebe que os jornais publiquem mentiras. Claro que isso acontece em notícias sobre contratações nos jornais desportivos, mas, regra geral, as pessoas habituaram-se a acreditar na imprensa e a não ter de se preocupar em distinguir notícias falsas das verdadeiras. Quem não está alertado para o Facebook e para as fake news tem um grande desafio. Os miúdos, se calhar já o estão e perceberam que há ali um novo código e que não se pode acreditar em tudo o que aparece escrito na internet.

Aos poucos, isto vai estabilizar e as pessoas passarão a fazer como os jornalistas e a verificar as fontes. Além disto, o jornalismo de referência tem de se deixar de clickbaits, porque as pessoas percebem e voltam as costas aos órgãos que os usam. Também não pode deixar de ter artigos de fundo. Não pode ser tudo coisas curtas com fotografias. O caminho para o jornalismo de referência é o contrário. Temos de contar histórias!


Jacinto Silva Duro é jornalista do JORNAL DE LEIRIA.

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