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Drogas

Há anos que snifo coca sem saber o que é realmente cocaína

O dealer com quem tenho uma relação mais próxima disse-me que era capaz de fabricar um quilo de coca sem ter um único grama de cocaína. Mas, então, o que é exactamente a droga que nos vendem? De onde vem?
Foto via LY Lawyers.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.

Gostava de escrever sobre cocaína, mas temo que não saiba realmente o que é a cocaína. Em muitas ocasiões, talvez demasiadas, comprei e snifei cocaína, ou algo do género, vendida por gajos dos quais nem sabia o nome. Dado que a cocaína é uma droga ilegal produzida a milhares de quilómetros daqui e cujo negócio é, aparentemente, gigantesco, lucrativo e causador de centenas de mortes, nunca consegui sentir-me nem orgulhoso, nem indiferente, nem uma merda.

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O que senti, isso sim, foi uma euforia fugaz e uma ressaca diabólica que, segundo os especialistas na matéria, são os efeitos provocados pelo consumo de cocaína. Senti-me omnipotente, senti um desejo incontrolável de falar e de que a noite não terminasse, mas também sofri um colapso de humor nos dias seguintes, assim como efeitos paranóicos e depressivos que, de acordo com os psiquiatras, são provocados pela cocaína. Mas, foi realmente cocaína aquilo que consumi?


Vê: "'El Naya': a rota secreta do tráfico de cocaína da Colômbia"


Numa destas noites o dealer com quem tenho uma relação mais próxima confessou-me, bastante intoxicado, supostamente de cocaína, que era capaz de fabricar um quilo de coca sem ter um único grama de cocaína. Falou-me sobre a subtil manipulação de placas e prensas, de medicamentos dos quais não me lembro o nome, de anfetaminas e de laxantes. "Mas então, querido dealer", disse-lhe "o que nós acabámos de snifar não é coca?". "Não", disse ele, "mas parece, não é verdade? A língua fica dormente, ficas excitado, os maxilares ficam tensos, apetece-te cagar e ficas com vontade de beber, de falar e de meter mais. Não são esses os efeitos da coca?". Nesse preciso momento comecei a duvidar se, tanto eu como ele, sabíamos o que realmente era a cocaína.

"A maior parte das vezes, drogamo-nos porque gostamos da sensação de não saber o que realmente estamos a fazer e, para isso, não precisamos de saber o que estamos a meter".

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Os últimos resultados emitidos pelo governo sobre a luta contra o tráfico de drogas indicam que o número de apreensões, especialmente de cocaína, subiram novamente depois de alguns anos de estagnação. No ano passado, Roberto Saviano, autor de Gomorra, publicou um livro, ZeroZeroZero, no qual desvenda os mistérios do negócio da coca, mas onde pareceu faltar-lhe algum tempo para lembrar que Espanha [e Portugal] é a porta de entrada para 90 por cento da branca que chega à Europa.

Por esta mesma ordem, no início deste ano, resolvi mudar de dealer. Renunciei aos serviços do gajo que me garantia fazer coca sem cocaína e encomendei os serviços de um senhor colombiano que assegurava uns 30 por cento de cocaína por cada grama que me vendia. Como era colombiano decidi acreditar na sua palavra, mas tenho de reconhecer que ainda não me atrevi a levar nem um miligrama ao Energy Control, o programa promovido pela Associação de Desenvolvimento e Bem-estar que se dedica a analisar as drogas daqueles - jovens ou não tão jovens - que querem drogar-se de maneira controlada.

A minha antiga psiquiatra, que trabalha com esta ONG, tentou convencer-me a fazê-lo, mas acho que não o fiz porque ninguém, lá no fundo, quer saber o que está a meter. Uma das milhares de razões que nos levam a drogarmo-nos pode ser encontrada precisamente nesta incerteza, nesse lugar em que fazemos uma coisa que não pode ser comprovada. A maior parte das vezes, drogamo-nos porque gostamos da sensação de não saber o que realmente estamos a fazer e, para isso, não precisamos de saber o que estamos a meter.

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A minha psiquiatra, que deixei de ver porque parecia mais drogada do que eu, não parava de falar do consumo responsável. Mas que raios quer isso dizer? Consumir sabendo as implicações? Meter só nos feriados e a horas decentes? Estar acompanhado por um adulto?

Recuso-me a analisar a substância que o meu dealer colombiano, que assegura 30 por cento de cocaína por grama, vende a 60 euros. E os restantes 70 por cento? A cocaína pura mistura-se nos mesmos laboratórios além-mar onde o produto é cozinhado. Se somarmos a isso as dezenas de mãos que depois o manipulam, a vontade de cada intermediário de lucrar o máximo possível com a mercadoria e a facilidade de enganar os consumidores que não querem saber o que estão a snifar, algum de vocês se atreve mesmo a afirmar que já provou cocaína a sério?

A minha ex-psiquiatra falava do consumo responsável, ao mesmo tempo que outra, com quem tenho uma relação mais próxima e que trabalhava na Cañada Real (Madrid) com toxicodependentes, me pediu encarecidamente para deixar de consumir. Alguns dos meus amigos que provaram cocaína nos Estados Unidos dizem que ninguém compreende a necessidade de ir à casa-de-banho depois da primeira linha.

Também há aqueles que desacreditam a dormência da boca e dos dentes, se bem que não nos podemos esquecer que a cocaína (ou melhor, o alcalóide dela resultante, mas isso seria complicar demasiado a coisa) era usada pelos dentistas no início do século XX. É preciso recordar que Freud a metia para estar mais desperto, que Sherlock Holmes (vulgo Arthur Conan Doyle) a snifava e que a Coca-Cola usava um derivado na sua fórmula secreta? (Esta última situação não é uma lenda urbana, está documentada no White Mischief: A Cultural History of Cocaine de Tim Madge).

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"Consomem cocaína todo o tipo de pessoas e de diferentes extractos sociais. E se não somos consumidores, pelo menos sabemos quem consome".

Os analistas confirmam: o consumo de drogas foi socializado e vulgarizou-se o seu uso e abuso. Consomem cocaína todo o tipo de pessoas e de diferentes extractos sociais. E se não somos consumidores, pelo menos sabemos quem consome. Ouviram Robert Downey Jr. a dizer que é preciso esforço para manter o nariz limpo? Viram vários deputados de mandíbulas tensas a rirem-se quando um deles disse ao ministro que no parlamento existiam muitos "praticantes de snif-snif"? Reconhecemos esse olhar de pupilas dilatadas, essa verborreia incontrolável, essa eloquência no limite da paranóia. Sabemos que a rapaziada se anda a drogar, que compra coca e se fecha nas casas-de-banho dos bares, provocando filas intermináveis de malta ansiosa para que chegue a sua vez de aviar umas linhas. Mas linhas de quê?

Tudo parece indicar que não é a cocaína que mais nos assusta. Os dados, as expressões, as declarações, unem-se à restante literatura sobre este tema. Não existe somente o livro de Roberto Saviano. A editora Malpaso acaba de lançar um livro que se chama simplesmente, Cocaína, com três aventuras de detectives sobre o uso, o tráfico e as suas consequências. Nos anos 70, Charles Nicholl, que se tinha tornado uma referência do snobismo hippie, já nos tinha avisado. Nos anos 80, como deixou claro Bret Easton Ellis, era a droga favorita dos yuppies. Os anos 90 conservaram essa frescura romântica, sobre a qual Ray Loriga escrevia e, na primeira década do ano 2000, Julián Herbert atreveu-se a preparar um pequeno, mas estimulante, Manual de Utilizador.

Mas existem muitos mais. A bibliografia sobre este tema é bastante extensa, divergente e mais ou menos aterradora, o que significa que a cocaína tem sido uma presença constante entre nós, observa-nos a dormir (ou demasiado acordados). A cocaína é viciante e uma destruidora de vidas, mas, graças às apreensões massivas, à irresponsabilidade social e à despreocupação de traficantes e consumidores, nem nos apercebemos disso. Ela existe, está em todo o lado, é perigosa e todos já a provámos, mas ninguém sabe realmente o que é a cocaína. Honestamente, ainda não sei se quero saber.


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