FYI.

This story is over 5 years old.

Games

A história do game de 'My Little Pony' que levou sete anos pra ser lançado

Esse dramalhão envolve nenhum dinheiro, altos processos da Hasbro e até o próprio criador do desenho animado.
Imagens: Mane6/Divulgação.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

Uma pessoa razoável pode olhar para Them's Fightin' Herds, um jogo cheio de cavalos fofinhos quebrando a cara uns dos outros, e supor que ele é baseado no desenho moderno My Little Pony. O design dos personagens é igualzinho ao dos personagens do desenho animado, como se tivessem sido desenhados pelo menos criador – ou um imitador muito bom. Tem uma boa razão pra isso: Them's Fightin' Herds começou como um videogame feito por fãs de My Little Ponychamado Fighting Is Magic, e as charmosas criaturas do jogo foram desenhadas por Lauren Faust, diretora criativa do reboot de 2010 de My Little Pony.

Publicidade

Them's Fightin' Herds ter chegado ao Steam no final do mês passado é uma conclusão surpresa para uma jornada rocambolesca de sete anos do fandom.

O jogo de luta construído sobre a propriedade infantil da Hasbro, cujos fãs hardcore adultos e principalmente homens são chamados carinhosamente de bronies, começou a ser desenvolvido no verão de 2011, e acabou envolvido numa disputa legal no ano seguinte. Levou tempo suficiente para os fãs imaginarem se os advogados da Hasbro estavam preparados pra fazer vista grossa. Mas em fevereiro de 2013, Fighting Is Magic foi efetivamente cancelado, e apesar das tentativas da equipe de fechar um acordo com a Hasbro, a companhia não estava interessada.

“Tem uma cratera gigante na minha mente envolvendo a linha do tempo dos eventos cercando o C&D [cessar e desistir, uma ordem judicial para caçar uma atividade], porque foi devastador”, me disse o designer de combate Omari Smith recentemente.

Sempre que um projeto de fãs é anunciado, especialmente um que gera tanta atenção, uma contagem regressiva começa. É muito provável receber uma carta bastante intimidadora — ou uma C&D — do advogado do proprietário dos direitos, e o projeto pode ser obrigado a acabar. É só jogar no Google “video game cease and desist”. Qualquer que seja a intenção dos fãs, não importa quão legal seja o projeto, e apesar de muitas horas gastas nele, eles não são donos das propriedades com que estão trabalhando.

Publicidade

Alguns argumentam que projetos de fãs que temem problemas legais devem ser feito em segredo, e só serem revelados quando o trabalho estiver completo e puder ser compartilhado com o mundo. Uma C&D ainda pode vir, mas vai ser tarde demais; o gênio já vai ter saído da lâmpada. Isso quase nunca acontece porque as pessoas naturalmente querem compartilhar o que estão fazendo.

Essa não era uma opção para Fighting Is Magic, porque o projeto aconteceu em grande parte sem querer, sua formação resultado de pessoas com ideias parecidas topando umas com as outras na internet.

Na primavera de 2011, um fã de My Little Pony chamado Anukan postou uma série de imagens brincando com como seria um videogame baseado no universo do desenho.

“Nunca achei que aqueles screenshots seriam levados a sério”, disse Anukan numa entrevista para o GameSpot em 2013. “Investi no total 15 minutos e 16 segundos entre ter a ideia de fazê-las de um comentário no Ponibooru até a primeira execução. Vejo a arte tutti-frutti horrível que fiz praquilo e fico imaginando que drogas eu tinha usado.”

A resposta para as imagens foi explosiva, e sugeria que as pessoas estavam realmente interessadas em ver a visão de Anukan realizada. Um recrutamento público se seguiu, resultado no anúncio formal de My Little Pony: Fighting Is Magic, uma brincadeira com o subtítulo do desenho, “Friendship Is Magic”, num fórum de imagens do My Little Pony. A equipe se batizou de Mane6.

Publicidade

“Eu tinha ouvido falar na série pela internet”, disse o artista e animador Jay Wright. “Dei uma chance e achei sensacional; adorei o design simples e fiquei surpreso com o roteiro nem um pouco menininha, apesar da natureza muito menininha implícita. Na época eu era um cara de 31 anos recentemente solteiro. Acho que o desenho tem uma positividade que atrai pessoas num certo estado mental.”

A equipe pequena e não paga do jogo, inicialmente formada por seis pessoas, trabalhou em segredo nos primeiros meses, enquanto tentava entender melhor o jogo que queria fazer. Um dos primeiros obstáculos foi pensar do mecanismo que eles usariam, o 2D Fighter Maker. Apesar de o 2D Fighter Maker ter muitas limitações, ele permitiu que o trabalho começasse.

(Você pode ver alguém mexendo no 2D Fighter Maker aqui.)

O trabalho culminou no primeiro trailer do jogo, que saiu no verão de 2011. Era um trailer bem básico, mostrando uma luta rápida entre dois personagens num único fundo.

Foi um sucesso. O trailer foi assistido mais de 15 mil vezes da noite para o dia. E seria assistido mais de 900 mil vezes até que a ordem judicial da Hasbro o tirasse do ar no YouTube.

“Foi aí que percebi que alguma coisa que eu tinha ajudado a criar realmente atraía as pessoas”, disse Wright. “Que as pessoas podiam ver nosso esforço. Que elas queriam jogar e interagir com isso. Foi um barato, e sei que muitos desenvolvedores de videogame conseguem se identificar. Para mim, foi quando passei de 'Estou fazendo isso pra mim' para 'Estou fazendo isso pra que outras pessoas também possam se divertir'.”

Publicidade

Fighting Is Magic não conseguiu fugir dos holofotes, principalmente porque outras pessoas estavam arrastando o jogo para ele. Pouco mais de um ano depois da estreia do trailer, Fighting Is Magic foi convidado para se juntar a um “showcase indie” na EVO, o torneio blockbuster anual da cena de videogames de luta. Era legitimidade e validação para um jogo com um tema bastante incomum. Mesmo parecendo um jogo de luta sólido, ele era baseado num desenho infantil.

“Adoro essa dicotomia”, disse o animador Lucas Ellinghaus. “Adoro ver reações como 'Espera, esse jogo parece legítimo?'”

“Foi quando passei de 'Estou fazendo isso pra mim' para 'Estou fazendo isso pra que outras pessoas também possam se divertir'.”

O desenvolvimento continuou em 2012, entre rumores de que a falta de atualizações significava que o projeto poderia ser abandonado. Considerando como muitos projetos de fãs, mesmo os mais promissores, nunca veem a luz do dia, não seria um choque. Mas no final de 2012, os desenvolvedores disseram que parariam de viajar para convenções e se focariam em terminar o jogo.

Aí aconteceram alguns desenvolvimentos grandes. Um, o GameSpot fez uma matéria extensa sobre o jogo. Dois, Fighting Is Magic estava no páreo para ser um jogo apresentado legitimamente no palco principal da EVO 2013. Foram momentos de grande publicidade que elevaram o projeto.

Então não foi exatamente surpresa quando os donos da marca My Little Pony vieram bater na porta.

Publicidade

“Nem toda a magia é pra sempre”, começava uma atualização da equipe, revelando a ordem judicial C&D.

“Acho que recebemos a C&D da Hasbro especificamente por causa da atenção que nosso projeto recebeu”, disse Wright. “Claro, sem a atenção acho que nosso projeto não teria o combustível para chegar onde chegou. Acho que os outros caras ficaram mais chateados que eu, honestamente. Não era como se a gente fosse ficar rico com o jogo. Nunca consideramos isso. Foi só a morte de algo que nos custou muita energia.”

Vários desenvolvedores se afastaram depois disso, e a empreitada toda foi colocada em dúvida. Quando perguntei a vários desenvolvedores sobre esse período, alguns descreveram isso como “um borrão”. Uma versão do jogo vazou para o público, e alguns fãs tentaram terminar o jogo sozinhos. O site do Mane6 foi obrigado a apagar tudo relacionado a Fighting Is Magic.

Mas tudo mudou depois de um tuíte fatídico da criadora de My Little Pony, Lauren Faust.

“Havia dezenas ou até centenas de outros projetos de fãs do MLP acontecendo naquele momento”, disse Wright, “e o nosso era o único com selo de aprovação da Lauren. Isso foi bem especial”.

Faust não respondeu meus pedidos de comentário, e mesmo com todo mundo descrevendo a experiência de trabalhar com um ídolo como surreal e intimidadora, ela acreditou no projeto. Eles dão o crédito a ela por fornecer interesse e energia para, na prática, começar tudo de novo.

Publicidade

“Sendo fã do desenho, naturalmente agi como um plebeu diante de um deus”, disse Ellighaus. “Com o tempo essas barreiras foram caindo, e você percebe que todo mundo é um ser humano legal com quem você pode tomar umas cervejas.”

Mesmo tendo permissão para continuar, Fighting Is Magic teve problemas. Eles tinham usado seu mecanismo até o limite, e não estava claro se eles podiam terminar o jogo. Mas um pouco depois do contato com Faust, o Lab Zero Games estava levantando fundos pelo IndieGoGO para desenvolver novos personagens para seu jogo de luta 2D Skullgirls, e durante um livestream para promover o financiamento coletivo, um desenvolvedor disse que eles estavam interessados em dar acesso ao seu mecanismo à equipe de Fighting Is Magic, se Skullgirls conseguisse levantar uma certa quantia. Era uma oferta séria, e exigia que Skullgirls atingisse a marca de $750 mil.

O jogo acabou levantando US$ 828.768 (uns R$ 3 milhões).

O “Z Engine” era o mecanismo próprio do Lab Zero, então o Mane6 começou um longo ano tentando descobrir o que eles realmente queriam fazer. 2013 foi um ano bastante sossegado para a equipe, enquanto eles trabalhavam com Faust desenhando personagens, aprendendo a nova tecnologia e pensando num mapa de construção do que tinham aprendido fazendo Fighting Is Magic.

Só em setembro de 2015, um ano e meio depois do contato de Faust, o Mane6 conseguiu apresentar oficialmente Them's Fightin' Herds, ou "Fighting Is Magic 2.0". Os desenvolvedores estavam pedindo US$ 436 mil mas acabaram levantando US$ 586.346 com a base de fãs fervorosa do desenho. Com certeza ajudou ter o envolvimento da criadora do desenho, e as filmagens do gameplay sugeriam que a equipe não estava só trazendo ideias para os fãs, mas que esse era um jogo que eles realmente podiam entregar.

Publicidade

Por dois anos, o Mane6 trabalhou em Fighting Is Magic sem receber um centavo. Por dois outros anos, eles prepararam Them's Fightin' Herds sem ver um tostão. Agora eles tinham dinheiro. Alguns começaram a trabalhar no jogo em tempo integral, outros trabalhavam quando podiam.

“O espaço no cérebro que uma coisa assim toma é imenso”, disse o artista Jay Wright. “Isso está sempre lá. Quando vou pro meu trabalho normal, estou pensando que não estou trabalhando no jogo. Quando tiro um dia de folga, estou pensando que não estou trabalhando no jogo. Quando saio de férias, penso que não estou trabalhando no jogo. Quando estou trabalhando no jogo, penso como não vou conseguir fazer tudo que quero.”

A equipe estimava que levaria 18 meses para terminar Them's Fightin' Herds, e mesmo que, como a maioria dos videogames, tenha levando um pouco mais de tempo – quase 28 meses – eles estavam em contato constante com a comunidade. Eles faziam streams regularmente mostrando o trabalho no jogo, e não havia dúvida de que Them's Fightin' Herds avançava para o lançamento. (Isso não é muito comum entre os jogos que cobri ultimamente.)

Them's Fightin' Herds foi lançado em acesso antecipado no Steam em 22 de fevereiro de 2018, um pouco mais de cinco anos depois que Fighting Is Magic foi apagado pela equipe legal da Hasbro. E quase sete anos depois que um fã de My Little Pony postou as imagens de brincadeira que começaram tudo.

Finalmente era real.

“Minha coisa favorita agora”, disse Wright, “é assistir streams no Twitch de pessoas jogando o game e ver a evolução inevitável dos comentários. 'Que porra é essa que estou assistindo?' 'Eles realmente fizeram um jogo de luta de pôneis?' 'Que lixo brony é esse?' 'OK, é um jogo legítimo' 'Por que esse jogo é tão bonito?' 'Esse jogo não tem direito de ser tão bom assim.' 'Por que desenvolvedoras AAA não estão fazendo X?' 'A alpaca é a melhor!', etc”.

O jogo deve sair do acesso antecipado em breve, com um modo de história para Them's Fightin' Herds vindo nos próximos meses. A recepção tem sido extremamente positiva.

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.