O livro da vereadora Marielle Franco
Divulgação n-1 Edições

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reportagem

Mais que presente, Marielle virou semente – agora em forma de livro

No evento de lançamento, seguramos placas, velas e fizemos um minuto de silêncio.

Não há registro histórico de um povo que mais tenha enfrentado opressões que o povo preto. Resistência é o sobrenome da população preta e pobre do Brasil. E Marielle Franco, a vereadora do PSOL assassinada em 14 de março no Rio de Janeiro, continua sendo símbolo de luta. Desta vez a semente foi em forma de livro, com a publicação da sua dissertação de mestrado “UPP – A redução da favela em três letras – Uma análise de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro” pela n-1 Edições.

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O evento de lançamento em São Paulo aconteceu no quilombo urbano Aparelha Luzia e teve a então eleita deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL) inIciando as apresentações ao som de agogôs e atabaques, com um canto para Exu, aquele que é mensageiro e que abre os caminhos: “Laroiê!" E entre muitas pretas e muitos pretos atentos, Marielle estava presente.

"Quem nasce na favela sabe como as coisas são difíceis" – Anielle Franco, professora e irmã de Marielle

Mais que um estudo da favela e segurança pública, a pesquisa de Marielle é a voz de uma parcela da população brasileira por muito tempo silenciada, quando não objeto de estudo por uma branquitude hegemônica. “UPP – A Redução da Favela em três letras” é mais um resultado da periferia preta adentrando a academia e o congresso disposta a falar por si e atender às suas demandas, entre elas a segurança pública e o trato policial para com os moradores da favela.

Livro Marielle Franco

Capa do livro / Foto: Divulgação n-1 Edições

“A mulher que sou hoje devo a minha mãe e à Marielle”, conta emocionada Anielle Franco, irmã da ativista. “Foram 34 anos de muito aprendizado e luta. Quem nasce na favela sabe como as coisas são difíceis. E quem é mulher preta da favela sabe que é mais difícil ainda”, disse.

Professora da favela da Maré, Anielle também contou histórias vividas com a irmã mais velha, como quando Marielle sempre ia a sua frente para protegê-la: “Eu achava aquilo o máximo de minha irmã, mas no fundo eu sabia que se algo acontecesse, iria acontecer com as duas”.

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Anielle fala que antes de ser uma vereadora assassinada, Marielle tinha uma essência, e que se orgulha muito de levar isso adiante.

Aparelha Luzia durante evento / Foto: Divulgação Aparelha Luzia

Aparelha Luzia durante evento / Foto: Divulgação Aparelha Luzia

Com falas marcadas de afeto, luta e resistência, Erica Malunguinho afirma: “Enquanto a quebrada estiver sangrando, estaremos lutando”. E continua: “Acho muito importante que estejamos juntos nesse momento. Este recomeço, não nesses recentes golpes. Mas, sim, golpes sistemáticos que acometem nossa sociedade. Queremos que esse sangue estanque. Queremos a responsabilização das pessoas brancas. É contar quantas pessoas pretas e trans, e se não tiver o mínimo dito pelo IGBE, esse lugar é racista. E se você não faz nada sobre isso, você também é”.

"É doloroso, mas é muito importante tudo isso" – Anielle Franco

Com sorriso no rosto sempre e atendendo aos inúmeros pedidos de abraço, Anielle conta que o mais importante que levará do encontro é o afeto. “Eu tenho sentido muita falta de afeto lá no Rio de Janeiro, com uma votação expressiva de Bolsonaro. Na rua a gente anda sendo hostilizada; e vim num lugar como esse, a gente ganha afeto e se recarrega, porque a gente não consegue vencer isso se não estivermos juntos”

Anielle Franco, professora e irmã de Marielle Franco

Anielle Franco, professora e irmã de Marielle Franco / Foto: Divulgação Aparelha Luzia

“Estar aqui é uma mistura de sentimentos. Sentimento da luta que foi ter visto ela escrever, de ter aprendido com ela, de poder ver onde o trabalho dela está chegando e, a cada dia que passa, eu me sinto mais forte. É impressionante como mudou desde 14 de março, os leões que estou tendo que enfrentar. É doloroso, mas é muito importante tudo isso”, comenta.

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A anfitriã Erica Malunguinho fala sobre a importância do evento e a luta de Marielle Franco. “Acho que esse momento político institucional do Brasil é importantíssimo para uma tomada de consciência das pessoas que só viam as opressões e as violências acontecerem; enquanto alguns, como nós, já vivia isso constantemente”.

Ela também reforça a importância de se criar redes de afeto e estratégias de resistência. “E não vamos entrar na histeria coletiva de uma opressão que nós já conhecíamos muito bem; que está intensificando, obviamente, e que tenhamos muita serenidade, prudência, coerência e coragem pra passar por isso agora."

“Duro não é o cabelo. É o sistema" – Akins Kinte, poeta

O poeta Akins Kinte dá sequência ao encontro com cara de ato. Ele denuncia em forma de versos as abordagens abusivas da polícia, de estética preta e do afeto entre o povo preto, como o trecho: “Duro não é o cabelo. É o sistema. E não alisa. Quebra na emenda. Entenda a persistência de mantê-lo crespo na essência. É orgulho. Político e resistência”.

Quem também esteve presente foi a aurora de Um Defeito de Cor, Ana Maria Gonçalves, representando a literatura enquanto forma de resistência e combate ao racismo.

No mesmo clima de luta e resistência, Lucélia Sergio, a atriz e diretora da Cia Os Crespos, interpretou um trecho do espetáculo Alguma coisa a ver com uma missão , baseado na peça A Missão, de Heiner Müller. “Apresentar esse texto é muito significativo e importante, pois fala da revolta dos mortos, daqueles que nos representam, que estão junto com a gente pra lutar, a gente não tá sozinho. Aqueles que já lutaram, como diz o texto: ‘Seremos muito mais que nós mesmos nessa batalha’’, recita.

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Outras figuras da cena artística, política e cultural estavam presentes, como Allan da Rosa, Aretha Sadick, casadalapa, Coletivo Transverso, Gumboolt Dance Brasil, Lia de Mattos Rocha, Microrroteiros da Cidade, Mônica Benicio, Paulistanos, Raul Zito, Rico Dalasam, Viny Rodrigues e Zona Agbara.

Ao final do evento, em plena rua Apa, todos seguravam placas e velas em homenagem à vereadora. Fizemos um minuto de silêncio por Marielle. Não houve fotógrafo que conseguisse registrar tal momento, afinal, todos ali estavam imersos na emoção e na busca da responsabilidade numa luta que é de todos.

Placa em homenagem a Marielle Franco

A repórter Gislene Ramos, da VICE. Foto: arquivo pessoal

E foi arrebatada pela emoção de estar entre os meus, que eu, mais uma preta, e nordestina, entre tantos ali, sentia que não estava sozinha. Ao mesmo tempo, acolhedor e fortalecedor. Então volto para casa (e para a luta) com energias renovadas e, em mente, as palavras de Marielle: “As rosas da resistência nascem no asfalto. A gente recebe rosas, mas vamos estar com o punho cerrado falando de nossa existência contra os mandos e desmandos que afetam nossas vidas”.


Assista à nossa entrevista com Marielle Franco


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