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Identidade

"A Eurovisão é como o Gay Pride, mas menos sexualizado e menos ameaçador"

Há muitos anos que o Festival saiu do armário e o seu cocktail de música, criatividade, comunidade e fãs está tão entranhado na história LGBTQ+ como os sutiãs bicudos estão na carreira de Madonna.
A concorrente israelita, Netta, em plena actuação na Altice Arena, em Lisboa, na primeira semi-final da Eurovisão 2018. Foto por Thomas Hanses via site oficial Eurovision Song Contest 2018.

Não sou grande conhecedora do Festival Eurovisão, nunca o segui atentamente - acho melhor deixar isto claro desde já, caso me apanhem nas entrelinhas e percebam o quão novata sou no assunto. Nunca me apercebi da importância do concurso, nem da grandeza da sua legião de fãs, até Salvador Sobral ter ganho, porque, depois, cada estrangeiro que conhecia me dava os parabéns por ele e pela consequente vitória tuga.

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Claro que, como não vivo numa gruta debaixo da terra, ia vendo uma ou outra actuação - aquelas de que mais se falava, ou que me iam aparecendo nos favoritos do Youtube em tardes de chuva -, até porque não é todos os dias que uma drag queen de barba ganha um concurso musical de televisão de renome (ou o maior concurso musical de televisão do Planeta, pronto!).

Conchita, essa muito famosa drag queen, foi apenas uma entre os muitos concorrentes que, ao longo dos anos, usaram o palco da Eurovisão para abrir os olhos ao preconceito e ensinar o Mundo a aceitar a diferença. Nas palavras de William Lee Adams, conhecido blogger britânico que se dedica e escrever sobre o evento no site WiWibloggs - Eurovision News With Attitude e a viver a fundo tudo o que diz respeito ao evento (na imagem em baixo, à esquerda, acompanhado pelas concorrentes portuguesas deste ano, Cláudia Pascoal e Isaura) , “Conchita Wurst foi um target de abuso até por parte de pessoas da comunidade gay. Ela foi a minha concorrente queer preferida, porque fez a comunidade LGBTQ olhar para si própria e rever o que é que considerado normal”.

A história do Festival está repleta de conquistas e de demonstrações reivindicativas no que toca a aceitar os outros como eles são, o que faz com que seja uma celebração profundamente enraizada na história da comunidade LGBTQ (carrega mesmo neste link que vale a pena). “A Eurovisão é como o Gay Pride - um sítio seguro onde podemos ser quem somos. Mas é menos sexualizado e menos ameaçador”, explica-me William por e-mail. "All Aboard", o lema da primeira edição portuguesa da história de 62 anos do evento [Nota do Editor: e de pessoas a cantar cantigas, como diria Simone], quer, precisamente, enfatizar isso. Todos cabem neste palco e fora dele.

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Como alguém que não estava assim tão familiarizada com o concurso, mas que nestes últimos dias tem mergulhado de cabeça na onda de luzes, fatos esotéricos e em compilações de Youtube dos “momentos históricos” - que, sem querer ofender ninguém, aos meus olhos leigos mais pareciam um conjunto de actuações a competir pelo título máximo do quão foleiro se consegue ser -, tenho a dizer que a Eurovisão é muito mais do que estava à espera. Muito mais quê? Não sei, nem sequer encontro o adjectivo. Só muito mais - demasiado. Demasiados efeitos visuais, demasiada produção nas roupas, nas luzes, nas coreografias…

Alguém falou em fatos esotéricos e onda de luzes? Elina Nechayeva (Estónia). Foto por Andres Putting via site oficial Eurovision Song Contest 2018

Mas é aí mesmo que está a beleza da coisa, que talvez à partida não seja tão óbvia aos nossos olhos muggles de heterossexuais aborrecidos, porque nos habituámos a achar que um bom programa de televisão é a deslavada Operação Triunfo, ou que bom entretenimento é uma Cláudia Vieira em esforço para ser engraçada como apresentadora.

O apelo está numa comunidade LGBTQ+ que se revê nas actuações, que apoia o fim das barreiras e todo um mundo de gente que, ao assistir ao evento, ao vivo, ou, a esmagadora maioria em casa, sente que ser diferente é indiscutivelmente melhor do que ser só mais um igual aos outros. O Festival Eurovisão, por ser tão DEMASIADO, é diferente de tudo o resto. Há espaço para todos, tudo se aceita, tudo vibra, tudo emana luzes e efeitos visuais, tudo é amor, união e fãs a saltar ao som metálico de uma coreografia perfeitamente sincronizada, ou de um quase beijo em palco de Alfred e Amaia [concorrentes espanhóis].

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Como me explica Marco Mercier, gerente do Trumps - que se tornou o "Eurogay Club" em Lisboa, porque não podiam deixar passar a realização do evento em Portugal sem estarem envolvidos e decidiram abriram as portas a todos os "Eurovision Fans", com uma semana incrível programada com screenings do Festival e festas temáticas - “O Festival Eurovisão é o único evento para lá do futebol que une a Europa toda, celebrando as nossas diferenças (que chegou até a ser o tema do ano passado, 'Celebrar a Diversidade'), mas unindo-nos num só concurso”.

Quanto à popularidade do festival na comunidade LGBTQ+, Mercier diz que esta se “sente em casa porque as pessoas podem celebrar quem são, num ambiente em que ser diferente é visto como uma coisa muito boa”. E continua: “Para além disso, o show em si é só luzes, purpurinas, notas altas e subidas de tons. Muito ao estilo da ideia de Diva Pop LGBT”.

A discoteca Trumps tem estado a bombar, com as pistas cheias de eurofãs que, segundo Marco, "é um público diferente, este da 'bolha' do mundo eurovisivo. Não é o público gay party boy europeu, mas sim um outro mundo que se junta nesta altura para beber uns copos. Um mundo em que ninguém julga ninguém, porque aquilo que os une é muito maior do que tudo o resto".

O sucesso do Festival e o seu público fiel são intemporais, mas William Lee Adams acha que, na comunidade gay, se tem sentido um aumento de fãs nas gerações mais novas. Segundo o blogger do WiWibloggs e também responsável por uma das maiores páginas independentes no Instagram dedicadas à Eurovisão, isto deve-se, claro está, às redes sociais que permitem que jovens de países menos tolerantes encontrem uma comunidade que os aceita por quem são e onde se sentem compreendidos. “Em algum momento da vida, todas pessoas homossexuais estiveram no armário. E nisso há um lado de performer, ligado ao medo de ser descoberto. Esse medo e essa performance são espelhadas nas actuações ao vivo da Eurovisão” já que, continua William, as estrelas do concurso “representam uma liberdade e emancipação que todos os homens e mulheres gay desejam”.

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A Eurovisão é, pois, muitas coisas e é objecto de muitos amores, mas também de muitos ódios. Mas, no fim de contas, para lá da tinta que há mais de 60 anos faz correr, é, para o bem e para o mal, para quem gosta e para quem não gosta, um espetáculo único, em termos de actuações e de produção megalómana - de matar de inveja todos os drag queens do Planeta e arredores.

Concorrentes da Europa inteira e Austrália a viverem o seu momento de Diva, recordando-nos - como bem compara Marco Mercier - algumas das maiores divas pop LGBTQ+ da nossa era, de Madonna e Cher a Lady Gaga ou Miley Cyrus. Arranjos visuais de luzes que caem do céu, cenários que se movem e vozes que chegam às notas mais agudas e entram de rompante nos nossos corações queer, conquistando-os numa onda de purpurina e show bizz. Todos a bordo e siga a marinha!


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