FYI.

This story is over 5 years old.

Cultură

Fado Bicha: como tirar o fado do armário das convenções

Lila Fadista, na voz... em drag. João Caçador à guitarra... eléctrica. Que fado é este? Fomos descobrir.
Foto cortesia Diogo Vieira da Silva.

Vieram como um cometa e agremiaram elogios e ódios. Chegaram para desconstruir o mundo LGBTQI que, o mais das vezes, não se questiona nem pensa a contra-pêlo. Chegaram de mansinho e já foram à televisão. Tiraram o fado do armário e, provocatoriamente, denominaram-se Fado Bicha. O projecto é constituído por Lila Fadista na voz e João Caçador na guitarra eléctrica. Após um concerto, numa conversa em torno da música, conversei com a dupla sobre seu fado e as questões de género e pós-colonialidade. Nasceram para “dar existência poética” aos personagens gay reais da Lisboa popular, dos bairros e da boémia fadista. Se a Severa, a precursora do fado na Mouraria, os pudesse ver iria ficar muito orgulhosa.

Publicidade

Desconstruir e reinventar o fado. Mas que grande ousadia esta. Para alguns, este projecto já deveria ter surgido há muito tempo. O Fado Bicha nasceu de uma vontade e de uma cumplicidade. A vontade de Tiago Lila expressar a sua arte através deste género e a cumplicidade de João Caçador ao mexer nas convenções musicais de um género agarrado a Lisboa, à tradição e à imagem de uma cidade e de um País de nostalgia e emoção.


Vê o primeiro episódio de Gaycation


Já os tinha visto na ZDB aquando do Miss Drag Lisboa. Ali uma mulher de barba cantava enredos de homens que gostam de homens, mulheres que gostam de mulheres e de uma fadista bicha que gosta de dizer com orgulho que o é. A trama é uma pedra num charco das convenções LGBTQI. A história começa com Tiago Lila que queria cantar fado.

Chegou a frequentar a Escola de fado da Mouraria, mas não se deu bem. Quis cantar "Ai, Mouraria", de Amália, mas o verso “homem do meu encanto” gerou problemas. Uma colega do curso advertiu – "não podes andar por aí a cantar 'homem do meu encanto'!". Tiago perguntou porquê. Ela avisou-o em tom jocoso: "Então, um homem andar a cantar um 'homem do meu encanto'…". Ao que ele respondeu: "Não posso ter um homem do meu encanto?".

O mundo conservador do fado mostrava a sua face. Mas, Tiago não desistiu. Mesmo tendo parado de cantar numa aula da Escola, sentiu que “a experiência de ter cantado com a guitarra portuguesa foi fortíssima. "Fiquei todo a tremer, senti-me arrepiado dos pés à cabeça”, recorda. Percebeu, no entanto, que não era ali que iria expressar a sua arte, o seu fado.

Publicidade

Tiago procrastinou mais uns meses até que, em Março de 2017, soube que o proprietário do bar Favela LX estava a programar uma data de performances Drag, que, entre outros, integrava o nome de Miss Moço, personagem drag de Adam Moço, seu amigo e mentor. Não dava para fugir à vontade. Cantou e a Internet encarregou-se de “viralizar” a Lila Fadista. Daí até conhecer João Caçador foi um pequeno passo. Encontraram-se para ensaios e decidiram dar expressão ao Fado Bicha enquanto banda e projecto artístico coeso. João completa, assim, o puzzle de um projecto que pretende tirar o fado do armário das convenções. “No primeiro ensaio senti que fazia todo o sentido juntarmos a guitarra eléctrica, porque fazia parte da desconstrução que era proposta à partida”, explica o músico.

Me descobri lésbica no convento

Pássaros de fim de noite

Em Dezembro último são convidados para o programa da RTP "5 Para a Meia Noite". Para trás tinha ficado um processo de construção de um personagem artístico. Lila Fadista estava pronta para enfrentar os ataques. Tiago teve de sair do armário enquanto drag para a família e para toda uma aldeia do concelho de Rio Maior. Uma fase que era o início de muitas confrontações. A começar pelo nome, “Fado Bicha”, que caiu como uma bomba numa comunidade musical e cultural que não está habituada a pensar-se criticamente e a desconstruir-se.

João Caçador desabafa que “o Fado Bicha vem exactamente ao encontro disso. Mais. Vem dar existência poética, que não havia no fado, a estas pessoas, a esta comunidade, a estas histórias, a estes enredos da vida das pessoas. Algo que nunca lhes tinha sido dado”.

Publicidade

São 10 da noite e estamos no Hotel Late Birds, no Bairro Alto. O concerto está cheio, numa sala com lareira e ambiente informal. A guitarra eléctrica de João começa a entoar os primeiros acordes. “Não digas mal dele”, de Amália, abre o espectáculo. A voz de Tiago Lila ecoa pelo espaço e os olhos cerram-se. A sala fica presa à figura Drag de um homem de barba vestido de mulher. A música acaba e as palmas duram mais de cinco minutos.

Tiago explica ao público que a desconstrução que estão a fazer é também activismo. Depois seguem-se letras de fado adaptadas, como o “Namorico do André”, “Bia da Mouraria” e a “Crónica do macho discreto”. Um repertório que pretende iluminar uma série de invisibilidades da comunidade LGBTQI, mas também confrontar o binarismo, o heteronormativismo, o machismo e o racismo que são transversais à sociedade portuguesa.

E os comentário de ódio não se fizeram esperar. Ao Facebook dos Fado Bicha começaram a chegar mensagens de crítica, desde o nome “bicha” até ao visual Drag de Lila Fadista. E, se os ataques vêm do mundo do fado, claro está, a maior surpresa é que venham também “de homens homossexuais e homens que fazem travestismo”, que recorrem a termos de ódio homofóbico como "aberração".

Decidiram não responder aos ataques e, lentamente, a página passa a ser um imenso debate sobre as categorias, os preconceitos e a homofobia, machismo e patriarcado de uma cidade e de um País. João tenta desvendar o enigma e refere que “aquela imagem" (a de Lila Fadista) obriga as pessoas a pensarem, inevitavelmente. "E, desse ponto de vista, acho que o facto de Lila aparecer assim vestida e com barba é uma confrontação que obriga a um exercício de abstracção, que tem de ser feito. E esse exercício incomoda as pessoas”, explica.

Publicidade

“De costas voltadas”

Os concertos de Fado Bicha são sempre diferentes e únicos. Uma experiência individual, mas que obriga a pensar um colectivo, um percurso de um género que nasceu na Mouraria pela voz da Severa, prostituta e cigana. Periférica. O seu legado. no entanto, foi-se construindo de tradição, de cortes. Como o que fez a diva do fado, Amália Rodrigues, na coragem de uma outra visão do canto que é hoje Património da Humanidade. “Identifico-me com a maneira (que talvez seja um pouco romanceada) como ela viveu a vida dela, como viveu os desamores, o seu desespero, toda a intensidade. Artisticamente, sou filho dela, como tantos outros. É uma fadista que eu sempre ouvi e que é a minha grande referência”, sublinha Tiago.

O concerto segue com o tema “De costas voltadas”, um poema de Maria Rosário Pereira, que fala sobre um amor que nunca foi correspondido e que, neste caso, os Fado Bicha adaptam para falarem sobre a rejeição por parte dos pais em relação aos filhos LGBTQI. Depois, uma música homo-erótica, tirada do baú da história do fado: “O Rapaz da Camisola Verde”, letra nunca assumida, nunca revelada. É isto que os Fado Bicha querem também fazer. Resgatar uma história que estava lá, mas não era visível (em poemas de Pedro Homem de Mello, ou Ary dos Santos, poetas homossexuais que escreveram muito para fado) e colocá-la na voz de Lila Fadista.

“Acordámos que, se de facto queremos fazer deste projecto uma forma de activismo e de luta pela visibilidade, temos de ir a sítios onde nos sintamos desconfortáveis”, salienta Caçador. Desconforto que trilha caminhos que têm consequências na biografia dos próprios protagonistas do projecto. Tiago Lila e João Caçador estão a dar o corpo às balas. “Eu gosto deste contraste, quero até reforçar este contraste. Criámos duas personagens completamente diferentes, mas ambas simbolicamente urbanas", justifica o guitarrista. E acrescenta: "Gostava de representar aquela ideia de que todos seremos, ou já fomos, um rapaz da camisola verde e, mais cedo ou mais tarde, um dia todos deixaremos de o ser. Por outro lado, não é por ter uma aparência mais heteronormativa que deixo de ser uma bicha orgulhosa”.

Publicidade

João vem do fado, gosta de pop e de música ligeira portuguesa. A passagem pelo Hot Club com formação em Jazz veio dar uma volta à sua carreira musical e acrescentar-lhe outros olhares. Lila traz Amália na voz e todas as mulheres cantoras que transportam as várias faces do feminino, universo ao qual sempre sentiu pertencer. “Seja uma feminilidade mais agressiva, mais reivindicativa, como a de PJ Harvey, uma feminilidade mais vulnerável e poética, como a de Björk, ou uma feminilidade mais crua e emotiva como a de Amália. Utilizo os Fado Bicha para canalizar esses diferentes tipos de feminilidade que convivem em mim”, assegura Lila.

O concerto acaba com “Mulher do Fim do Mundo”, de Elza Soares. Lila fala sobre escravatura e colonialismo. Os espectadores franzem a testa. Ficam à espera. Afinal, que fado é este que aí vem? A fadista refere que Portugal tem um passado colonial e esclavagista, que deve ser reflectido e analisado. Exige uma reparação e um pedido de desculpas. Fado Bicha evoca Elza Soares, a cantora da favela, a mulher do samba feminista e anti-racista. Com este final o fado canta uma geração que quer tirar os fantasmas e os tabus dos armários velhos de um País onde é preciso pensar fora da caixa. O mar que nos ligou é o mesmo que nos desligou da humanidade.


Segue a VICE Portugal no Facebook, no Twitter e no Instagram.

Vê mais vídeos, documentários e reportagens em VICE VÍDEO.