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Drogas

A experiência de um "trip-sitter" americano no Boom

"Enquanto frequentador assíduo de festivais nos últimos anos, queria ver com os meus próprios olhos como é que, num dos países que mais perto chegou de acabar com a guerra às drogas, se lida com o consumo de substâncias neste tipo de eventos".
Foto pelo autor. Boomers esperam pelos resultados dos testes a drogas durante o Festival.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE USA.

Se já estiveste num festival de música de grande dimensão nos Estados Unidos, provavelmente deparaste-te com medidas de segurança bastante robustas. Longas filas para a revista de malas e polícias fardados, ou seguranças privados, que, pelo menos parcialmente, têm como missão a apreensão de drogas ilegais.

Mas, em Portugal, onde a abordagem governamental ao consumo de drogas está quase por completo fora da alçada das autoridades policiais, o ambiente nos festivais de música é bastante diferente. Em muitos dos eventos há serviços de testes à pureza das substâncias e, à partida, ninguém é incomodado pelos seus consumos preferidos.

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Boom 2016. Foto por Diana Antunes.

Isto acontece porque, há cerca de 15 anos, uma corajosa política nacional de âmbito nacional foi implementada, levando à descriminalização da posse de pequenas quantidades de qualquer tipo de droga. Hoje em dia, as pessoas que estão à frente dos processos de regulação e controlo são profissionais de saúde e não polícias.

Enquanto frequentador assíduo de festivais nos últimos anos, queria ver com os meus próprios olhos como é que, num dos países que mais perto chegou de acabar com a guerra às drogas, se lida com o consumo de substâncias neste tipo de eventos. Para tal, contactei Maria Carmo Carvalho, da Universidade Católica e responsável pela Kosmicare, entidade que tem como objectivo o acompanhamento em festivais de consumidores de drogas, ajudando-os a lidar com eventuais problemas, nomeadamente as denominadas "bad trips", ou até situações mais graves.

Em Agosto último, no Boom Festival, evento que, de dois em dois anos, se realiza na zona de Idanha-a-Nova, perto da fronteira com Espanha, cerca de 100 voluntários da Kosmicare comprometeram-se a prestar assistência e cuidados aos 30 mil festivaleiros, 24 horas por dia e ao longo de toda a semana. Eu fui um dos voluntários.


Vê: "A Noruega vai seguir o modelo português de descriminalização de drogas"


A Kosmicare está na linha da frente daquilo a que se chama "redução de danos". Uma tendência que tem na génese a minimização de riscos e o objectivo de evitar que as pessoas batam no fundo. Mas, ao contrário dos esforços de "redução de danos" dirigidos, por exemplo, à troca de seringas junto dos consumidores de heroína, ou à criação de locais seguros para se injectarem, a entidade foca-se especificamente nos consumidores de drogas em festivais de música. Ou seja, drogas como o LSD, cogumelos, ketamina e vários outros psico-estimulantes, normalmente combinados com álcool e canábis. E, num evento como o Boom, em que misturas um ambiente seco e quente, com 18 horas por dia de psytrance vibrante, é muito provável que as "bad trips" possam acontecer.

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"Estimamos que o nosso serviço cubra cerca de um por cento do público do festival", salienta Maria Carvalho em declarações à VICE, acrescentando que muitos dos festivaleiros são oriundo de países como a França ou o Reino Unido e não estão habituados à abertura de um serviço deste género. Apesar do uso de drogas em si ainda não ser tecnicamente legal em Portugal, o processo de descriminalização levou a que as autoridades se focassem mais no grande tráfico e menos nos consumidores ocasionais. Devido a isto, explica a responsável portuguesa, "as pessoas não têm que temer o recurso aos nossos serviços, nem têm de ter qualquer receio das pessoas que connosco trabalham".

"Quando voltou a ele, pouco depois do nascer do Sol, no dia seguinte, estava confuso e chateado consigo próprio. mas também estava agradecido por não ter acabado na prisão, ou no hospital".

Para ser aceite na equipa da Kosmicare no Boom, em Fevereiro deste ano tentei ganhar alguma experiência através do voluntariado no projecto norte-americano Zendo Project, que é posto em prática na Costa Rica. Ajudar pessoas envolvidas em experiências psicológicas desafiantes normalmente derivadas do consumo de drogas era, neste caso, o objectivo mais modesto. Um homem que conheci não parava de perguntar-me repetidamente, "a sério, estou em apuros, fiz alguma coisa de errado?". Este tipo de trabalho é confidencial, portanto, não posso revelar o seu nome, mas posso dizer que durante várias horas andei atrás deste canadiano de 20 e poucos anos pelo recinto do Envision Festival, na Costa Rica, a tentar controlar o seu comportamento incerto.

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"É neste tipo de situações que serviços como os oferecidos pelo Zendo entram", explica Sara Gael, psicoterapeuta do Colorado, que dirige o Projecto. De acordo com a responsável, o grupo de voluntários assistiu já cerca de mil pessoas desde 2012, tanto nos Estados Unidos, como no estrangeiro.

Sem saber ao certo o que este indivíduo em particular tinha tomado e sequer se tinha consumido alguma coisa, a única coisa que podia fazer era tentar que ele se mantivesse em segurança e não fizesse nada de que se viesse a arrepender amargamente mais tarde, como, por exemplo, dar todo o seu dinheiro a estranhos na zona de alimentação do Festival (coisa que tentou, várias vezes). Uma vez sob os meus cuidados, acabou por se acalmar, aparentemente quando a moca começou a diminuir. Quando voltou a ele, pouco depois do nascer do Sol, no dia seguinte, estava confuso e chateado consigo próprio. Mas também estava agradecido por não ter acabado na prisão, ou no hospital. Estava agradecido por uma abordagem moderna e civilizada ao consumo recreativo de drogas o ter ajudado a não se meter numa embrulhada.

Boom 2016. Foto por Diana Antunes

Em Portugal, aprendi que, ao contrário da atmosfera de opressão legal norte-americana - em que aqueles que tentam testar drogas nos eventos correm o risco de ser expulsos ou detidos - uma cultura de ênfase no consumo seguro foi implementada à vista de todos e abraçada durante todo o Festival.

Todas as noites, junto ao palco principal do Boom, uma equipa de voluntários dirigia a mesa de check!n, onde as pessoas podiam entregar pequenas amostras das suas drogas e, horas depois, verificarem os resultados e saberem exactamente o que estava dentro das suas bolsinhas. Para além deste serviço, fundado por uma agência não-governamental de desenvolvimento portuguesa, os Boomers tinham à disposição panfletos de informação sobre drogas, tampões para os ouvidos e até pequenas garrafas de água para irrigação nasal e cartões para enrolar e poderem ser usados no consumo de substâncias inaláveis.

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Face ao meu próprio choque cultural com o carácter progressivo de tais serviços, senti-me inspirado pelas dezenas de pessoas com quem me sentei durante a semana no espaço da Kosmicare, a maioria deles ali chegados por vontade própria depois de se aperceberem que precisavam de apoio. Em vez de me dizerem que tinham metido algo que achavam que era ácido, ou algo do género, já tinham a referência correcta do que tinham mesmo consumido, porque tinham feito os testes no Check!n e sabiam que era mesmo LSD, ou MDMA.

"Tudo isto pode parecer uma espécie de visão utópica de um futuro de festa constante, alimentado a drogas e patrocinado pelas agendas clandestinas de organizações privadas que se aproveitam das flexibilidades legais internacionais".

Uma das antigas colegas de curso de Maria Carvalho - e também voluntária da Kosmicare -, Helena Valente, está actualmente a desenvolver um estudo sobre o impacto do teste às drogas na decisão de alguém consumir ou não no decorrer de um festival de música. Por exemplo, o Chek!n recebeu várias amostras de saquinhos de um grama de coca que eram vendidos a 90 euros e que, depois de testados, se verificou não conterem qualquer vestígio de cocaína. Helena Valente quer perceber se, neste caso, as pessoas optaram por não se preocuparem com o prejuízo e deitaram fora os sacos, ou decidiram arriscar e consumir o produto de qualquer forma.

Tudo isto pode parecer uma espécie de visão utópica de um futuro de festa constante, alimentado a drogas e patrocinado pelas agendas clandestinas de organizações privadas que se aproveitam das flexibilidades legais internacionais. Mas, à medida que os festivais atarem cada vez mais pessoas em todo o Mundo, Sara Gael tem esperança que serviços como estes apelem a uma coesão social mais ampla e que a "redução de riscos" seja também adoptada e prevaleça nos Estados Unidos. "Acredito que, cada vez mais, assistimos a uma consciencialização do público em geral para a necessidade de serviços que apoiem o bem-estar mental e emocional de pessoas que escolham consumir determinadas substâncias", conclui.

Kevin Franciotti é um jornalista independente, sediado em Nova Iorque, cujo trabalho de investigação na área psicadélica foi já publicado na New Scientist Magazine e em Reason.com. Segue-o no Twitter.


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